Ucho Ribeiro
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Por Ucho Ribeiro - 26/10/2022 10:11:04 |
DARCY RIBEIRO – COMO EU O VI Ucho Ribeiro Darcy teve muitos couros na vida, trocou de peles diversas vezes. Dedicou-se apaixonadamente a várias atividades - foi educador, antropólogo, sociólogo, romancista, político, indigenista... e namorador. Escrever sobre Darcy não é tarefa fácil e nem sou eu a pessoa adequada para tratar de cada uma de suas paixões, obras e ardores. Seus frutos, partos e legados já estão muito bem registrados e divulgados em vasta produção bibliográfica essencial para o entendimento da cultura indígena e da formação do povo brasileiro. Farei um simples depoimento de como era a relação familiar de Darcy e como foi minha vivência com ele. Relatar que na infância havia a expectativa de reencontrar o tio doido, que tinha histórias inventivas para as cabecinhas da meninada e planos mirabolantes e audaciosos para a carranquice dos adultos de Montes Claros. Relembro de muitos fatos, desde a minha primeira visita ao apartamento dele em Copacabana, cheio de artefatos indígenas, quando tomei consciência que índio não era bugre, nem bicho, mas um humano muito criativo. Recordo também de suas visitas à terra natal e da procissão de gente norte mineira curiosa para ouvir o falatório destrambelhado e otimista do ministro da casa civil sobre o futuro - do Brasil que poderia ser, que haveria de ser. Viva ainda está nas minhas memórias a viagem ao Uruguai, para visitá-lo no exílio. Em Montevideo, meninote, assisti, caladíssimo, o seu encontro com Jango, Brizola e Waldir Pires, para tratar de assuntos assisados, incompreensíveis para minha pouca idade. Depois, quando ele voltou para o Brasil, em 1968, e foi preso na Ilha das Cobras. Revivo o medo do mano Fred e o meu de mãos dadas com a coragem de Tia Berta para visitá-lo num quase calabouço no presídio da Marinha. Temor que só se abrandava quando o víamos e ouvíamos as suas historietas ledas e espetaculosas. Poderia contar uma série de passagens de sua vida pública, como quando ele voltou em 1974 para ser operado de câncer e a sua insistência em permanecer no Brasil. Ou mesmo, após a anistia aos presos políticos, quando Brizola e ele foram candidatos vitoriosos ao governo do Rio de Janeiro e, posteriormente, sua candidatura ao senado. Seria descomplicado arrazoar pontualmente sobre cada uma das suas obras no Rio de Janeiro e no Brasil, mas para mim o mais interessante é lembrar do que ele falava imaginosamente no cotidiano. Darcy não teve cabresto, não teve rédea, talvez pela ausência da figura paterna em sua criação. Perdeu o pai, Reginaldo Ribeiro, aos 3 anos. Portanto, faltou-lhe a presença da autoridade. Nunca sofreu o mando sobre ele e, por não ter tido filho, não precisou exercer o julgo. Sentia-se uma pessoa livre, solta que tinha como característica maior não se exercer como pai, sua despreocupação em sustentar uma família, em gastar tempo com educação de filhos ou deixar patrimônio material. Cheguei a ouvi-lo dizer que sempre seria um servidor do estado e, por conseguinte, não precisaria criar nenhuma riqueza. Darcy era o inusitado, irreverente até o topo. Nunca podíamos imaginar o que ele iria falar e qual seria a sua conduta para um fato corriqueiro. Não era um comportamento habitual. Normalmente ele tinha uma visão diferente, uma ótica dessemelhante para tudo. Quando indagado sobre qualquer assunto, a resposta era sempre inesperada e, algumas vezes, incompreensível ou até mesmo dura. Cabia a nós decifrar o rebate, pois sempre cutucava, mexia, questionava, ou, no mínimo, nos provocava o pensar. O admirável sobre Darcy era sua erudição. Ele falaria uma tarde inteira sobre galinhas assim como discorreria o dia todo sobre islamismo, mecatrônica ou mesmo sobre minhocas. Por outro lado, ao encontrar alguém que dominava algum tema, fazia questão de ouvi-lo e, se interessasse, ficava horas conversando, extraindo à exaustão todo conhecimento do sujeito. Lembro-me que Darcy, certa vez, encontrou com um senhor que havia sido condutor de tropa (arrieiro, cometa), profissão que existia antigamente. Como não tinha domínio sobre as vivências e habilidades desses bruaqueiros, esmiuçou tudo, perguntou detalhes de cada aparelho e ferragem dos tropeiros. Guardava, sem anotar, todas as informações. Sua memória era fabulosa. À época em que eu fazia mestrado no Ceará, comuniquei a meus pais a intenção em transferir-me para a Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. Passado alguns dias, surpreso, recebi uma carta de Darcy. Achei interessante que, logo no começo, ao me saudar, ele explicou a origem do meu apelido “Ucho”, corruptela de Marucho, filho de Mário. Elucidou a etimologia de Uxor, relativo a “mulhero”, e professorou conhecimentos do idioma grego e de latim. Em seguida, disse que iria para a Europa a estudos. Inicialmente para Inglaterra, a fim de entender por que os negros nunca se consolidaram por lá, por mais que os ingleses estivessem à frente do comércio de escravos. De Londres iria à Espanha, investigar por que os catalães e os bascos insistiam em se separar da Espanha e qual a causa de os povos da península Ibérica quererem tanto se apartar? Iria dedicar a fundo àquelas pesquisas. No meio da carta, logo depois de explicitar seus interessantes estudos e preocupações, escreveu: “bem, mas não é esse o objetivo desta carta. Estou lhe escrevendo porque seu pai me pediu que eu lhe aconselhasse a não largar o seu mestrado, lhe convencesse terminá-lo bem e voltar para Montes Claros..., para casar-se com uma montesclarense, uma mineirinha, arranjar um empreguinho num banco e morrer de medo de ser cornudo. Mas você faz o que bem entender e me liga para dizer o que está pensando da vida”. Darcy sempre nos catapultava, nos lançava para a vida. Continuamente o seu questionamento era um alerta, ou um incentivo pra gente abrir os olhos e dizer: Aah! Lembro-me que, jogando baralho, quando ele precisava de certa carta, começava a solfejar uma música indígena “Hááá Eeia rá reiá A reiá reiá rá Heinahá!”. Dizia que era para dar sorte. Outras vezes, Darcy blasfemava para conseguir a carta: “Exu... Exu... Exu... vai tomar no cu, Exu. Exu vai tomar no cu”. A irreverência dele nessas brincadeiras era imensa. Mas gostava mesmo era de ensinar, de nos desasnar. Porém, quando perguntávamos muito, durante longo tempo, ele se enfastiava e dizia: “ô... vamos parar por aqui, porque eu preciso pensar. Meu trabalho é pensar, necessito de silêncio, tenho que refletir sobre algumas coisas”. E, professava, “pensar cansa e dói e eu ganho é para isso, para pensar”. De vez em quando ele aparecia para passar com a família um final de semana, um feriado, e sempre havia uns fartos almoços. Não raro, minha mãe ou algum parente falava “ô, gente, vamos agradecer, rezar alguma coisa”. Darcy não dava muita bola para esses ritos religiosos. Ficava na dele, mas, às vezes, alguma visita inadvertidamente dizia: “ah... Darcy podia rezar pra gente”. Aí, meu pai retrucava, “não mexe com Darcy não, deixa Darcy...”. Mas insistiam: “Não... não, Darcy, reza aí”. Ele, então, rebatia assim: “ó... eu rezar o que? Eu não acredito em Deus! Não acredito por culpa Dele! Ele não é onipotente, onipresente?” E destrambelhava, olhando para o céu: “ô Deus, você podia ter me dado fé, mas não me deu, a culpa é sua. Você não é o todo poderoso? Eu podia estar aqui igual todo mundo, morro de inveja desse pessoal que acredita em Você, que tem fé, mas eu não tenho e a culpa é unicamente sua. Se quiser que eu passe a respeitá-lo, eu posso até propagá-lo, mas antes disso terá que me dar fé, mas como Você nunca me deu..., estou aqui aguardando”. Curioso é que Darcy não escrevia os seus livros, nem a mão, nem à máquina, pois não sabia datilografar, como também não sabia dirigir autos. Ele ditava suas publicações... se sentava numa posição de yoga, com as pernas cruzadas em um sofá especial do apartamento e ditava o texto para um gravador que ficava no seu colo. Passávamos longe para não incomodá-lo. Era capaz de passar três, quatro, cinco horas falando em voz alta. Depois suas secretárias colocavam aquelas fitas no aparelho de toca cassetes e, enquanto ouviam, registravam tudo que foi dito. Lembro-me de um pedalzinho que parava a fita, para pausar o áudio enquanto as anotações eram feitas. Tudo era datilografado em espaço dois e o primeiro texto escrito era entregue a Darcy para as devidas correções. Eram dias inteiros naquele trabalho: gravar, digitar, corrigir, revisar, datilografar de novo. Quando ele estava em casa, trabalhava o tempo todo. Nunca vi alguém trabalhar tanto e ser tão ocupado. Era um cara diferente, genial, criativo e afoito. Ousava ter ideias próprias, em vez de ser um aplicado comentarista das ideias alheias. Meu pai dizia, “ô, Darcy, você não foi parido por minha mãe, você foi fundado, teve fita para cortar e banda de música”. Enfim, o importante é que Darcy era um homem de fazimentos, era um homem que não se aquietava hora nenhuma. Ele sempre dizia: “eu só descanso fazendo outra coisa. Quando estou cansado de alguma coisa, eu passo a fazer outra”. Ele era uma pessoa que gostava de fazer, de construir, de realizar, tanto que idealizou, fundou e co-fundou o Museu do Índio, o Memorial da América Latina, o Parque Indígena do Xingu e a Universidade de Brasília - UnB. No Estado do Rio de Janeiro, criou a Universidade Estadual do Norte Fluminense, idealizada para ser a Universidade do Terceiro Milênio; o Sambódromo, a Casa Laura Alvim, a Casa França Brasil e a Biblioteca Pública do Estado do Rio de Janeiro. Tombou 100 quilômetros de praias do litoral sul fluminense e implantou a fábrica de escolas, além de elaborar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A maior das suas paixões foi a educação. Era indignado com a educação brasileira. Advertia que, em todo o mundo, o ensino fundamental era em tempo integral. Não existia no planeta escola de meio horário, aula só de manhã ou só à tarde. Darcy escancarava que “nenhum país decente tem menor abandonado. No Brasil, você não vê carneiro, porco ou bezerro abandonado, mas criança abandonada, sim. Isto é a coisa mais triste do mundo”! Nos governos de Brizola, Darcy dedicou-se à implementação dos 506 Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), que ofereciam educação em tempo integral e gratuita para crianças e adolescentes de baixa renda do Rio de Janeiro. No período da manhã os alunos tinham aulas das disciplinas regulares e, no período da tarde, recebiam reforço escolar, formação técnica profissional, esportes e educação artística. Alguns dos CIEPs atuaram como casas de amparo às crianças de rua. Os governos posteriores repudiaram o projeto de Darcy e deixaram de investir nos CIEPs. Os prédios foram transformados em escolas comuns da rede estadual de ensino e o sonho da escola pública de tempo integral foi ignorado. Resultado: a profecia de Darcy se tornou realidade: “Se nossos governantes não investirem em escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construírem presídios”. Sua maior repulsa era a “esses prefeitinhos que desviam dinheiro da educação, que têm a obrigação de gastar vinte e cinco por cento da receita municipal na educação e gastam o dinheiro com outra coisa ou roubam a merenda.” Darcy tinha verdadeira aversão a essas pessoas. O melhor de Darcy era o amor pela vida, a alegria de viver. Ele ficou muito aborrecido quando soube que findaria. Tinha mil coisas para fazer e indignava-se com aqueles que se acomodavam e deixavam a vida passar. Ele daria tudo para ter mais um ano de vida, e realizar mais alguns projetos. Darcy nos comovia, instigava-nos a viver, a acreditar que podemos melhorar o mundo, que o Brasil é a grande nação, que esse país poderia ser passado a limpo. Despertava nossas consciências ao afirmar que “o Brasil já é a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural. Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potência econômica, de progresso autossustentado.” Vaticinava que a América Latina será a nova Roma, uma Roma melhor, porque lavada em sangue índio, em sangue negro e que as grandes transformações, mesmo com tantos deslizes, irão surgir e florescer nessa nova civilização, mestiça e tropical, que está sediada na província mais bonita, mais generosa, mais fraterna do universo. Enfim, o seu maior legado foi o amor à vida, ao Brasil, a América Latina, a tudo. * Ucho Ribeiro é sobrinho de Darcy, filho do ex-prefeito de M. Claros, Mário Ribeiro, e depois, por sua vez, vice-prefeito. É funcionário aposentado da Receita Federal. |
