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montesclaros.com - Ano 25 - terça-feira, 19 de novembro de 2024
 

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Mensagem: Um casal inesquecível

Ruth Tupinambá Graça

Éramos crianças ainda, unidas pelos laços de família, numa convivência feliz ligados por uma grande amizade. Reuníamos em casa de tia Joaquina que morava na rua Direita, hoje Dr. Veloso. E preciso salientar quão maravilhosa e acolhedora era aque1a adoráve1 casa. Tia Joaquina e tio Basílio formavam o casal mais extraordinário que conheci até hoje. Ele era caseiro por temperamento, avesso a visitas. A primeira vista parecia um tipo displicente e indiferente. Era como se vivesse por acaso, it medida que os dias passavam. Sem vaidade, sempre metido num temo de brim ``KAKI`‘, um homem simples por natureza. Mas, quem com ele convivesse notaria logo um temperamento extraordinário de persistência e ação, ao lado de grande inteligência, que por circunstâncias precárias de sua infância e juventude não teve oportunidade de aprimorá-la nos estudos. Sua infância foi dura, sendo o filho mais velho e ficando cedo órfão de pai viu-se com a grande responsabilidade de criar uma família enorme. Entretanto discutia com os mais ´sabidos´ da cidade, dando-lhes ´quinau´, sobre a política internacional, direito, crise econômica e financeira do país. Ele ficava horas ouvindo pelo rádio as notícias da guerra.
Minha tia Joaquina era outro temperamento. Irrequieta, comunicativa, não sabia ficar parada, fazendo só as tarefas comuns das esposas domésticas daquela época. Era de uma inteligência, atividade e capacidade de trabalho admiráveis e, já naquele tempo, quando as mulheres pacientemente se julgavam inferiores aos ´machões´, ele já sentia a necessidade de proclamar seus direitos e participar dos problemas financeiros da família. A mulher a seu ver, poderia supervisionar o lar e ainda concorrer, de qualquer maneira, com a ajuda monetária.
Dentro do regime patriarcal daquela época estes pensamentos eram absurdos.
Os ´machões´ sentiam-se ofendidos e assim as mulheres se acomodavam ao mais fácil e nenhuma se sentia capaz de responsabilidades além de cozinhar, lavar e criar os filhos.
Mas minha tia Joaquina era diferente, dinâmica e, antes de tudo, uma perfeita comerciante, descobrindo, quando a nossa cidade não oferecia ocupação nem para os homens, tarefas que a mantinham ativa o dia todo. Ela ``bancava`` o Jogo do Bicho, que naquela época era livre, para a satisfação de todos. Não é extraordinário? Fazendo sua ´fezinha´ para as despesas eventuais e ainda nos presenteava com entradas para ´matinês´ que nos deixavam eufóricos.
Tinha uma freguesia certa de pessoas recatadas e discretas da cidade (que faziam sua ´fezinha” escondido) e ainda uma turma de cambistas que vendiam nas ruas. O certo é que o negócio era bom e ela tinha uma sorte incrível, acertava sempre os passes.
Tio Basílio não travava suas atividades, pelo contrário, considerava até louváveis suas atividades comerciais. E com isso os dois se entendiam maravilhosamente.
Ele tinha os seus hábitos, que chegavam a ser manias, mas ela respeitava e não implicava com suas excentricidades. Já pensaram numa fogueirinha acesa todas as noites (durante a estão fria) numa sala de jantar? Era esse foguinho o seu maior prazer e nos (criança gosta muito de fogo) vibrávamos a seu lado. Ele se assentava num tamborete e ficava esquentando as mãos abertas com as palmas viradas para as labaredas enquanto nós, de cocares, ouvíamos embevecidos as aventuras tão interessantes do seu tempo de rapazinho. Ele tinha sempre uma história nova para nós, reminiscências de sua vida de tropeiro. Sim, ele fora um desses valentes e autênticos tropeiros a quem nossa cidade muito deve. Transportava de longe tudo que a nossa cidade precisava. E nesta conversa ao pé do fogo ele se abria conosco, recordava cheio de saudades de seus companheiros, das aventuras na mocidade, quando a juventude grita dentro do peito e as emoções nos embriagam. Das partidas ao alvorecer, saboreando uma gorda feijoada e da pinga forte que os esquentava nas manhãs e noites frias. Era um contraste: ele grande saudosista e ela prática e nunca fazia-lhe companhia nesta conversa ao pé do fogo. Ela percebia sua grande saudade já depois de velho, cabeça branca) dos tempos em que cheio de vigor, incansável, cortava extensas chapadas atravessando densas matas, ouvindo apenas o canto triste das zabelês e a música angustiante do tinir dos guizos da tropa...
E ali mesmo, mais tarde a tia Joaquina nos servia o infalível cafezinho quente gostoso acompanhado de ´João Beó´ (biscoito de fubá mimoso que ela fazia com perfeição) e que ainda hoje eu sinto o gesto na boca!
Vendo as labaredas subirem (desenhando no teto e nas paredes figuras exóticas) ele se animava com estimulado por um vigoroso tônico e se expandia. Contava os apertos de sua vida ate que se estabilizou aqui descobrindo a filha de Cassimiro Mendonça, morena bonita e faceira por quem se apaixonou,casando-se mesmo sem economias.
Incapaz de negar a quem o procurasse, muitas vezes o vi, à beira deste mesmo fogo, queimar promissórias pagas por ele, dizendo: ´coitado, não tem coma resgata-las´. Fazia isso sem alarde, por humanidade. Quando aqui se fixou casado, deixando as aventuras de viajante primitivo, foi durante muito tempo comerciante e, mais tarde fiel tesoureiro e coletor da antiga Câmara Municipal de Montes Claros, acumulando dois cargos sem pensar nas ´cifras´.
