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montesclaros.com - Ano 25 - terça-feira, 19 de novembro de 2024
 

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Mensagem: Exupério, o ferrador

Ruth Tupinambá Graça

Foi uma grande época, a do cavalo. Hoje ele é vendido por milhões de dólares nos grandes e sofisticados leilões e é o hobby dos ricos criadores.
Mas antigamente, a história era outra. O conceito do cavalo era bem diferente e tinha um valor imprescindível, útil e necessário a todos. Um bom cavalo gozava de grande prestígio, era respeitado e cobiçado. Obediente uma vez amansado, relativamente barato e de grande serventia.
Todo fazendeiro que se prezava, possuía uma tropa bem tratada e até mesmo, os que moravam na cidade (os comerciantes), sustentavam aquele luxo, alugando pasto onde seus animais de estimação, principalmente um puro sangue (treinado para o cilhão de dona patroa) eram tratados com todo carinho, como ilustres pensionistas nas pastagens mais próximas dos compadres e amigos.
Era com enorme satisfação que, aos domingos, aqueles fazendeiros de verdade – Nozinho Colares, Valeriano Lopes, João de Figueiredo, Altino Maciel, João Mendonça, Orfeu Fróes, Elpídio da Rocha, Ilídio dos Reis, Levindo Dias, seu Dantas, Argemiro Machado, João Salgado, Zezé de Alfredo, Santos Braga, Antônio Lucrécio, Chiquinho Viriato e muitos outros, - desfilavam pelas ruas da cidade, elegantemente montados e com muito orgulho, mostravam um bom marchador ou um esquipador, cria da sua fazenda, numa sela amazonas da melhor qualidade, arriatas de prata brilhando ao sol, pelegos de pele de carneiro para melhor conforto do cavaleiro.
Aquele desfile de senhores sérios era um acontecimento importante, assistido e apreciado por um grande número de fazendeiros, criadores de curiosos, sendo uma boa oportunidade para fazer bons negócios e trocas.
Os animais, com suas crinas bem tratadas e penteadas, ancas lisas bem delineadas, pêlo reluzente, pernas firmes e pescoços perfeitos, davam um show de boniteza, enquanto as patas bem ferradas tiravam faíscas naquele grosseiro calçamento das nossas ruas.
Geralmente, o sábado era o dia escolhido para ferrar os animais, num ritual todo especial.
Exupério Ferrador (conhecido por todos), que em época remota foi jagunço, atuando bravamente no tiroteio de 06/02/1930, por ocasião da visita do vice-presidente da República, doutor Fernando de Melo Viana à nossa cidade, era o exímio ferrador, merecendo a total confiança dos fazendeiros.
Com a mesma facilidade e competência com que manejava uma carabina, ele dominava o animal, por mais arisco que fosse, e cravava-lhe a anca o ferro fumegante com as iniciais do seu dono, e também calçava-lhe as ferraduras, ajustando os cravos com rapidez e competência incríveis.
Ele sentia orgulho daquela profissão e tinha um jeito especial para trabalhar nas patas de um poldro de raça, um garanhão famoso ou uma égua de estimação. Era o preferido da cidade e ferrava pra ninguém botar defeito. Muito minucioso, media cuidadosamente as ferraduras, adaptando-as aos melindrosos cascos e aquecia, ao mesmo tempo, o ferro com as inicias, ao calor das labaredas numa fogueirinha, nos fundos do Mercado Municipal antigo, onde improvisava uma mini-oficina para aquele trabalho especial.
Durante aquela operação os donos dos animais assistiam atentamente, pois o cavalo era como se fosse gente, ou atém mesmo um parente que submetesse, no momento, a uma melindrosa cirurgia.
O Exupério, durante aquela função, torcia os enormes bigodes (que era seu orgulho), fazia mil piruetas, pegando e largando com agilidade as patas do animal, apertando os cravos nas ferraduras e na hora de cobrar, arrancava o couro dos fazendeiros, que pagavam sem resmungar pois com o Exupério, era pegar ou largar, não adiantava pexotear.
O cavalo era indispensável ao Tropeiro e ao Cometa para o transporte de mercadorias; ao fazendeiro, para o serviço de campo e modo geral para as viagens.
Foi uma época difícil, sem as rodovias e as ferrovias, em que o lombo do animal era o único transporte. Nossa cidade muito deve àqueles tropeiros que, durante séculos, supriram o nosso comércio com mercadorias trazidas de longe, enfrentando obstáculos e perigos sob um sol escaldante, poeira e calor, ou chuva, vento e frio, o tropeiro incansável seguia embrenhado-se nas matas e pacientemente arreava e desarreava os animais nas longínquas pousas sem conforto. Durante as viagens, que duravam três a quatro meses, com o coração embalado pelo tilintar dos guizos da madrinha da tropa, espantando melancolia, o tropeiro sentia-se feliz e alegrava-se com o retorno a Montes Claros, rever a família, os amigos e matar a saudade e sentir novamente o carinho do lar, tantos meses privado.
Esta luta durou anos e anos e hoje ninguém é capaz de avaliar quanto esses valentes tropeiros sofreram e o bem que nos fizeram.
Mas a civilização chegou trazendo o automóvel para desbancar o cavalo. Ao invés das quatro patas, as quatro rodas passaram a dominar e em lugar das selas de couro para as viagens, existem hoje as confortáveis e luxuosas poltronas. O som melancólico dos guizos da madrinha da tropa e do trote compassado dos animais nas estradas desapareceram e os nossos ouvidos sofrem com o som estridente de buzinas e o chiar dos velozes pneus no asfalto.
E a situação do cavalo é outra. Tratado especialmente em cocheiras luxuosas, deixam de ser o transporte de todos, todo dia e toda hora.
Hoje existem os haras modernos com todo luxo e conforto, onde os animais têm uma alimentação balanceada, rica em vitaminas e proteínas, controlada por veterinários competentes e atendimento em clínicas especializadas.
São transportados em carros especiais, estofados, com ar refrigerado e até música relax.
São vendidos por milhões de dólares em leilões sofisticados que mais parecem show da alta sociedade.
A criação do cavalo de raça é hoje privilégio de alta classe. É um hobby dos grandes empresários e fazendeiros quatrocentões, que fumam cigarros e charutos finos, bebem uísque importado, possuem jatinho para não perderam tempo, e, cheio de orgulho aguardam, tranquilamente, o sucesso e os lucros da sua criação famosa nos grandes leilões, nas importantes capitais.

(N. da Redação: Ruth Tupinambá Graça, de 94 anos, é atualmente a mais importante memorialista de M. Claros. Nasceu aqui, viveu aqui, e conta as histórias da cidade com uma leveza que a distingue de todos, ao mesmo tempo em que é reconhecida pelo rigor e pela qualidade da sua memória. Mantém-se extraordinariamente ativa, viajando por toda parte, cuidando de filhos, netos e bisnetos, sem descuidar dos escritos que invariavelmente contemplam a sua cidade de criança, um burgo de não mais que 3 mil habitantes, no início do século passado. É merecidamente reverenciada por muitos como a Cora Coralina de Montes Claros, pelo alto, limpo e espontâneo lirismo de suas narrativas).

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