Por Ucho Ribeiro - 13/4/2022 08:08:14 |
HAROLDINHO, L`ENFANT TERRIBLE Hoje morreu-me mais um. E este foi um dos bons. Do coração. Meu irmão, meu amigo, meu irreverente mentor, meu "open mind". Leu tudo, sabia de tudo, porém exorbitava ao dar a sua interpretação para a vida, pois desprovia de toda e qualquer praticidade. Delirava em ideias e projetos para o mundo, cabeça nas nuvens. Nunca aterrissou, não tinha os pés no chão. Todo amigo é “porreta” e a grande merda de envelhecer é ver os nossos especiais morrerem. Mas Haroldo Costa Tourinho Filho, Cab´s, Cabaret, foi um desses admirados não só pela cúmplice amizade, mas pela audácia. Creio que seu atrevimento veio por ser um beatlemaníaco de primeira hora. A proposta inicial da banda inglesa era causar incômodo. Haroldo, fã incondicional, baterista, ficou insolente como os beatles, e pra nós, mais jovens, aquilo tudo era divertido e corajoso, pois não deixava de ser uma voz contra a autoridade careta. Desafiava os mais velhos e ironizava a carranquice curraleira de Montes Claros. Alertava-nos que o mundo estava a virar de ponta a cabeça e caçoava a rapaziada da terrinha que achava a Exposição Rural o maior espetáculo da terra. Haroldo vivia sintonizado no mundo, estava ligado no desenrolar dos protestos estudantis em Paris, na guerra do Vietnam, em assistir a peça Hair, em vadiar por Piccadilly Circus, Trafalgar Square e Soho em Londres, em assistir um show de rock no Cavern Club, em saber sobre os lisérgicos tours no Central Park em New York, e, principalmente, onde conseguir o último álbum dos Beatles ou dos Rolling Stones. O conheci em março de 1974, ele morava na rua da Bahia, em frente ao Cine Guarani em Belo Horizonte, no quarteirão do Maleta. Meses depois, com a minha ajuda para carregar sua copiosa discografia e biblioteca, mudou-se para a rua Guajajaras e passou a ser meu vizinho. Quando eu não estava na faculdade era certo me encontrar em seu apartamento sempre numa conversa plural a palpitar sobre os grandes problemas do mundo. Cinéfilo como eu, íamos ao cinema com frequência e de lá empoleirávamos em algum bar para fazer a resenha do filme. Antes da meia noite eu pegava o caminho de casa e Cabaret continuava pela madrugada adentro. No dia seguinte, eu acordava e ia para a faculdade e ele matava aula, pois dormia a manhã inteirinha, abraçado aos livros. Era urbano, citadino, boêmio, noctívago, como tantos dos meus melhores amigos. Um espécime raro em extinção. Tinha uma sapiência vadia, sem objetividades, moléstia comum de um segmento da intelectualidade mineira, que tudo quer ler, de tudo quer saber, por pura fruição. Para esta casta letrada o saber não tem serventia para o que é funcional, prático. Haroldo era erudito em todas as nuances e sutilezas, mas com arrogâncias afloradas à medida que o grau etílico aumentava. Não era alguém que dava palpite raso, como muitos senhores do achismo. Falava com conhecimento profundo, porém quando avinhado dava aflição vê-lo manifestar sua opinião, muitas vezes desmedida. Abusava de toda a sua erudição para participar de um bate papo trivial num boteco, ficava prolixo e tornava o papo enfadonho. Sabia o suficiente sobre direito, política, arte, literatura e qualquer outro assunto que não fosse vulgar. Por diversas vezes o ouvi aniquilar certas pessoas néscias com uma frase, embora o ofendido por ignorância não entendesse o tiro certeiro e devastador. Haroldo foi uma mistura de Roniquito Chevalier e Charles Bukowski tupiniquim. “Sóbrio, era um gentleman. Bêbado, ficava destemido, adotava um temperamento belicoso. Ninguém podia ser patife perto dele. Os conhecidos não ousavam, pois seriam desmascarados”. Não raro, Cabaret levava uns esbarros de alguns chucros desvelados. O seu conhecimento era de uso frívolo, especulativo, imaginoso, não o utilizava para a gestão da sua vida e do seu sustento. Foi um pródigo. O que tinha gastava hoje, não tinha amanhã. Viveu a vida conforme suas concepções, audacioso e petulante, sem hipocrisias. Sempre de cabeça em pé, orgulhoso. Eu invejava sua coragem. Fui seu padrinho de casamento e ele o meu primeiro empregador, quando ocupou um elevado cargo no Ministério da Educação, em Brasília. Eu era seu funcionário amanuense durante o expediente e assíduo parceiro de gole à noite. Muito do que eu escrevi, Haroldo copidescou com maestria. Era um bamba na pena. Certamente deve ter muita coisa escrita e guardada no seu apartamento. É premente achar os seus originais e publicá-los. Sua responsabilidade, viu, Henrique! Na quarta-feira, 23 de março, como fazia sempre, encaminhou-me copiosa postagem da Folha de São Paulo e, em seguida, pediu-me para ser internado no Hospital Aroldo Tourinho, pois estava fraco, com dificuldades para respirar. Liguei para o provedor Paulo Cesar Almeida, que foi de uma atenção desmesurada, gentilíssimo. Haroldinho, ao chegar no hospital, mandou-me sua última mensagem, em gratidão: “queixo caído com o apartamento do PC: geladeira sofá, poltrona, netflix, terraço...estou no céu.” Horas depois, seria encaminhado para o CTI e intubado. Adiou o que pode o seu internamento, só pediu ajuda no finalzinho para preparar o seu mergulho para a morte que o vinha cercando fazia tempo, com toda a naturalidade de quem sabia que chegara a hora de reciclar-se para a vida eterna. Parodiando Mario Varga Llosa, o mundo dos rebeldes com frequência é pago com os seus desejos, mesmo sem desistir deles. A vida não é a busca de um ponto de chegada, mas a degustação de uma série infinita de caminhos, de encruzilhadas, de decisões e dilemas. Para estes sonhadores não há ponto de chegada, apenas um caminho ao longo do qual eles querem continuar. A vida se sustenta em seu próprio curso, em seu próprio movimento. O importante não é chegar. O importante são as descobertas, as experiências, as aventuras da jornada. O que os enriquecem, o que os fortalecem e o que os fazem ser verdadeiramente livres é continuar a viagem. Boa viagem, meu querido. Vá em paz meu amigo, irmão, protetor, professor, guru, parceiro, afilhado, meu utópico sonhador. Descanse, menino, com todos os livros e alfarrábios do universo a sua volta, seus verdadeiros e grandes amigos, pois sei que você levou mais horas da sua existência lendo prazerosamente do que vivendo. Um beijo terno do para sempre amigo Ucho. |
Por Ucho Ribeiro - 14/12/2018 10:28:40 |
VIVENDO DE AMOR Ao escrever “Cine São Luiz, meu Cinema Paradiso” contei que o padre da cidadezinha italiana, onde se passa a história, censurava os filmes a serem exibidos, por questões morais e religiosas. Exigia que todas as cenas de beijo, por ele consideradas obscenas, fossem cortadas pelo projecionista Alfredo. Aqui no Norte de Minas, aconteceu um fato semelhante. Antigamente, como havia dito, antes de iniciar a exibição do filme, tocava-se um prefixo musical para alertar a plateia que o espetáculo iria começar. Numa vizinha cidade, que por discrição não cabe mencionar o nome, a música executada não era sempre a mesma, como em Montes Claros. Tocavam-se os “Tops” das paradas de sucessos das rádios. O público ao entrar no cinema, informava ao bilheteiro a canção que gostaria de ouvir, e este avisava ao operador da cabine de projeção a mais votada para ser tocada na possante vitrola radiofônica. Naquele ano, 1960, o sucesso das paradas era um antigo sambinha, composto em 1936 por Lupicínio Rodrigues, mas muito bem revigorado na voz da promissora cantora Elza Soares – “Se acaso você chegasse”. Nome do seu primeiro long play. A rapaziada, ao entrar no cinema, pedia “bota a Elza para nós”. O refrão da música dizia: “De dia me lava a roupa... de noite me beija a boca, e assim vamos vivendo de amor”. O velho sacerdote da cidade, ranzinza e moralista, tinha pavor do “me beija a boca”, e do “vivendo de amor”. Nos sermões, desancava a canção e a pouca vergonha da letra. Vetou sua execução nas quermesses, nos leilões e proibiu de tocarem a música nas sessões de cinema. A revolta foi geral. Na igreja e nas quermesses o padre mandava, mas no cinema já era demais. O povo protestou e decidiu que, se não voltasse a tocar o disco da Elza Soares, todos deixariam de assistir os filmes. O dono do estabelecimento, vendo que seu negócio ia naufragar, entrou num acordo com o sacerdote. Uma censura pontual. Levou o padre até a cabine de projeção, mandou tocar o disco e, com o dedo marcou o exato momento do “beija a boca”. Retirou o LP do prato e, em seguida, entregou ao padre uma tesoura para que ele fizesse um pequeno risco na parte pontuada. Feito o serviço, o proprietário do cinema consultou o sacerdote: - Pronto, Reverendíssimo? Agora podemos tocar o disco? O padre, todo inchado, vitorioso, autorizou: - Pode! Na sessão daquela noite, sala cheia, todos na maior expectativa, depois de terem votado quase unanimemente no sucesso de Elza Soares, caíram na gargalhada ao ouvir a música. A emenda ficou pior que o soneto. Com o risco do padre o sambinha ficou assim: “‘... de dia me lava a roupa..., de noite fuc, fuc, fuc..., e assim vamos vivendo de amor...”. |
Por Ucho Ribeiro - 3/12/2018 10:16:11 |
“TEM GENTE!” A Vila das Formigas cresceu recheada da alegria das mulheres-damas. Nunca segregou ou delimitou a sua zona boêmia. Casas de encontros, algumas exuberantes, ocupavam as ruas centrais do povoado. Putas de todos os quilates enxameavam livremente o comércio nos dias de feira e, aos domingos, frequentavam as missas, mais para se mostrarem do que por religiosidade. Para chamar a atenção, chegavam com o culto iniciado, exalando o eterno pachuli e exibindo vestidos de sedas e rendas raras. As esposas dos cidadãos assistiam a tudo caladas, sem direito a pio ou resmungo, com os olhos invejosos na opulência das vestimentas das raparigas dos seus maridos. Eram as mulheres dadivosas, sempre alegres, esperando... Famosas putas marcaram época em fases diversas da história municipal, com os seus inesquecíveis apelidos: Mariquinha do Arraial, Maria Serrana, Canarinha, Chiquinha Baronesa, Douradinha, Aninha Parafuso, Mariazinha C* de Ferro e, ultimamente, Roxa, Leobina, Zinha, ... Em sua obra, Guimarães Rosa conta sobre a contumaz fartura boêmia montes-clarense e chega a destacar, na novela “Dão-Lalalão” (Corpo de Baile), o romance de Soropita, vaqueiro e ex-jagunço que, apaixonado pela faceirice sensual da “militriz” Doralda, mulher que é ”o estado de um perfume”, a retira de um bordel de Montes Claros para fazer dela sua esposa. A atual rua Padre Teixeira, em tempos idos, chamou-se rua da Raquel, por nela residir uma cobiçada dama, com sangue hebraico, que o povo dizia ser turca. Ela veio do Recife para a Vila das Formigas, amasiada com um vigarista, jogador de baralho que, depois de limpar muitos patos, foi flagrado em trapaça e acabou espetado numa casa de jogo. Raquel, desimpedida, sentiu-se livre para disponibilizar os seus atrativos e seu irresistível poder de sedução. Passou a atender, reservadamente, cavalheiros recatados e abonados. Com o tempo, sua fama propagou-se devido às lascivas e exclusivas peripécias, práticas desconhecidas do mulherio local do metiê. Raquel residia defronte ao escritório de Waldemar Tic-tac, contador metódico e obcecado em controlar tudo à sua volta. De olho no relógio, sabia o horário da chegada e saída de todos os funcionários do comércio e fazia um verdadeiro rastreamento na rotatividade da madama. Os clientes dela tinham horários pré-estabelecidos de permanência, hora e meia, e a entrada a sua casa era precedida por uma batida na porta com um repique em código previamente definido. Batida certa, toc-toc, totoc, porta aberta. Certa feita, um mancebo erado do Brejo das Almas, atraído pelas prendas da loba hebraica e desavisado, veio bater à sua porta sem prévio agendamento. Batia, dava um tempo, batia de novo e nada... Waldemar Tic-tac, do lado oposto da rua, já registrara pela janela do escritório que um velho freguês havia entrado na casa alguns minutos antes e devia estar a desfrutar o seu tempo. Assim, ao ver o rapaz insistir nos batimentos, não se conteve e bradou: – Oi! Pst! Psiu! Ô moço, não tem ninguém aí, não! – É, parece que não, mesmo... Eu bato e ninguém responde. – Ora, desconfia, rapaz, se você bate e ninguém atende, é porque tem gente! Xispa! |
