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Mensagem: SER CATOPÊ Ucho Ribeiro Desde muito as cores das fitas e os sons das caixas dos Catopês me entorpecem. Quando criança, ao final da aula do Grupo D. João Pimenta, segui atordoado aquele tum-trum-tum estonteante, ouvindo encantado o espocar dos foguetes e o bem-vindo sininho da antiga Igreja do Rosário. Fiquei ali horas, boquiaberto, me deliciando com o enlevo dos movimentos e das saudações ao São Benedito. Estava em transe com tanta glória e encanto quando fui puxado pelas orelhas e esculhambado pelo meu sumiço. Vexado por ter causado preocupações aos mais velhos - e com receio de uma sova - careci de coragem para inquirir o que era aquilo tão alegre e tão comovente. Cresci desejando pular para dentro daquela roda, daquele cordão de contentamento, mas as voltas da vida me afastaram para longe. Do distante só restou saudade dos matizes vivos das fitas arco-íricas e o pesar de não ter-me misturado em meia-luas com os Catopês. Ao voltar à terra, a carranquice e o cotidiano sintonizaram-me às coisas menos importantes. O rito do dia a dia baixou a chama do menino, censurou seu fascínio e desejo catopêico. Vivi durante muito tempo um torpor para as coisas intangíveis, uma impassibilidade às ocorrências habituais, na busca peregrina do amplo acontecimento e da grande mudança. Entretanto, os trancos e arrancos da vida, aos solavancos, me ensinaram que o ritmo tem que ser outro. O segredo está na simplicidade. Temos que perceber que tudo é um milagre e nosso maior poder é a capacidade de sempre agradecer a Deus. É a gratidão. Resolvi, então, afrouxar. Frouxar a vida, as rédeas, os quereres e as rigidezes. Deixar estar. Procurar a humildade, que é a fé na sua expressão mais sublime. Este desaperto do espírito somado aos incitamentos do Paulo Narciso, de Raquel e do meu padrinho Paulo Estevão, foram terminantes para tornar-me um Catopê. Paulo levou-me até Mestre João Faria, e o seu filho, o veterano PA, abençoou minha calorice. Raquel cuidou das minhas alegorias, emoldurando afetuosamente meu cocar com lantejoulas, miçangas e plumas de pavão. Na quarta-feira a noite, estava pronto para altear o mastro de Nossa Senhora do Rosário e misturar o tum-tum-tum do meu coração com o tum-trum-tum das caixas, surdos, tamborins e pandeiros dos Catopês. A emoção transbordava por todo lado, por todos os poros, e mais ainda porque Tavinho, meu filho, sairia também no terno. Iria viver o que não pude viver na minha infância. Ao chegar, Rubim e eu ouvimos o meu Mestre João Faria dizer: “Oh, os meninos, a alma precisa de festa.” E retrupicar : “Onde tem alegria não tem pecado”. Aquelas palavras bateram forte e de forma sagrada. Naquele momento decidi exercitar-me na fé e na alegria. Catopecizar na fé. Lembrar que a fé é o poder mágico. Isto não é uma coisa fácil, exatamente porque é muito simples. Procurei, então, esvaziar-me, deixar espaço para ela entrar. A alegria viria junto. Como veio. Ali, mais uma vez, aprendi que jamais devemos subestimar a simplicidade. Chegou a hora. Concentramo-nos em uma rua quieta e escura. Os Catopês, para mim anônimos e desconhecidos, fizeram uma fogueira para afinar seus instrumentos de batuque. Aproximaram os tamborins e as caixas de folia junto do fogo para esticar o couro e apurar o som. Eu a tudo observava, sem entender bem o sentido das coisas. Receava também não dar conta de acompanhar o ritmo. Virgínia, filha do historiador Hermes de Paula, dissera-me que acreditava que a palavra “Catopê” era um vocábulo africano que significava batuque e eu, pobre de mim, jamais soubera batucar. Partimos. Os dançantes me receberam como um deles e riram do meu desajeito. Ensinaram-me a batida de um toque lento e dois rapidinhos. Tum-trum-tum. Percebi que, além da fé, o riso é a única coisa que levam realmente a sério. Creio que é por isso que eles falam “brincar o Catopê”. Frouxei-me ao ver Tavo ao meu lado, saltitando e batendo seu pandeirinho. A respiração ficou ofegante. Os olhos marearam. A face deixou escapar um sorriso longo e verdadeiro – como todos os sorrisos deveriam ser. Daí em diante, relaxei de vez, mergulhei inteiro nas festas, a gosto, passei a quinta e sexta-feiras; o sábado e o domingo em desatino, em desvario. Voltei à minha menina Montes Claros, senti sua poeira e o seu calor, sua alegria. Experimentei o frescor da noite e o luar. Percebi, a cada passo, o lusco-fusco das luzes entrelaçar nas minhas fitas coloridas; senti o cheiro de manga rosa e do pequi. Ouvi os gritos alegres das crianças; o silêncio quieto das missas de Padre Quirino; vi em passeata as castas beatas irmãs imaculadas; o murmurejar dos mantras das novenas e dos terços. Relembrei o medo dos pecados e as pernas nas soltas camisolas das meretrizes da Rua de Baixo, prostitutas miúdas expulsas de casa pelo descuido no amor. Vesti-me dos redemoinhos poeirentos e voei alto em cor com as pipas e papagaios nos ventos do meio do ano. Senti o gosto dos infinitos biscoitos de Fininha, dos cocos e dos melados dos quebra-queixos de Mazaropi, dos tintos pirulitos em cone enfiados simetricamente na tábua pendurada ao pescoço de Pacífica. Ouvi em oração a sublime lamúria “Dê uma esmola a pobre cega que não pode caminhar...” Dilui-me em gostosos delírios. Andei fitado, colorido, em rodopios pelas antigas ruas de Montes Claros, ao lado da alegria de Leonel e sua boneca; da singeleza e inocência de Tuia e seu bico alvo; dos faniquitos de Requebra que Eu Te Dou Um Doce; da obsessão de João Doido com “Terezinha é minha”; da solidão do nômade Galinheiro e sua enorme tralha em mudança; da beleza e jovialidade de Lena, quando era doida; dos invertidos Olhos Dessa Muquiça e o seu caminhão paramentado; e de Manoel Quatrocentos com Gina Lolobrigida e seus “Ô Lalaica” – toquei minha caixa de folia carinhosamente para cada um deles. Eu os vi e os ouvi, graças ao transe que vivi nestes dias. Viver Catopê não passa despercebido, não deixa ninguém incólume. Ninguém que foi tocado por aquelas tentáculas fitas continua o mesmo. Dentro daquele turbilhão de emoção, percebi que além de fé e alegria, o que havia era solidariedade, generosidade e a mais terna amizade. Só consigo me lembrar dos brilhos dos nossos olhos e da frouxura dos nossos risos. Assim aconteceu comigo. E nada mais posso fazer agora do que agradecer por ter tido tamanha oportunidade de ser Catopê. Ser Catopê é para mim um doce que derrete lentamente na boca e que não se gasta nunca. Cada vez que os meus pés tocaram a calçada da Igrejinha do Rosário, ao lado de onde o sininho saúda a chegada dos Catopês, Marujos e Caboclinhos, e depois de testemunhar pelas ruas de Montes Claros as lágrimas, sorrisos e promessas dos meus conterrâneos, reafirmei o compromisso de devoção ao Divino, para sempre. Para o ano eu voltarei para cumprir nova missão. Viva os presentes. Viva os ausentes. O Catopê não tem fim... Aúi!
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