Era um funcionário ´Caxias´. Por nada deste mundo faltava à repartição, trabalhando de sol a sol e ainda tinha a petulância de ir à Câmara aos domingos. Isto porém por prazer, não era obrigado.
Por muito tempo ele foi presidente da Banda Euterpe Montesclarense, e um grande amigo e protetor dos músicos. O ensaio era toda semana em sua casa com o célebre café. A tia Joaquina, muito solícita, arrumava a mesa muito farta, com biscoitos e bolos deliciosos feitos especialmente para o café dos músicos. Juntava muita gente nas janelas para ouvir a banda tocar, e ai eles se esmeravam nos dobrados cientes de que eram observados e apreciados.
E era assim a casa de meus tios. Casa farta onde todos se sentiam à vontade, servindo-se e a qualquer hora do pão e café, sem cerimônia. E nada faltava na vida do casal. Mas, a tia Joaquina tinha visão mais avançada e trazia consigo a angústia de não dar aos filhos uma educação mais esmerada, um futuro mais brilhante, enfim, queria um filho doutor. Era o seu sonho. E isto estava fora do orçamento da laboriosa família. E, insatisfeita como umas formigas de longas pernas, tratou de ir mais além e, naquela época tão difícil, conseguiu uma ´agênciazinha´ da Loteria Mineira. Eu acompanhava suas atividades procurando ajudá-la no que podia, fazendo contas, tirando porcentagens, cobranças e, no fim do dia, ela na sua generosidade, sempre me presenteava com uma “notinha nova´ que eu colecionava...
E nesta luta cotidiana, de vender e prestar contas era sempre obrigada a ficar com um ou dois bilhetes que não conseguira vender. E de uma destas feitas a notícia estourou na cidade. Duzentos contos para Montes Claros. E a felizarda era Joaquina de Paula! Foi um alvoroço. Foguetes e mais foguetes. A Banda Euterpe com seus músicos eufóricos, como se fossem soldados empunhando seus instrumentos reluzentes, se postaram em frente à casa saudando o rico e feliz casal. Muita cerveja, muito vinho, conhaque e café com biscoito.
Dai em diante tudo mudou na casa tranqüila da rua Dr. Veloso. A família estava rica, talvez a mais rica da cidade. Duzentos contos de reis, apuradinhos! Adquiriram bons e bem situados imóveis; uma farmácia para o filho mais velho, o João de Paula, que já praticara e tinha muita habilidade para preparar pílulas, poções e cápsulas, discípulo do saudoso Frois Neto. Depois de trocarem grande correspondência com os amigos de influência, firmou-se do Rio de Janeiro. O colégio para o Hermes de Paula, que tinha vocação para médico, trabalhando com Dr. Plínio que já descobrira belas qualidades do seu discípulo. A Maria de Paula, filha mais velha e não queris estudar, resolveu dar um passeio na capital para apanhar um ´vernizinho´. Aprendeu prendas domésticas, tornando-se uma ótima florista. A outra, mais nova, a Helena, formou-se na Escola Normal Oficial e arranjou logo um casamento. Rica e professora, não foi difícil, embora ela fosse muito avessa ao matrimonio. O caçula, Antonio de Paula, adulado e na barra da saia, continuou estudando aqui mesmo. Seguiu a mesma profissão do pai na Câmara Municipal, tomando-se um excelente profissional. Foi uma manobra feliz em casa dos tios, graças à “sorte grande´ da tia Joaquina.
Tio Basílio foi um herói. Criou quatro famílias que ficaram ainda cedo sob sua responsabilidade, cujas irmãs viúvas com filhos e sem recursos encontraram abrigo e proteção do tio Basílio durante muitos anos. A sua doação ia mais além pois, quando tinha notícia de um sobrinho ou parente que morava longe, sem recursos para estudar,trazia-o para sua própria casa, dava-lhe toda assistência necessária, física, moral, intelectual e financeira até que tivesse condições de enfrentar a vida com sucesso. A tia Joaquina concordava e ambos repartiam o pão com quem precisasse. Entretanto o querido casal não mudou os seus hábitos. O dinheiro não deslumbrou nem afetou a generosidade de ambos. Continuaram a mesma vida simples e laboriosa e com as mesmas atividades. Ele com os mesmos temos de brim ´KAKI´ e ela com as mesmas ´toilets´ costumeiras, na mesma casa simples na rua Direita, onde moraram pobres e depois ricos os restos de suas vidas.
Ele continuou na Câmara Municipal e ela bancando o seu Joguinho do Bicho , e fazendo a sua fezinha na Mineira, por sinal que ainda ganhou mais duas vezes a sorte grande. E aquela casa tão querida por nós, tão acolhedora, deixou a tantos que a freqüentaram as melhores recordações.
Aquela casa continuou por muito tempo com as portas abertas para os parentes e muitos outros que dela se aproximaram solicitando amor e proteção, com uma imensa árvore com muita sombra e carregadinha de frutos.

(N. da Redação: Ruth Tupinambá Graça, de 94 anos, é atualmente a mais importante memorialista de M. Claros. Nasceu aqui, viveu aqui, e conta as histórias da cidade com uma leveza que a distingue de todos, ao mesmo tempo em que é reconhecida pelo rigor e pela qualidade da sua memória. Mantém-se extraordinariamente ativa, viajando por toda parte, cuidando de filhos, netos e bisnetos, sem descuidar dos escritos que invariavelmente contemplam a sua cidade de criança, um burgo de não mais que 3 mil habitantes, no início do século passado. É merecidamente reverenciada por muitos como a Cora Coralina de Montes Claros, pelo alto, limpo e espontâneo lirismo de suas narrativas).

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