Por Ucho Ribeiro - 27/11/2018 16:48:55 |
Cine São Luiz, meu Cinema Paradiso UCHO Ribeiro A maior diversão da minha infância era o cinema. Fonte de riso e alegria. Queria ver todos os filmes, porém, a rotina de escola, deveres escolares, catequese-cruzadinha, intermináveis missas e a pouca idade para assistir a certos filmes, impediam-me de realizar o sonho. Tudo precedia ao cinema: - Você só vai à matinê depois de estudar... - Se não tirar nota boa, nada de filmes... - Cinema, só depois de ouvir missa e comungar... O pior castigo era ser privado do prazer de sonhar e deliciar-me com as histórias cinematográficas. Hoje, com a tecnologia do "streaming" e "download", os meninos veem os filmes que quiserem, a qualquer tempo, sem nenhuma restrição ou censura. Fico a imaginar se, nos velhos tempos, tivéssemos à mão a "Netflix", "Amazon Prime", o "You Tube", as redes sociais, o que seríamos atualmente? Para termos acesso a uma putariazinha mínima, tínhamos que conseguir algum exemplar do catecismo do Carlos Zéfiro, coisa das mais difíceis e sigilosas do mundo. Atualmente, a criançada tem tudo, o possível e o inimaginável, na palma da mão, através de seus celulares e "tablets". As sessões do São Luiz aconteciam às 16 e às 20 horas. Nos finais de semana, havia as seções extras de 14 e 22 horas e, especialmente, aos domingos, passavam filmes às dez e meia da manhã, para pegar a garotada saindo das missas. Lembro-me na igreja, o corpo presente, mas a mente mirabolando longe, no tiroteio dos faroestes, no futebol do Canal 100 ou nos outrora filmes bíblicos Ben Hur, Sansão e Dalila... A entrada dos cinemas era inundada de crianças a espera do espetáculo. Umas teatralizavam o que veriam, com todos os gestos, uivos e bang-bangs; outras trocavam figurinhas do último álbum e algumas expunham nas calçadas os seus gibis, já lidos, para serem comercializados. Vendiam apenas o suficiente para obter o dinheiro do ingresso. Terminada a missa, eu saía da Matriz direto para o São Luiz. Não desviava um passo do trajeto. Tinha uma "permanente", entrada franqueada concedida às famílias sócias dos cinemas. Subia correndo a escada lateral, que levava ao segundo piso, onde ficava a sala dos mistérios - o recinto da projeção era um útero pra mim. Ali, sentia-me protegido, confortavelmente instalado, observando e descobrindo detalhes no que eu mais amava, a mágica cinematográfica. Ao adentrar a ilha, cumprimentava Osmar, o projecionista do filme, que era o meu Alfredo do Cinema Paradiso. Ele, quase sempre calado, me respondia com leve aceno de cabeça e continuava a revisar os rolos do filme a ser projetado. Naquela época, um filme de quase duas horas, ocupava entre cinco a seis rolos de fita. A sala de projeção possuía normalmente dois projetores, que se revezavam. Colocavam-se os dois primeiros rolos nas máquinas e, à medida que um terminava, era logo substituído pelo seguinte. Enquanto um rolo era projetado, o outro era carregado pelo operador. Ficava encantado com Osmar tirando o filme da bobina e colocando-o no projetor. Os furinhos nas laterais da película se encaixavam nas rodas dentadas da máquina, que iam puxando a fita e fazendo cada fotograma do filme parar diante da luz e se tornar imagem. Era tudo ligeiro e misterioso. E o mais incrível foi entender a explicação de Osmar: - A cada segundo, 24 fotogramas passam pelas lentes e essa é a velocidade que faz com que a imagem pareça estar em movimento. Bingo! Ali estava a mágica. Para quem assistia ao filme, sentado nas poltronas, era tudo fantasia: luz, som e sonho. Mas eu, na sala de projeção, via a luz passar pelo obturador, a plaquinha de metal que, segundo Osmar, antes de iluminar o filme, girava e bloqueava a luminosidade durante a passagem de um quadro a outro. Assim, durante a fração de segundo em que o fotograma ficava parado, era iluminado por uma forte luz emitida pela queima de um lápis de carvão, que se consumia incandescentemente. A fita entrava na máquina de cabeça para baixo e, ao ser iluminada, passava por uma lente, onde a imagem era invertida e então projetada na tela. Descobri também que, durante a projeção, um aparelho lia o som a partir de uma faixa magnética afixada na lateral da película, semelhante a uma fita cassete. Esse equipamento convertia as informações em um sinal elétrico enviado a um amplificador que, por sua vez, mandava-o para os alto-falantes do cinema. Para entrar em sincronia com a imagem, o som ficava entre 19 a 20 frames adiantado. Daí que aprendi a diferença entre a velocidade da luz e a do som. Ao final de cada rolo, o filme era colocado em outra bobina, disposta em uma bancada, e então eu ajudava o Osmar a rebobiná-lo, girando a manivela para voltá-lo ao começo. Nessa bancada, utilizada também para cortes e remendos das fitas, era onde eu tinha acesso aos meus maiores tesouros: os pequenos pedaços das películas. Eram tiras com vários fotogramas que o Osmar me dava ou eu sorrateiramente surrupiava. De posse dessas preciosidades e dos tocos dos bastões de carvão queimados, me sentia o tal. Recordo muito das quebras das fitas, do barulho das máquinas, flaup-flaup-flaup, do clarão da projeção na tela, das vaias dos espectadores, dos gritos “Ô Jacó!”, pois nesses momentos dos remendos dos filmes era que sempre sobravam umas tirinhas de película para eu guardar e deliciar-me mais tarde. Meu sonho era aprender a colocar a fita no projetor, mas isso o Osmar não deixava, e permitia apenas que, após deixar o cinema à meia-luz e recolher as cortinas, eu rodasse, no simplório projetor lateral, o disco com slides de propaganda das lojas comerciais, ao som do prefixo musical “Love Letters”, by Victor Young(*). Com o tempo, essa tarefa tornou-se sem graça, mas, mesmo assim, sentia-me um assistente da arte cinematográfica. Hoje, mais velho, revejo sempre o filme “Cinema Paradiso”. É uma carta de amor ao cinema e assisti-lo é sempre uma alegria. Muitos amantes da sétima arte classificam esse filme como o seu favorito, pelo enorme charme da história, pela visão nostálgica dos vários filmes mostrados na película e pelo efeito que eles têm na vida de um garoto (Toto), que certamente é o roteirista/diretor Giuseppe Tornatore. O menino cresce dentro da cabine do projecionista Alfredo e ao redor do cinema da cidadezinha italiana. Entretanto, o mais encantador do filme está nas reminiscências de Toto, que registra a vulnerabilidade de nossos sonhos e memórias. Ele lembra que o padre da cidade, o proprietário do cinema, por questões morais e religiosas, censurava todos os filmes a serem exibidos, exigindo que todas as cenas de beijo fossem cortadas pelo operador Alfredo, tidas como obscenas pelo sacerdote. Trinta anos depois, Toto, já homem feito, cineasta famoso, vai até a sua cidadezinha, ao velório de seu amigo Alfredo, que lhe deixou um pequeno presente em uma lata de filme. A história se encerra com a projeção da singela montagem de todos aqueles beijos proibidos recortados das películas. Uma cena repleta de momentos de paixão e sensualidade. Para mim, o mais belo e emocionante final de filme. The End. (*) Obs: Prefixo musical do Cine São Luiz (Década de 60): “Love Letters”, by Victor Young (https://www.youtube.com/watch?v=7JlKWWJdY7U). Prefixo musical do Cine São Luiz (Década de 50): “Jurame”, de María Grever (https://www.youtube.com/watch?v=dZb8W-ln-jU). Prefixo musical do Cine Fátima: “Doucement”, by Jean Paques (https://www.youtube.com/watch?v=4kR8TjHx8I8) |
Por Ucho Ribeiro - 19/11/2018 11:25:13 |
VADE RETRO Aracy teve uma vida difícil. Nasceu numa família pobre, pai alcoólatra, mãe caixa de supermercado, foi aluna de escola pública suburbana e a única filha no meio de quatro irmãos, marmanjos que viviam à toa. A dura realidade a fez perceber que sonhos de bela adormecida e príncipes encantados não se realizariam. Entendeu, menina, que só o estudo lhe daria a chance de sair daquele fado de pobreza. Após a escola, empacotava feiras no caixa da mãe, dando a ela as gorjetas recebidas para ajudar nas despesas da casa. Dedicava o tempo que sobrava às tarefas escolares e à leitura. O empenho nos estudos a fez arranjar emprego de escriturária numa contabilidade do subúrbio. Ralava seis dias por semana, fazia horas extras e nunca tirava férias. Num dos serões, casta, caiu na lábia de um habitual galanteador, com promessas de casamento e vidinha do lar e acabou buchuda. Mãe solteira. Desabaram as quimeras e ilusões. Aracy isolou-se, pactuou-se com a amargura. Sua vida restringiu-se a educação de Esperança, sua filha. Ela, sim, teria uma vida de sucesso, seria bem casada, lhe daria netos e orgulho. Criou a miúda com toda proteção e nos melhores colégios possíveis, sempre a alertando sobre as maldades do mundo e a lábia dos garanhões indolentes. Nada de namoro, festinhas e más companhias. A cada amizade que Esperança iniciava, era logo sabatinada sobre a origem e as intenções do pretendente. Afora o seu diuturno trabalho contábil e a sua fiscalização a rédeas curtas da vida da filha, Aracy se dedicava orgulhosa ao seu curso de advocacia por correspondência e ao estudo do latim. No seu cotidiano, utilizava de frases latinizadas para alimentar seu ego e impressionar seus compartes contadores. Até mesmo em casa abusava da língua mãe para falar com a sua filha. Se a menina se preparava para sair, ela logo questionava: - "Quo vadis", Esperança? - Mãe, vou encontrar com uns colegas de escola. - "Nota bene", o "status quo" não está mole, evite "persona non grata". Se eu te pegar "in flagrante delicto", você vai ter comigo. Ninguém vai abusar da minha filha. Você veio ao mundo para bradar: "Veni, vidi, vici!". Lembre-se, sempre: É "sine qua non" permanecer pura até o casamento! Os anos passaram, Esperança, mesmo sobre vigília intensa, namorou, noivou e casou. Na despedida para a lua de mel, ouviu de Aracy: - Cuidado, todo o cuidado quando estiver "in natura" com ele. Se dê ao respeito. Olha o "modus operandi" que te ensinei. A viagem de núpcias ocorreu sob uma expectativa imensa. Aracy nunca tinha ficado tanto tempo longe da filha e fez de tudo para não ligar e escarafunchar detalhes. Na volta da sua cria, inquiriu sobre toda a viagem de núpcias, até que fez a sua derradeira pergunta: - E aí, minha filha, "consummatum est"? Esperança assentiu com a cabeça, levantou as pálpebras, e confidenciou com os olhos bem abertos: - E "oeste", mamãe. |
Por Ucho Ribeiro - 12/11/2018 11:09:42 |
QUINCA Quinca era um menino danado. Traquinas. Adorava um mal feito bem feito, sem rastros. Os mais velhos sabiam ser ele o autor da arte, mas não tinham como provar. Bom aluno, bom de bola, enturmado e presepeiro com a molecagem de dentro e de fora do colégio. Ao chegar da aula, fissurado numa pelada, jogava o uniforme para o lado e despencava para um campinho a fim de não perder o racha. No final do ano, no encerramento do primário, uns padres de batinas pretas passaram a ser frequentes em sua escola. Visitavam as salas de aula, propagandeavam sobre vocação sacerdotal, sobre a alegria de viver para Cristo, e pormenorizavam a “divertida” vida eclesiástica. Profetizavam que entre cada atividade de estudo e rezação, havia muito futebol, natação e outros esportes, pois na educação cristã moderna devia prevalecer o ideal da mens sana in corpore sano. Secavam os alunos de inveja ao contar que, nos finais de semana, os seminaristas participavam de torneios esportivos e acampamentos em cavernas e rios. A meninada crescia os olhos, afinal, o melhor time da cidade era o dos padres. Além disso, havia as artes cênicas, o teatro, a possibilidade de subir nos palcos e apresentar as peças por Minas afora. E a piscina? Coisa rara. O sonho da molecada, que só tinha os rios para nadar. Quinca não entendia como aqueles garotos tímidos e ingênuos, enclausurados naquele mosteiro, eram tão bons de bola. Mas embalado pela música da copa de 58: “A taça do mundo é nossa, com brasileiro não há quem possa”, não resistiu à goma teológica-futebolística, chegou em casa, assertivo: - Mãe, eu quero estudar no seminário e ser padre. A mãe, que há tempos passava o dia em preces para que seu rebento não puxasse à boemia do pai, teve certeza de que a decisão do filho era a resposta a suas orações. - Você quer mesmo ser padre, meu filho? - Quero, mãe! - Quinca, Quinca, isto é coisa séria. É juramento para o resto da vida. - Eu sei, mãe. Só preciso da autorização da senhora e do pai pra levar pros padres. - A minha tá concedida, difícil é seu pai aceitar. Ele tem uma birra com igreja e com padre. Dia seguinte, eis que chega o marido meio alto, depois de tomar umas e outras, envolto em aromas de perfumes baratos. Dona Ruth subiu nas tamancas: - Muito bonito, Seu Lourivaldo! Não dorme em casa e chega alcoolizado com este futum de rapariga. - ... - É melhor ficar mudo mesmo. Quem tá calado, tem culpa. Mas é bom estar ciente que Quinca não vai seguir seu rastro, não. Quinca vai ser é padre. Isto mesmo, pa-dre! Pelo menos ele vai se salvar desta sina de randevu e cachaça. - Padre, o cassete! Filho meu não veste batina! - Mas pai, eu quero e acho que tenho vocação - argumentou, Quinca. - Veremos... Aquela notícia desmontou o pai. Ficou encucado: - “Imagina só, Quinca padre? Era só o que faltava. Um capetinha desse ser projeto de santo. Isto só pode ser armação de Ruth para infernizar minha vida”. Dias depois, Lourivaldo encontrou com o seu compadre, Zeca de Ferraz, chefe político do município, padrinho de Quinca. Era um gordão sorridente, imenso. Um popular glutão que vivia cercado de comida e de gente embasbacada diante de sua sagacidade política. Não trocaram meia dúzia de palavras e Lourivaldo confessou sua lástima. - Compadre, compadre, cê precisa ver o que sua comadre Ruth está querendo fazer com o seu afilhado Quinca. Quer transformar o menino em padre. Logo o garoto, que é um triquetraz, esperto pra danar, dá nó em pingo d’água, pode ser tudo na vida e vai ser desperdiçado numa beatice dessas. Só o senhor me ajudando, dando uns conselhos pro pequeno e pra mãe dele. Zeca permaneceu calado por um instante e disse: - Lori, diga a comadre Ruth que eu estou com saudade do franguinho com ora pro nobis, que só ela sabe fazer. Avise que passo lá pra almoçar no domingo. E lembre-se de debrear na bebida neste resto de semana. Fique mansim, mansim... Avisada a patroa, Lourivaldo ficou domesticado, regulado na bebida, ciscando maneiro dentro de casa até que chegaram o domingo e a esperada visita do compadre Zeca. Tudo corria bem, Ruth gostava do compadre pela sua gentileza e apreço que tinha com a família. Já havia servido tira-gostos, cervejinha, e ficou na cozinha arrematando o frango tão esperado, mas de escuta nas conversas dos compadres, pois o coronel sempre dava noticias sobre os fuxicos recentes. O papo ia de vento em popa, quando de repente Zeca de Ferraz perguntou a Quinca, que a tudo escutava: - E você, meu afilhado, o que você vai ser quando crescer? - Ô, padrinho, eu vou ser padre. Ano que vem já vou pro seminário, né, mãe? - Que isso, menino, num esperdiça sua vida, não. Cê pode ser tudo, basta querer. Imagina você piloto de avião, craque de futebol, marinheiro, cientista? Você pode morar no Rio de Janeiro, em Nova Iorque, em Paris. Eu sou seu padrinho e vou te ajudar a ser o bamba... Pronto. Foi o que bastou para dona Ruth, lá da cozinha, sair da toca: - Compadre, com todo o respeito, não vem que não tem. Já percebi que este frango é pura armação sua e de Lourivaldo pra dobrar o pobre do Quinca pra não ser padre. Pode tirar o cavalo da chuva que o Quinquinha vai ser padre mesmo. Já tamos decididos. O silêncio tomou conta da casa. Aos poucos a conversa tomou rumo de chuva, da dificuldade com a criação na seca, até se aprumar de novo com as perspectivas da eleição e a necessidade de visitar os currais eleitorais. Entre uma e outra cerveja, Zeca resolveu esvaziar a bexiga e pediu seu afilhado para encaminhá-lo até o banheiro. Lá chegando, retomou a conversa antes interrompida. - Quinca, quando tinha sua idade, eu também estava decidido ser padre. Cheguei até a entrar no seminário. Nesse mesmo que você está pensando em cursar. Mas é bom você ficar sabendo de uma coisa... Seu Zeca começou a afrouxar o correão, que apertava sua enorme pança, baixou as calças, e arrematou: - A primeira coisa que os padres fazem com os novatos que chegam ao seminário é cortar o pinto deles pela metade. Veja a maldade que fizeram com o meu. Eu acho até que eles cortaram mais que a metade, não acha? A vocação sacerdotal escafedeu-se. |
Por Ucho Ribeiro - 5/11/2018 20:11:04 |
INFLUENZA Os antigos dizem que os dois tipos de homens prestantes, que Pedra Azul melhor sabe fazer, são o matador de gente e o amansador de burro. Ao amanhecer, nas fazendas daquelas terras, a garotada sai pros pastos atrás de um animal, que a servirá o dia inteiro, no curral, no aparto e na solta do gado, na ida pra escola, no retorno e nas estripulias do resto do dia. À noite, as mães têm de ralhar para apartar os meninos da tropa. O apego é demais. A afeição, desde a infância, pelas montarias, forja apelidos pelo resto da vida: Pedro da Jega, Mané Minha Égua, Tamburete de Piquira, Funga Cio, Zé Tiché. Na chacota, os mais idosos arreliam a meninada dizendo que a namorada deles é a Maria Rincha. Brincadeira que tem um fundo de verdade. Tem muito moleque que nervoso escancara o ciúme pela sua eguinha. Não deixa nem o melhor amigo passear com sua bichinha. A garotada cresce subindo nos cupins da fazenda, conhecendo-os pelo aprumo ideal para o alcance da namorada e pelo resguardo para não ser flagrado. Quando um menino desaparece com a sua montaria, os homens velhos e novos já sabem o destino. Pedro da Jega, por exemplo, ganhou o afetuoso apelido porque o fazendeiro o mandou pegar uma jumenta no brejo e, por estar demorando demais, foi atrás pra conferir. Chegando lá, avistou Pedro em cima de um cupinzinho, abraçado no traseiro da jerica. Foi quando, gaiato, gritou: - Pedro! Pedro! Empurrando ela não vem não! Se você não puxar pelo cabestro a jega vai ficar aí empacada a manhã inteira. Na fazenda dos Antunes havia uma ninhada de meninos excitada com uma tropa nova, recém-chegada, sortida de potras e éguas mansinhas de passar por baixo. A meninada arteira era de idade variada. Os mais novos apreendiam com os mais velhos a montar, cavalgar e arrear os animais, bem como domar as éguas e até ferrá-las e ferroá-las. Tiziu, azarado, um dos menores garotos, gripou nas férias e a mãe não o deixava brincar com os outros, queria que ele ficasse deitado tomando chazinho de capim cidreira com gengibre. Nada de sol quente e travessuras. O coitado estava pra morrer de tristeza, preso ali no quarto, só vendo pela janela, os amigos naquela arrelia e satisfação. Ao perceber que seus companheiros agruparam a eguada e a tocaram para a baixa perto do rio, onde estavam os cupins mais apropriados, não aguentou, pulou da cama decidido. Ao passar esbaforido pela sala, sua mãe ralhou: - Perái, Tiziu! Onde cê pensa que vai? - Ô Mãe, eu só vô ali, rapidim, comê as éguas com os meninos e já volto! - Que isto, moleque, cê tá doido? Que história é essa? - Mas Mãe, é na sombra! Debaixo das mangueiras. |
Por Ucho Ribeiro - 29/10/2018 10:55:07 |
MUI AMIGAS Glorinha e Sarita se sentiam as grã-finas do pedaço, e eram. Afinal, foram arrancadas da efervescente capital para viver ilhadas na jequice daquela cidade, distante de tudo. Sentiam-se ludibriadas. Na juventude, eram os morangos da sobremesa nos bailes do Minas Tênis Clube, desejadas pelos melhores partidos belorizontinos, e foram levadas para o interior pela lábia de dois médicos recém formados. Jamais pensaram em levar uma vida pacata, bucólica, campestre - sonhavam com Paris, New York, com o "jet set". Todavia, o mundo dá e deu as suas voltas, e olhem onde elas foram parar: na vidinha sem glamour, donas de casas, conferindo as tarefas dos filhos e passando os finais de semana no campo. Se levassem convidados à fazenda, seria um arrependimento sem fim. Os homens se juntavam para prosear sobre bois, vacas e cavalos e sobrava para elas a companhia das capioas esposas, que só falavam de meninos e empregadas. A comida? Churrasco e cerveja. Urgh! Sarita e Glorinha, convictas que embarcaram numa furada, sem retorno, decidiram fantasiar suas vidas nas alegorias dos seus sonhos juvenis. Sabedoras da farta e disponível grana dos maridos, passaram a gastá-la em festas e recepções. Turbinaram um jovem e vaidoso cronista social e ditaram as normas e a moda local. Esbanjavam charme e ostentação e, volta e meia, arregimentavam o “beau monde” belorizontino para os seus "happenings". Suas festas eram um sucesso, black tie obrigatório, regadas a champanhe e fino scotch. No jornal da semana, o cronista, adestrado, relatava didaticamente as iguarias dos jantares e as recepções das socialites, registrando o cardápio da noite, a cor da toalha da mesa e a procedência da louça e prataria utilizadas, bem como a descrição pormenorizada dos vestidos das senhoras. Era um "insider" indiscreto que mostrava para o ávido público curraleiro os últimos gritos da moda e da "fine burguesy". O prazer maior era, com o olhar de águia, criticar a bico pequeno a jequice das envelopadas madames locais: - Olha aquela ali de chapéu coco em festa noturna! - Veja que trambolho! Não combinou nada com nada. Cruzes! Vou ter uma síncope! - E aquela outra, com piteira e nem fumar fuma! Vai tossir a festa inteira! - Coitada, o vestido é lindo, o sapato maravilhoso, mas, dá dó, não sabe se equilibrar num salto alto, e andar, muito menos! Vai se esborrachar. - Perdoai, Senhor, olha o fulano colocando coca-cola no scotch! Para decepar a recepção de uma emergente, suas observações eram afiadíssimas: - Você viu a festa ontem, tirando a comida fria e o champanhe quente, o resto estava razoável! - Ô música brega, gente! Não sabia que viríamos para um rodeio! Nos clímaces das festas, no porre mais sublime, erguiam as taças, brindavam e, parodiando Zózimo, esgoelavam, à gargalhadas: “Enquanto houver champanhe, há esperança!”. A vida foi uma festa, intercalada de viagens e deslumbres. A carneirada, cega e sem noção, as seguiu, na ilusão de um dia ter também em mãos a flauta de Hamelin para entorpecer outros carneirinhos, mais inocentes. Os anos passaram atropelados, num hedonismo e pseudo glamour. Com o galope do tempo, o champanhe minguou, a esperança evanesceu, a badalação perdeu o charme, tudo foi um sopro. O "créme de la créme" se resumiu ao carteado semanal jogado pelos casais nas casas de Glorinha e Sarita. Porém, as calmas noites de buraco, embora enfadonhas, eram salpicadas por picantes alfinetadas das duas ofídeas. Advindos mais anos, os maridos se foram, a Sarita foi picotada pelo álcool e diabetes e a Glorinha foi se apagando pelo Alzheimer. O carteado tornou-se impossível. Os encontros das duas amigas se resumiam a visitas eventuais que uma fazia a outra, até que a Glorinha se enclausurou definitivamente devido à doença e a Sarita passou a visitá-la esporadicamente. Na passagem do milênio, a Sarita, já sem as duas pernas, ceifadas devido às complicações do diabetes, foi ver a amiga lelé, para lembrar-se dos outrora réveillons. Ao chegar à casa de Glorinha, anunciou-se. A enfermeira foi até os aposentos da amiga, no segundo andar, e avisou-a: - Dona Glória, a Dona Sarita está aí em baixo, veio visitar a senhora. - Quem? - Dona Sarita, sua amiga. - Sarita? Não me lembro. - Calma, vamos lá. Ao vê-la, a senhora a reconhecerá. A enfermeira, delicadamente, vestiu o "peignoir" na patroa, penteou-a, ajudou-a a sair do quarto e a descer os degraus. Sarita, efusiva, sorridente, estava estacionada ao pé da escada, em sua cadeira de rodas, elegante em seu "tailleur", com suas pernas cortadas na altura dos joelhos, à mostra. No meio da escada, Glorinha, ao avistar a amiga cotó, reconheceu-a, estancou, segurou o corrimão, e disparou: - Sarita, Sarita, não combinou, não combinou! Cruzes! Por favor, coloque de volta as suas pernas, porque este seu "tailleur", divino, fica horrível sem elas. |
Por Ucho Ribeiro - 22/10/2018 08:39:25 |
CODINOME Numa viagem de trem pra Montes Claros, nos idos de 50, um experiente representante boticário, há muito conhecido por Zé das Pílulas, alertava o seu novo e sisudo parceiro de propagandas farmacêuticas: - Colega, com o povo do sertão é bom você tomar cuidado. Difícil é um visitante sair dessa terrinha sem ganhar um apelido. Fonseca, sistemático, já sabedor dos tremendos apelidos que lá existiam, tais como, Manoel Quatrocentos, Dô Meu Fã, Bem-Pau-Véi, Quinhento Pro Cadáver, Alalaô, ô, ô, ô, ô, ô, ô!, Mói de Ferro, Monzeca e mais centenas de outros, prometeu que não iria carregar alcunha alguma. Amuado, apostou com o parceiro que ficaria na cidade, faria as visitas aos médicos e retornaria a Belo horizonte com o seu nome, Antenor Fonseca, impecável. Chegou calado no hotel São José, em frente à praça Coronel, não deu papo ao recepcionista, preencheu, em silêncio, a ficha de hóspede, pegou a chave e instalou-se num quarto no último andar. Para não dar motivo a falatórios e manter a discrição, determinou que deixassem suas refeições à porta do quarto, a fim de evitar contato com algum metido a engraçadinho. Metódico e curioso, a toda hora abria a janelinha do seu minúsculo quarto, punha a cabeça pra fora, espiava a praça, de um lado e de outro, via o movimento e fechava-a em seguida. Passados os quatro dias de visitas programadas, satisfeito por não ter dado papo a desaforados e certo de que não carregaria nenhum apelido daquela poeirenta cidade, resolveu ir até a praça para engraxar os sapatos, pois, logo mais tarde, pegaria o trem de volta pra Belo Horizonte. Deu sua ultima espiadinha pela janela e desceu. Ao sentar-se na cadeira, ouviu do engraxate, sorridente: - Graxa e lustro, né, seu "Cuco"? Já estava apelidado e mal sabia. |
Por Ucho Ribeiro - 8/11/2016 10:54:47 |
HELOISA Capuletos versus Montecchios, Chimangos X Maragatos, Cascudos X Chimangos, Rua de Cima X Rua de Baixo. A história registra, há milênios, que a luta pelo poder sempre foi árdua e tribal. Só na teoria e nos palanques é que o político diz que vai governar para todos, sem ver as cores partidárias. Na prática, conquistado o poder, no voto ou no tapa, o governante administra para os seus e aplica os severos rigores da lei aos rivais. Passa a cheirar pra uns e catingar pra outros. Antigamente, a rivalidade era explícita, os correligionários viviam amontoados, apartados dos adversários. Em várias cidades o afastamento era escancarado, percebia-se uma linha divisória entre as facções. Cada um no seu canto, no seu território - ninguém ciscava em terreiro alheio. Os mais velhos ruminavam com baba grossa aquela malquerença. Mal-mal cumprimentavam os contras. Convívio, de jeito nenhum. Negócios, muito menos, mesmo pra levar grande vantagem. Namoro e casamento, nem pensar. Havia até aquela máxima: “Tome cuidado com os amigos, porque são eles que comem as muié da gente. Os adversários nem têm como chegá perto”. Desde muito cedo a meninada absorvia aquelas cismas e aversões pelos rivais. Moleque que marcasse bobeira e passasse pelo terreno alheio, apanhava. Os meninos, quando saiam do bairro ou da sua região, andavam em bando, em trincas, para evitar sovas. Na maior parte do tempo permaneciam nas suas ruas, nos seus guetos, brincando entre si e tramando alguma desforra contra os fidumas do lado oposto. No mais, a vida seguia, cotidianamente, arrastadamente, com cada cardume em sua lagoa. Festas, atos cívicos, carnaval, dias santos, tudo era celebrado em separado e competitivamente. Bandinha de cá, bandinha de lá. Santo devoto de cá, padroeiro de acolá. Água e óleo. Não se misturavam. Até os médicos tinham a sua clientela restrita a seu grupo político. Não atendiam pacientes da outra facção, pois estes jamais o procurariam. Se o cardiologista era do outro lado, o cardíaco tinha que se virar com os seus médicos. Se a turma de cá não tivesse obstetra, que as mulheres procurassem uma parteira amiga para aparar o seu bebê. Em certa cidade havia um prefeito, Agenor Alvino, casado há alguns anos com uma bela e simpática senhora, Dona Maria Heloisa, que não conseguia ter filhos. O casal tentava, tentava, e nada. Todo mês era aquela expectativa para a boa nova, mas sempre sobrevinha a regra e, consequentemente, a decepção. Com o tempo, no presumível período menstrual da primeira-dama, os correligionários, principalmente as mulheres, passaram a intensificar suas visitas à casa do prefeito. Acompanhavam, a par e passo, a “regra” de Dona Heloisa. “Veio? Atrasou?” Quando informados de qualquer retardo, era aquele alvoroço e vivas. As correligionárias se desdobravam para adular a madame e presentear o futuro herdeiro. Era uma romaria para chás, cafés e entrega de presentes: sapatinhos, babadorezinhos, vira-mantas, cueiros e chupetinhas para o futuro bebê. A alegria de Maria Heloisa durava pouco, pois o sonho da maternidade se esvaia em sangue. Novenas e mais novenas se sucediam, muitas delas compartilhadas por metade da cidade. Dona Maria Heloisa já estava irritada com tanto puxa-saquismo, bajulação, sugestões de remédios caseiros e inúmeras simpatias milagrosas com as quais as partidárias amigas a sufocavam. Resolveu, então, se fechar, não tocar mais no assunto e dar um tempo às visitas. Era muito tumulto e seguidas desilusões. Manter-se-ia reservada, apenas com sua solitária novena para Sant’Ana, de quem passou a ser fervorosa devota. Passaram-se meses até o final da novena, quando então veio a boa nova: a menstruação não chegou. Será? Feliz, mas cabreira, Dona Heloisa permaneceu calada. Não abriu o bico para o marido e nem para a melhor amiga. Não queria criar falsa expectativa e decepcionar novamente. Esperou alguns dias e nada. Nadica de menstruação. Esperou mais uns dias e neca de sangue. Será? Será que finalmente Agenor e eu teremos nosso herdeiro? Ó, benção! Obrigada, minha Senhora de Sant’Ana! Aquele milagre tinha que ser guardado a sete chaves. Tinha que ser mantido em segredo até a plena confirmação. Mas como iria saber ao certo da gravidez? Uma certeza lhe ocorreu: se comunicasse ao seu médico e compadre, no mesmo dia a notícia se disseminaria como fogo em palha nas hostes amigas. Depois de muito matutar, só vislumbrou uma saída: consultar discretamente o doutor Saulo Salgado, o único ginecologista e obstetra da mulherada da banda de lá, embora fosse ele o líder da oposição e o maior adversário do seu marido. Dr. Saulo talvez desconhecesse toda a pregressa história de suas tentativas e fracassos para alcançar a gravidez e não havia necessidade de abrir o bico e contar a sua prenhez positiva ou negativa. Decidida, esperou o melhor momento e ligou para o médico: - Doutor Saulo, aqui é Heloisa, mulher do Agenor Alvino. - Quem? - Dona Maria Heloisa Alvino, esposa do prefeito Agenor José Alvino. - Pois não, minha senhora, em que posso lhe ajudar? - Doutor, o senhor deve achar estranho a minha ligação, mas eu gostaria de marcar uma consulta. Consulta reservada, reservadíssima, se possível num dia e horário especiais. Rogo a gentileza que nossa conversa e a consulta fiquem restritas a apenas nós dois, pois nem mesmo o meu marido Agenor poderá tomar ciência desse procedimento. Desculpe-me, doutor, mas, se possível, gostaria que nem a sua assistente esteja no consultório, caso decida por me atender. - ... - Pois não, madame, deixe-me checar a agenda... No sábado à tarde, às 17 horas, ficaria bem para a senhora, Dona Maria Heloisa? - Perfeito, doutor. Estarei no seu consultório, neste sábado, às 17 horas. Reitero o sigilo para a nossa conversa. Uma boa tarde! Dr. Saulo, um médico arguto nas asperezas da vida, ainda que experiente nas vicissitudes humanas, ficou encucado ao desligar o telefone: Nem mesmo o marido pode saber? No dia e hora marcados surge Dona Heloisa. Trazia a cabeça e o pescoço envoltos num sombrio lenço e enormes óculos escuros lhe tapavam toda a cara. Ela entrou no consultório em passo rápido como estivesse fugindo de algo ou de alguém. Doutor Saulo, sereno e resolvido, a recebeu formalmente, dirigiu-a sem circunlóquios para a sala de exames e lhe pediu para deitar na cama ginecológica. Isto feito, cobriu-a com meio lençol e iniciou o procedimento. Passados uns longos e ansiosos minutos, Dona Heloisa, curvando-se um pouco de lado para avistar o médico, perguntou-lhe: - E então, Dr. Saulo? Eu estou grávida? - “Estava”, Dona Heloisa, mas eu dei um jeitinho... |
Por Ucho Ribeiro - 31/10/2016 20:59:04 |
PLOC! PLUC! VAPT-VUPT! Joaquim tinha uma quitanda sortida e colorida. Vendia de tudo, peixes, hortaliças, castanhas, frutas, flores e temperos. Há duas décadas estava sedimentado naquele comércio, originado por seus pais portugueses, que ali tinham montado uma banca desde a vinda deles da província de Trás-os-Montes. A clientela era fiel e amistosa. O trança-trança era enorme e sempre havia rotativas turminhas que por lá passavam pra saber das novas e trocar fuxicos. Um burburinho só. As mulheres surgiam matutinamente para compras. Saracoteavam pelas bancas e debulhavam os assuntos da cidade e das novelas. Já os homens apareciam ao final da tarde pra quebrar uma e falar das últimas do futebol. Alojavam-se nos bancos e caixotes ao fundo da venda, debaixo das gaiolas dos passarinhos por ali dependuradas. A rixa entre atleticanos e cruzeirenses era calorosa, porém, respeitosa. O acatado Joaquim, ardoroso vascaíno, conhecido à boca pequena por Quincas Munheca, devido à sua aguda pão-durice, não dava palpite sobre os times alheios e nem permitia que as paixões clubistas se exacerbassem. O campo era neutro. Cruzmaltino igual a ele só o inveterado freguês, dr. Figueira, patrício, urologista formado no Rio de Janeiro no começo dos anos 50, época do Expresso da Vitória. Com acentuado sotaque português, repetia num carrilhão aquele timaço: Barbosa; Wilson e Rafagnelli; Ely, Danilo e Jorge; Djalma, Maneca, Ademir, Friaça e Lelé. O quitandeiro Joaquim chegava a babar ao ouvir aquela melodia de craques. Sem parar o que estava fazendo, apontava com o queixo a parede com a flâmula do tricampeonato e a foto do escrete publicada no Jornal dos Sports. De 1945 até 1952, o Vasco foi o rei do Rio, do Brasil e da América (em 1948) com um esquadrão avassalador, habilidoso, ligeiro e letal no ataque. Certa quarta-feira, os antecipados jogos do brasileirão, atraíram mais cedo os fregueses para o lar. A quitanda ficou vazia, sem barulho, e restaram na prosa apenas os dois vascaínos. Papo vai, papo vem, Joaquim interrompeu a descontraída conversa para tirar a água do joelho e demorou. Na volta, perdido o embalo do assunto, o dr. Figueira, perguntou-lhe: - Joaquim, tu estás com dificuldade para urinar? - É. Bem... - Desculpe a intromissão, mas por ser a minha especialidade e dada a nossa amizade, creio que posso te perguntar: - Urinas com dificuldade, Joaquim? - É, dr. Figueira, ultimamente minha pila anda falhando. Mijo espaçado, demorado, e tenho a sensação de que sempre sobra alguma urina, por mais que eu me esforce. - Tu já fizeste o toque retal, Joaquim? - Doutor, eu nunca fiz e não tenho vontade de fazer. Não quero carregar esta nódoa, não. - Que isso, meu filho, o exame físico do reto é um exame simples e necessário. Todo homem acima de 50 anos tem que se sujeitar ao exame da glândula prostática. - Não, dr. Figueira, não se preocupe não. - Que isso, amigo, precisamos saber o porquê da tua dificuldade para urinar. Passe amanhã às duas da tarde no ambulatório da faculdade, anuncie a tua chegada às enfermeiras, que não demorarei a lhe examinar. Joaquim foi dormir cabreiro, mas, antes, confessou à patroa a receosa conversa que tivera momentos antes. - Mulher, o dr. Figueira disse que está preocupado com a minha apertura em urinar e quer me examinar a próstata. - Ora, Quincas, está passando da hora de você fazer este exame. Aproveite a boa vontade do dr. Figueira. Ele é um homem bom, amigo e discreto. Nós, certamente, vamos economizar a consulta, que é cara. Se ele lhe disse para ir ao posto de saúde da faculdade, vai acabar não cobrando nada. Bom demais. A consulta vai ficar barata. -É, sei não. Não é o teu... O quitandeiro acordou grilado. Logo mais à tarde iria enfrentar aquele calvário. As horas não passavam e ele só se lembrava das mãos do doutor. Pra quê mãos tão grandes? E aqueles exagerados dedos? Mãos de borracheiro, dedos de graxeiro, de tratorista. Melhor desistir. Mas desistir como, se a economia da consulta já ajudaria no pagamento da faculdade de Inês Maria, sua amada filha? Mesmo contrariado, o jeito era seguir pro matadouro. Por volta das 13h30, após se esforçar no vaso e tomar um higiênico banho, subiu a rua, calado e cabisbaixo, em direção ao ambulatório. Ignorava os cumprimentos dos conhecidos. Estava compenetrado, a imaginar a cena prestes a enfrentar. Ao chegar ao posto de saúde, procurou uma enfermeira e falou baixinho, acanhado: - Eu sou o Joaquim, o dr. Figueira pediu-me para vir até aqui para... - Pois não, senhor, estamos sabendo, o doutor nos avisou. Adentre pra iniciarmos os preparativos. A enfermeira pôs a mão no seu ombro e o direcionou até uma sala toda azulejada, branca, com pouquíssimos móveis. Tinha basicamente uma cama, um cabide para pendurar a roupa e uma mesa, de aproximadamente um metro cúbico, com uma manivela ao lado. Tonha, a enfermeira, pediu a Joaquim para tirar toda a roupa e ficou esperando. Ele, acabrunhado, ficou quieto, até que a ficha caiu. - Aqui, agora? Na sua frente? - Isso mesmo, pode tirar a roupa toda. Quincas, miúdo, mais encolhido que maracujá de gaveta, ficou de costas e começou a tirar a camisa, a calça... - Tire a cueca também! - Mas precisa? - Precisa! Acabrunhado, Quincas, lentamente, tirou sua cueca e a pendurou no cabide. - Ah! Pelo visto teremos que fazer uma limpa no seu traseiro. Tem cabelo demais. Enquanto o doutor não chega, vamos barbear este bumbum peludo. Tonha vestiu no Joaquim uma camisola branca, no melhor estilo Tiradentes, que só lhe tampava a frente, com tiras para amarrar atrás, e o deitou pela metade sobre o mesa quadrada. Ele ficou de pé, mas curvado, com a barriga, o peito e a cabeça debruçados sobre a parte de cima do móvel. A cada manivelada dada pela enfermeira, a bunda do Joaquim ia se suspendendo e ficando cada vez mais empinada, à mostra. Elevou o traseiro até que Quincas ficou na ponta dos pés, abatido, sobre a mesa do exame, na posição genu-peitoral. Com maestria Tonha tesourou aquela cabeleira até dar-lhe um desbaste bom; depois ensaboou aquilo tudo e barbeou com esmero aquela bunda e a região perianal. As nádegas do Joaquim ficaram iguais a uma garrafa, lisas, lisas, reluzentes, embora as rubras bochechas faciais do Quincas escancarassem a sua mais profunda vergonha. Não demorou muito e o dr. Figueira entrou na sala, despachado: - Como é, Joaquim, pronto para o exame? A Tonha te tratou bem? Pelo visto ela fez um belo acero? Bunda de patrício é sempre cabeluda, denuncia o sangue lusitano. Pois bem, tinha me esquecido que hoje é aula prática dos meus alunos de urologia. Fique à vontade, não se acanhe, são todos quase médicos. Incontinente, abriu a porta e entraram 13 estudantes de medicina, todos de avental, com luvas e o dedo do meio ereto, cheios de disposição para aprender. Joaquim, ao olhar desconfiado, de menesgueio, deparou com aqueles rapazes e moças, uns conhecidos, alguns fregueses, outros filhos de seus amigos e umas três meninas que eram unha e carne com a sua filha Inês Maria. - Olá, Seu Joaquim. - Tudo bom, Seu Joaquim? O prostrado paciente, naquela situação vexatória, balançou a cabeça timidamente saudando todos. Sem perda de tempo, o dr. Figueira breou com vaselina o fiofó do amigo e iniciou as suas explicações: - Caros alunos, não se esqueçam, o dedo a ser utilizado deverá estar bem lubrificado para uma introdução fácil, suave, e que não cause mal-estar ao paciente. Devemos, ao introduzir o dedo, afastar as nádegas, franquear docemente o esfíncter anal, procurando incomodar o mínimo possível o paciente. Prestem atenção! Ploc! Lá se foi a inocência do Joaquim. A partir de agora seria o que Deus quisesse. - Ao toque vamos examinar cuidadosamente a mucosa retal, a próstata, as vesículas seminais, a uretra posterior, o trigono e o fundo vesical, a extremidade inferior do ureter e o canal deferente. Tente, então, Lucas, dê o toque. Pluc! Isto, sinta agora as características da mucosa retal e também as laterais, apalpe a parede anterior do reto, indo de baixo para cima e descreva o toque. Só assim, você poderá fazer o seu diagnóstico. - Agora é tua vez, Alice, vamos lá! - Dá licença, Seu Joaquim. Contorcendo-se e olhando para trás, envergonhado, o pai de Inês Maria respondeu: - Pois não, minha filha, fique à vontade. O dr. Figueira voltou a explicar: - Preste atenção, Alice, a próstata está situada a 4 ou 5 cms do orifício anal. O teu dedo tem que explorá-la, atingí-la em todo o seu contorno. Saiba que a próstata normal é indolor, porém a do Joaquim está um pouco inchada, motivo pelo qual ele está urinando com dificuldade. Pluuc! E tome dedadas, pluuc, pluc, e mais dedadas, fluc, fluuc, de Marcelo, de Sérgio, de Cecília, de Jéssica, de Daniel e de outros tantos. Seu Joaquim perdeu as contas de quantos medicuzinhos o conheceram profundamente. Por fim, o dr. Figueira tranquilizou o pobre Joaquim: - Patrício, fique tranquilo, tua próstata está ligeiramente aumentada, mas com um remedinho poderemos controlá-la e tu voltarás a verter água divinamente. A Tonha aproveitou a posição genu-peitoral do Joaquim, limpou a sua bunda toda breada de vaselina e despertou-o do angustiante transe: - Tudo pronto! C`est fini! Pode vestir a roupa! Tá liberado! O pacato Joaquim, antes de vestir as calças, de pernas bambas, sem saber o que dizer, humildemente, balbuciou: - Vocês todos estão servidos, meus jovens, ficou faltando alguém? - Não! Não, a aula já terminou. - Viste? Foi um vapt-vupt, um incomodozinho e já passou, arrematou o dr. Figueira. De volta pra casa, murcho, com vontade de chorar, o Quincas resmungou: - Ora, pois! Consulta barata, uma ova! |
Por Ucho Ribeiro - 13/10/2016 13:28:44 |
MIRABELICES Zé de Gerônimo, quando jovem, morava na pacata Mirabela, onde nada acontecia. O dia a dia era ir para o colégio, assistir as aulas, voltar pra casa, almoçar, esperar passar o mormaço e no final da tarde ir para o campo bater uma bolinha com os amigos. Na verdade, treinar sério e puxado, pois o time da cidade queria manter a árdua e longa invencibilidade de quase um ano. Mas, num janeiro, em plenas férias escolares, eis que chegou à pacata cidade um ônibus todo modernoso, placa do Rio de Janeiro, com uma faixa pregada na lateral:“Projeto Rondon - Integrar Para Não Entregar.” Ao abrir suas portas, exceto o gordo motorista, desceu uma juventude jamais vista em Mirabela. Linda, maravilhosa, bronzeada, sorridente e de uma fala mansa diferente, cheia de “esses”. Ipanema veio parar nas terras de São Sebastião. Eram estudantes cariocas de medicina, enfermagem, fisioterapia e afins. Se instalaram na pensão de Dona Zefa e, no dia seguinte, monitorados por 2 médicos professores, já estavam em campo, consultando, aferindo pressão, colhendo sangue, urina, fezes e vacinando a população. A cidade virou um fervedouro. Os velhos nunca tiveram uma assistência médica daquela e os jovens mirabelinos nunca viram tanta moça bonita. Estes não conseguiam nem responder as perguntas. Na anamnese, ficavam mudos, babando com tanta beleza. As futuras doutoras pareciam artistas de cinema. - Seu nome? - Han? - Por favor, seu nome? Como você se chama? - É Zé. Era uma tolemice sem fim. Zé e seus amigos, acanhados,não trocavam muitas palavras com as cariocas, mas acompanhavam-nas à meia distância por todos os cantos. Eram uma presteza a toda prova. Um adulo sem fim. Colhiam mangas e pinhas nos quintais, pediam as avós para preparem fornadas de biscoitos, doces e levavam tudo pra pensão das meninas do Rondon. Menos pequi, porque elas detestaram. Na coleta do sangue, eles deixavam as inexperientes estudantes furarem os seus braços quantas vezes quisessem. - “Dessculpe”, não consigo encontrar tua veia. Tá “doeendo”? O jovem doador mirabelense mesmo se mijando de dor e cagaço, respondia candidamente àquela fala mansa: - Não, não! Se quiser pode tentar de novo. Uma hora ocê consegue. Todas as meninas eram bonitas, mas tinha uma, Tatiana, que era uma deusa, uma princesa. Uma beleza nunca dantes vista e imaginada. A formosura era tamanha que platônicas paixões floresceram, mas nenhum amor foi declarado. Passado o mês, uma grande festa, com baile e banda, foi marcada para o sábado,véspera da despedida do projeto Rondon. Toda a cidade se alvoroçou para preparar uma festança em gratidão aos bons serviços prestados pela estudantada carioca.A Tatiana, percebendo o zelo e o carinho com que a população organizava os festejos, prometeu que dançaria no baile com o garoto de Mirabela que fizesse um gol no clássico, de sábado à tarde, entre os jovens craques da cidade contra o rival escrete de Japonvá.A promessa foi a gota d’água pra imperar a desarmonia no time de futebol. Ninguém queria ficar na reserva, nem no gol e, muito menos, jogar na defesa. Foi um upa para montar e escalar o time. Os jogadores entraram em campo, sem conversar, nada do grito de guerra“um por todos e todos por um”, dali em diante era “cada um cuida de si, murici.”. Logo na saída da bola o time todo partiu para o ataque, ninguém se preocupou em defender. Resultado: Levaram de onze. Um vexame nunca visto. A valia foi que nos minutos finais, por um descuido da defesa do Japonvá, o Zé de Gerônimo chutou desesperadamente a bola para o gol e ela entrou. Final 11 x 1. Em todo aquele vexame, a glória foi de Zé. Faturou a dança com a princesa Tatiana e a oportunidade de declarar a sua paixão. À noite, tomou um banho demorado, se esfregou todo, escovou os dentes três vezes, se vestiu, se perfumou,se perfumou de novo, foi a privada mais de duas vezes, tomou coragem e foi com a roupa domingueira, exalando naftalina,pra porta da pensão de Dona Zefa, esperar a mulher mais linda do mundo. Ao chegar lá, deparou com uma multidão a espera das estudantes para seguirem cortejo até o clube da cidade. O coração de Zé de Gerônimo estava para sair pela boca de tensão e emoção. Às dez horas, as participantes do projeto deixaram a pensão em direção ao baile, e Zé num ato de coragem se postou ao lado de Tatiana que, ao perceber sua presença,delicadamente pegou no seu queixo e disse: - Muito bem, meu artilheiro. As pernas de Zé amoleceram, mas,mesmo vexado, aguentou firme até o clube. Lá, sentou-se à mesa com as cariocas, porém não abriu a boca. Ao som dos hits parades da época, tomou um cuba libre, imitando-as, e aguardou o grande momento em que dançaria com Tatiana. Seria a derradeira e única oportunidade para declarar todo o seu verdadeiro amor. Passado um tempo, a banda criou um suspense com piruetas sonoras, suspendeu a música e passou o microfone para o prefeito. - Povo de Mirabela, estamos todos aqui para agradecer o Projeto Rondon que veio prestar relevantes serviços à nossa comunidade. Veio trazer saúde para nossa cidade e elaborar um levantamento de nossas doenças, endêmicas, para que de posse desses estudos possamos enfrentá-las de frente e dar uma melhor qualidade de vida para o nosso povo. Daqui alguns dias o projeto Rondon nos enviará os resultados de todos os exames colhidos dos cidadãos mirabelenses e nos apresentará um diagnóstico da nossa saúde. Uma salva de palmas para estes jovens doutores, que nossa cidade guardará no fundo do coração.Agora a bela Tatiana, terceiranista de medicina, dançara com o nosso jovem conterrâneo, José de Gerônimo, para que fique registrado para sempre os nossos laços de amizade. A banda,de volta com seus instrumentos e depois de um elucubrado preâmbulo, passou a tocar a música “Meu Primeiro Amor”, Zé começou a dançar com Tatiana e o clube de pé aplaudiu sem parar aquela apoteose. O barulho era tamanho que Zé não conseguiu falar nada com a garota dos seus sonhos, mesmo estando a centímetros do seu ouvido. O único momento que conseguiu dizer alguma coisa para ela, foi na despedida,já na porta da pensão, quando,acanhadamente, indagou: - Posso te mandar uma carta? No que ela respondeu: - Pode. Dona Zefa tem o meu endereço do Rio. Não dormiu. Passou a noite rabiscando cadernos, na tentativa de por no papel uma declaração de amor e saber o que ela achava dele. Depois de muitos burriscos, resumiu nestas palavras: “Tatiana, detentora do meu coração, em você eu encontrei a razão do meu viver. O que você encontrou em mim?”. Passaram-se dias, mais de duas semanas. O Zé de Gerônimo, ansioso, no aguardo da resposta de sua missiva, ia todo dia até a oficina dos correios, bem na hora da entrega da correspondência pela jardineira.Fez às contas,sete dias pra ir e sete dias pra voltar, a carta de Tatiana deve estar pra chegar. E chegou. Ao abrir, tomou um choque. Levou um tempo para entender. Mas decifrou tudo. Tudinho. Não podia acreditar naquilo. E saiu numa carreira alegre e saltitante para mostrar a carta de Tatiana aos seus amigos que o estavam esperando no campo para mais um treino. De longe, aos gritos, pulava e mostrava com a mão levantada a carta do seu amor. - Pessoal, veja a carta que chegou de Tatiana. Eu sabia que ela ia responder. Eu sabia. -Uê, leia o que ela escreveu aí. Zé, então, altivo, começou a ler: - Meu artilheiro,o que eu encontrei em você foi tênia saginata, necator americanus, áscaris lumbricoides e oxyurius vermiculares. O pessoal começou a gargalhar e caçoar de Zé. Chegaram a rolar na grama de tanto rir.No que Zé de Gerônimo, todo orgulhoso, respondeu: - Cês são uns bestas, em mim, Tatiana só encontrou vermes estrangeiros. Em vocês, ela só vai encontrá lumbriga! Esta história é do finado amigo e escritor José Luiz Rodrigues. Foi-me contada de corpo presente na promessa de me presentar com o seu livro “Verme Estrangeiro”, pois eu tinha reclamado que não o encontrava nas livrarias – edição esgotada. Ouvi com agrado e dei boas gargalhadas. Fique com Deus, Zé! |
Por Ucho Ribeiro - 26/9/2016 09:23:41 |
SEXÓLOGA DE ARAQUE Eu devia ter uns 10 anos, Pat e Fred eram dois e um ano mais velhos, e os outros quatro irmãos menores, Marquim, Mônica, Paulim e Márcia, vinham numa escadinha com degraus de um ano e três meses de diferença. Éramos sete. A oitava cria, Bertha, a rapa do tacho, só viria ao mundo dois anos depois, em 67. A casa era um alvoroço, correria e estripulia o dia inteiro. Meninos por todos os lados, os de casa e mais a molecada vizinha. Quando a aprontação estava demais, mamãe perdia a paciência, dava um basta, a garotada saía de fininho, ela então nos colocava de castigo ou nos dava uma sova. Na verdade sovinha, pois a dúzia de bolos nas mãos era aplicada com uma indolor sandália de borracha. De vez em quando, para amainar os agitos, ela nos levava para a sala e lia algum livro. Era a maneira de ficarmos sossegados. Lembro-me das poesias de Manoel Bandeira, algumas sensuais. Eu achava estranho mamãe ler aquelas coisas indecentes: Teu corpo claro e perfeito Teu corpo de maravilha Quero possuí-lo no leito Estreito da redondilha... Aquela leitura sugestiva e caliente despertava a libido dos machinhos, direcionando-os para o banheiro. Ali, a contumaz demora fazia com que mamãe batesse à porta pedindo pressa. Muitas vezes pedia pra gente tomar banho de porta aberta, com o que Marão não concordava e dizia: - Maria, deixe os meninos tomarem banho sossegados. E com a porta fechada, se assim quiserem. - Desse jeito não dá, Mário, eles ficam horas debaixo do chuveiro e ainda saem sem tomar banho direito. - Maria, largue os meninos, são os hormônios da puberdade. Se apertar o braço de um deles, hormônios espirram igual sumo da casca de laranja. É da idade. Relaxe. - Mário, só você conversando com seus filhos. Você, como médico, podia muito bem dar uma aula de iniciação sexual pra eles. Ontem, Mônica me perguntou como os bebês entram na barriga da mãe... Semana passada, Paulim veio com o calção arriado me questionar: - Olha, mamãe, meu pipi tá duro! Tem um osso aqui dentro? Por seu turno, Marão se esquivava, tirava o corpo fora, alegava que não tinha tempo, nem jeito, e que mamãe mesmo reunisse a tchurma e desse uma aula. Pois bem, lá foi a coitada da Maria Jacy comprar livros, enciclopédia, tomar revistas emprestadas, ler tudo sobre o assunto, estudar, pesquisar e quando sentiu-se preparada, chamou a ninhada para uma conversa séria, legal e democrática. A data foi marcada com antecedência e a hora para depois do jantar. No dia aprazado, a molecada se empoleirou nos sofás e se esparramou pelo chão da biblioteca, barriga pra baixo, mão segurando o queixo, olhos brilhando e a cabeça a mil. Mamãe sentou-se bem à frente da gente, num sofá vermelho, cercada de sabedoria por todos os lados, mais a Barsa, livros, revistas e começou a aula que preparara com todo o zelo e tensão. Mesmo com certo gaguejo, explicou tudo, tudinho, ci-en-ti-fi-ca-men-te: sementinhas pra lá, óvulos pra cá, muito amor do papai e da mamãe, patati-patatá. Histórias de papai do céu e cegonhas bicudas não entraram na conversa. Deu para perceber que mamãe terminou a explanação suada, mas aliviada por ter cumprido a missão. A batalha, porém, estava apenas começando. Ao perguntar aos queridos anjinhos se haviam compreendido tudo, se queriam fazer alguma pergunta, Linka foi logo confessando: - Eu compreendi tudo, só não entendi aquele negócio que para ter filho tem que por um "tênis" na vagina. Mamãe quase caiu para trás: - Valha-me, Deus, como é que é? Fred, desde a infância didático e irônico, explicou: - É o seguinte, Paulim, quando coloca um Kichute, nasce menino; quando coloca um conga, nasce menina, entendeu? Dona Jacy, então, deu uma nova explicação científica para Paulim. Aos cochichos, Mônica, que estava ao meu lado, comentou com Pat: - Nossa, quer dizer que papai já fez isso com mamãe sete vezes? Ave Maria! A professora Jacy pediu silêncio e, em seguida, Márcia quis saber pra que servia modess. Mamãe foi ao quarto dela, apanhou um absorvente, vestiu-o por cima da roupa, explicou, explicou tudo bonitinho, ci-en-ti-fi-ca-men-te. Ao terminar, eu sussurrei pra Fred: - Não lhe falei,Fred, que Bertinho estava nos ensinando errado? Ele não sabe nada. Mamãe, apavorada, interferiu: - Como é que é? O que Bertinho lhes ensinou? Eu respondi, baixinho: - Bertinho nos falou que as mulheres usam modess quando fazem indecência com os homens. - Que é isso, menino, surpreendeu-se mamãe. E reviu o tópico “menstruação”. Para encerrar, com mamãe já exausta, balangandã, Quincas levantou o dedo para fazer sua pergunta. - Fala, Marquim, o que você quer saber? O filósofo mirim abriu o bico pela primeira vez na reunião: - Mamãe, nós só “queria” saber o que que é “rapariga”... Nocaute. A professora arriou no sofá vermelho. Rateou, rateou, tentou explicar, gaguejou, os livros e a enciclopédia não ajudavam em nada, e Dona Jacy jogou a toalha: - Meus filhos, por hoje já está bom demais, a pergunta de Marquim fica pra próxima aula. Estamos esperando até hoje a segunda aula. Viu, sexóloga de araque? Obs: Escrevi esta crônica em homenagem aos 87 anos do meu umbigo, que aniversaria hoje, 23/09/2016. À bênção e parabéns minha mãe. |
Por Ucho Ribeiro - 19/9/2016 16:38:55 |
ETCÉTERA E TAL. Tio Maurício que me contou o causo, mas não me confidenciou o sobrenome do personagem. Disse apenas que era um aprendiz de alfaiate, conhecido por Dorival, Dô para os íntimos. Morava nos Morrinhos e trabalhava numa alfaiataria da rua XV. Nos intervalos do trabalho ia para o bar da esquina, o Boca de Pito, contar potocas e revelar seu sonho de ser um renomado costureiro. - Ainda vou ser famoso, vou fazer é roupa pra grã fino lá em São Paulo, cês vão ver! Tanto disse e repetiu, que um dia fez as malas, passou na casa da sua noiva Gracinha, fez juras de amor, prometeu que retornaria em breve com o certificado de alfaiate e as passagens pra levá-la casada pra cidade grande. Dito e feito. Passado pouco mais de um ano, eis que chega à estação de trem de Montes Claros, Dorival, nos trinques. Terno azul-escuro estalando, com um corte diferente, modernoso, lenço vermelho dobrado no bolsinho do paletó, camisa listrada, calça vincada e sapato lustrado, bicolor, com ponteira de metal. As malas novíssimas de couro e com fechadura dourada. Os funcionários e passageiros, na plataforma de desembarque, contemplaram aquela elegância toda, mas não atinaram que a figura era um cidadão montesclarense repaginado. Apenas, um menino, vizinho e morador da Ovídio de Abreu, o identificou e perguntou: - Ô, Dô, cê quer que eu leve suas malas? Dorival, formalmente, respondeu: - Pois não, Guri, faça o favor. Ao descer a escada da estação, o garoto desconfiado já mudou o tratamento: - Ô, Seu Dô, pra onde nós vamo? - Guri, eu vou hospedar no hotel São José, na praça Coronel Ribeiro, etcétera e tal. Seguiram pela Barão do Rio Branco e foram descendo, no que o Dorival perguntou: - Como andam as chuvas por aqui, escassas? etcétera e tal. - Tem tempo que não chove, Seu Dorival. - Venho da terra da garoa. Lá em São Paulo, difícil é o dia que não chove, etcétera e tal. Ao chegar ao Hotel, o alfaiate perguntou ao menino: - Guri, você sabe onde mora Dona Clarice, nos Morrinhos? etecetera e tal. - Sei sim, é a casa de Gracinha, sua noiva. Dando uma gorjeta graúda, lhe ordenou: - Pois bem, vá lá e diga a ela que vou tomar um banho, repousar um pouco, etcétera e tal, e que mais tarde passarei por lá, etcétera e tal, para a gente sair, etcétera e tal. O menino partiu numa carreira e rapidinho estava na porta da casa da noiva, de onde gritou: - Ô de casa? Ô de casa? Nisso, apareceu Dona Clarice e perguntou: - Que isso, menino, pra que esta gritaria toda? - É pra avisar pra Gracinha que o seu Dorival chegô, etcétera e tal, que tá no hotel São José, etcétera e tal, que vai tomá um banho e descansá, etcétera e tal, e depois vai passá aqui pra buscá-la, etcétera e tal, e que eles vão sair, etcétera e tal. Dona Clarice ouviu aquilo tudo, estranhou o palavreado e disse: - Menino, volte aqui, que história é essa de etcétera e tal? O garoto virou e, batendo a mão esquerda aberta na outra fechada, sentenciou: - Sei não, dona Clarice, mas eu acho que é, ó: Top! Top! Top... |
Por Ucho Ribeiro - 6/9/2016 16:11:33 |
CORONEL GEORGINO Quando menino, eu era vizinho do Cel. Georgino Jorge de Souza. Morávamos na baixada da Santa Casa, contrapostos na esquina da Irmã Beata com Luiz Pires. Ruas de paralelepípedos, poucos carros, casas sem muros, sem antenas, criançada solta. No finalzinho do dia os vizinhos se encontravam para uma fresca, um dedo de prosa. Eventualmente o Coronel aparecia lá pelas oito horas da noite e tomava lugar no murinho onde a meninada se empoleirava. Ao chegar, a algazarra diminuía, o tom da falação abrandava e aos poucos todos se calavam para ouvir os causos daquele bravo e respeitável homem de voz rouca e pausada. Eram histórias do tempo do onça, quando não existiam luz elétrica, nem automóvel. O Coronel sempre dava corda as nossas conversas até pegar uma deixa e introduzir sua história: - No final dos anos quarenta, quando fui responsável pelo censo do efetivo da polícia militar na região do Vale do Rio Doce e do Mucuri, rodei milhares de quilômetros em lombo de burro, fazendo o levantamento dos policiais cadastrados na polícia mineira. Chegava às cidades e ia direto à delegacia à procura do soldado ou dos soldados que haviam sido designados para aquela unidade. Comum era encontrar ninguém, a delegacia às moscas. O policial podia estar à-toa em casa ou num buteco ou mesmo encangado na fazenda de algum chefe político do município ou até mesmo pescando. Uns não tinham mais uniformes, muito menos munição, alguns nem arma, outros desleixados, gordos, não cabiam mais nas suas fardas e a renunciavam, quantos não amasiaram com prostitutas e cachaça, enquanto tantos não foram sequer encontrados. Contou que certa vez, ao chegar numa cidade mucuriana, deparou com uma população arredia, amedrontada, com pavor de polícia. O Cabo Tibúrcio, destacado para lá, havia estabelecido uma verdadeira tirania. Por qualquer motivo prendia e humilhava os cidadãos, até mesmo os considerados dóceis e de boa índole. Os com o passado obscuro, ou que manifestassem alguma intrepidez ao serem admoestados, eram presos e espancados. Muitas famílias tiveram membros sovados e humilhados. A cidade estava sob a chibata do Cabo. Silenciosa e revoltada. Georgino, à época capitão, relatou o caso ao comando da capital mineira e foi autorizado a resolver a questão com severidade exemplar. Imediatamente prendeu o cabo por 30 dias por abuso de poder. O policial ficou uma arara, puto da vida, mas o Capitão Georgino foi glorificado. A cidade o pôs em andor, passou a adulá-lo e a convidá-lo para almoços e festas. Enquanto cobria o tempo da prisão do cabo e aguardava a chegada de um novo praça para a jurisdição, o Capitão foi desfrutando bajulos e conhecendo o pacato e religioso povo da cidade, que tinha retomado a alegria. Havia chegado recentemente na paróquia um padre jovem, moderno, cheio de idéias novas, com práticas e ações que agitavam e mobilizavam a juventude e dissolviam as carranquices e teias de aranhas dos velhos. Criou um coral, uma banda de música, as filhas de Maria, os encontros de casais e um grupo de teatro para apresentar peças religiosas. Como estava próxima a Semana Santa, a fervorosa comunidade cristã, sob a tutela do Padre Estevão, entrou em ebulição com a suntuosidade que seria encenada a Paixão de Cristo. Os fiéis, de mamando a caducando, fariam parte da procissão. Havia papel para todos, de Jesus Cristim a São José, passando pelas Marias Madalenas, João Batista, Barrabás, Herodes, Ana e família. A única dificuldade era arranjar um cidadão para fazer o soldado que açoitaria Cristo na procissão dos passos. Ninguém queria fazer o personagem que golpearia Jesus arrastando a cruz. Cruz Credo! Bater em Cristo seria uma urucubaca pra o resto da vida! O Capitão Georgino, em um dos almoços em sua homenagem, sabedor da falta de viv`alma pra fazer o cruel romano, encontrou a solução. Foi até o Cabo Tibúrcio e o designou à missão, com a promessa de que se tudo corresse no de acordo iria reduzir sua pena. Os ensaios, sem o Cabo Tibúrcio, eram diários, os textos tomados e retomados, o trajeto e os passos muito bem definidos, as falas repassadas, as vestimentas refeitas com tecidos novos, costuradas com capricho pelas melhores profissionais. Tudo correu certinho, ensaiadinho. Nos trinques. Trouxeram até um ator de fora pra representar o Cristo. Ele, alto, forte, bonitão, chegou todo galã, metido, com todos os trililiques de artista famoso. Foi bem alojado e afeiçoado por todos. No dia do cortejo e da encenação da morte de Cristo, tudo estava enfeitado para a procissão, as ruas ganharam flores, areias e as janelas foram enfeitadas com colchas, toalhas e com o santo da devoção. O ator famoso, depois de horas de maquiagem, surgiu todo ensanguentado à base de urucum, mercúrio cromo e molho de tomate, com a espinhenta coroa presa nos longos cabelos da sua peruca, causando compaixão e dó ao emocionado público. O Capitão Georgino, com muito custo, trouxe o Cabo Tibúrcio, enraivado, vestido com uma sainha romana de couro, uma sandália de gladiador trançada até abaixo do joelho, com um chicotinho de pano, e ordenou: - Ouça bem, Cabo, você vai ter de seguir esta procissão até o final, encenando o algoz de Jesus Cristo. Vai fazer cara de mal e chicoteá-lo da forma mais convincente possível. Estamos certos? O Cabo, puto, consentiu com a cabeça. A procissão partiu e era aquela comoção ver o soldado romano chicotear o chiliquento Cristo. O ator se desmanchava em sofrimento, fingindo o maior martírio por carregar aquela cruz que parecia ter uma tonelada. A cada chicotada os fiéis vaiavam e xingavam o soldado: - Covarde! - Bandido! - Fariseu! - Deus vai te levar pros quintos dos inferno, Belzebu! Na verdade, o povo aproveitava para desabafar, insultar e se vingar do Cabo Tibúrcio que tanta maldade fez. A vaia era uníssona, barulhenta e a procissão, morosa. Na primeira queda de Cristo, o badalado ator se derreteu, fingiu tão bem que as pessoas pensaram que ele havia passado realmente mal. O Tibúrcio, cansado de tantos faniquitos, chegou a parar de bater nele com aquela falsa piratinha. O Padre Estevão, prolixo, aproveitou para debulhar suas intermináveis explicações sobre aquele santificado passo, sobre o mistério da cruz. Jesus, depois de seguidas tentativas, se levantou sob a comoção dos devotos e o corso seguiu arrastado. O soldado, por não mais bater em Jesus, foi advertido pelo ríspido olhar do Capitão Georgino, cobrando mais empenho e teatralidade. A cada chicotada uma estrondosa vaia e xingos de todos os calibres: - Cumunista! Zelão! Facínero! Fio de Lampião! Ocorreram até cusparadas e insultos do tipo: - Ô Corno! O Tibúrcio se contorcia de raiva, estava possesso. Na segunda queda, deu-se o completo desmantelo de Cristo, o ator debaixo da cruz se estrebuchava, língua pra fora e o povo comovido, às lagrimas. Mas enquanto o Padre Estevão dava início aos seus longos esclarecimentos sobre aquele passo, sobre o encontro da humanidade com Deus, o Cabo saiu sorrateiramente em direção ao Bar do Zé de Chico, bem em frente. Já entrou mandando: - Zé, põe uma aí pra mim. O dono do bar se negou: - Hoje não é dia de vender bebida pra ninguém. - Que é isto, homi, põe uma dose caprichada pra mim. Tô precisando! - Olha, seu Tibúrcio, eu não sirvo e nem serviria um fariseu que se sujeita a bater em Cristo. O Cabo fechou o olhar e curvou pra cima do dono do bar e este, receoso, tibiou: - A bebida tá aí na prateleira, se quiser beber, você mesmo pega e bebe. Tibúrcio, então, pegou a garrafa, catou um copo que estava por perto, encheu até o colarinho e virou. Nem fez cara ruim. Encheu de novo, olhou firme pro Zé de Chico e jogou a marvada no fundo da goela. Ignorou até o pouquinho pro santo. Só disse: - Anote aí. Ao sair deparou-se com uma chibata de couro cru trançado que estava largada em cima de uma das mesas. Catou-a, jogou pro lado a piratinha faz de conta, voltou até a pinga, deu uma boa talagada, cuspiu, e mastigou com a boca torta: - Aquele chiliquento vai ver agora o que é sova. Cristo ainda estava debaixo da cruz, gemendo e se contorcendo, quando apareceu o Tibúrcio empurrando o povo e gritando enraivecido: - Agora cê vai ver o que é apanhar, fiduma! Cê fica nesses fricotes, nesse dengo sem motivo, quero ver você é debaixo desta chibata! E desferiu no desmantelado Cristo uma chibatada com toda a força que tinha. O ator despertou assustado do seu transe performático, jogou a cruz pro lado, já sob outra chicotada, e partiu enfurecido pra cima do Cabo que não parava de chibatear. Cristo e o soldado romano trançaram-se em surdões e sopapos. Pancadaria pesada. Palavrão de tudo quanto é tipo e qualidade, cada um mais inapropriado que outro para aquela celebração religiosa. A sorte foi o severo Capitão Georgino estar por perto e agir, com a sua força moral, enérgico e destemidamente, separando aquelas imensas onças raivosas, que estavam a ponto de se matar. Depois de um tempo, passado o rebuliço, acalmada a multidão, o Padre Estevão ainda tenso deu prosseguimento à procissão. Até o final do cortejo, o Capitão Georgino permaneceu lado a lado dos dois brigões, apartando-os, e atento as suas rosnadas e a seus raivosos olhares, cheios de ódio e hematomas. |
Por Ucho Ribeiro - 28/7/2016 09:10:09 |
Pombinhos Quatro anos de arrastado e vigiado namoro. Os encontros eram permitidos as quartas e sábados, impreteríveis, das oito às nove e meia da noite, sob a espreita vela da família. Em alguns domingos, Donato era convidado para os fartos almoços da sogra Marinês. Comia até pouco para não soltar a mão de Ritinha por baixo da mesa. Quando iam ao cinema era sob a vigia dos irmãos mais novos da namorada, que sentavam ladeados ao casal. O trisca que Donato conseguia - um beijo, um toque - era quando dava um troco pros garotos comprarem balas, logo ao apagar das luzes para os trailers. Devido ao aparente bom comportamento e aos longos anos de namoro, Dona Marinês começou a ter mais confiança no rapaz. Passou até a chamá-lo de Donatim. Numa quarta-feira, finda a novela, a sogra disse num adulo ao genro: - Donatim, fique a vontade, aguente só mais um pouquinho, que vou fritar uns bolinhos e fazer um café quentinho pra nós. Foi só ouvirem o barulho da sogra entretida na cozinha que o rala e rola começou. Beijos, apertos, mordidelas, trança de pernas, cinto frouxo, saia sungada, mão naquilo, aquilo na mão, gemidos abafados, tesão supitando no ar e o sofá aguentando firme, sem alcaguetagem, sem gemura. O gruda-gruda estava pegando fogo, quando Dona Marinês anunciou, lá da cozinha: - Meninos, os bolinhos estão prontos e o cafezinho está quentinho. Foi o tempo pra os pombinhos recomporem os cabelos, as amarrotagens e as vestimentas. Veio de bandeja na mão, ofereceu um bolinho para o genro, enquanto servia o café. Donato, ainda com as orelhas quentes do esfrega, pegou um bolinho com as pontas dos dedos, apreciou-o e deu uma cheirada forte: - Hummm... A sogra, então, sentenciou: - Prove, que você vai gostar. Donato, educadamente, respondeu: - Ó Dona Marinês, claro que vou gostar. Eu adoro bolinho de bacalhau! A sogra quase teve uma síncope. Envermelhou, arregalou os olhos e rosnou grave e forte: Ó, Seu Muliquim, isto é bolinho de mel, seu safado! De mel, ouviu? Colé o quê de bolinho de bacalhau? Cê respeita esta casa e as filhas dos outros. Lave esta mão e passe daqui pra fora e é pra já! |
Por Ucho Ribeiro - 20/6/2016 11:47:02 |
LAS BELLES DE JOUR As aulas no Colégio São José terminavam depois das 11 horas da manhã. Quase diariamente eu descia a rua Belo Horizonte até a igrejinha e pegava a Padre Augusto, um caminho mais longo para ir para casa. O trajeto normal, mais curto, era pela D. Pedro II ou pela Dom João Pimenta, pois eu morava ao lado da Santa Casa, mas o baixo meretrício, situado num pedaço da rua Padre Augusto, me atraia magneticamente. Logo na descida dessa rua, depois da casa da família Urze de Almeida, estabeleciam-se uns ferreiros que colocavam ferraduras nos animais. Um deles era o temido Exupério Ferrador, o Bigode de Arame, que eu morria de medo, pois corria a lenda que ele tinha sido cangaceiro de Lampião e como jagunço havia participado ativamente do tiroteio de 1930, por ocasião da tumultuada visita de Melo Viana. O ambiente era tosco, o chão batido, sem nenhuma cobertura, uns poucos troncos e sempre meia a uma dúzia de burros e cavalos encabrestados à espera da calçadura. Eu passava a passos largos. Transposta a esquina da Pires de Albuquerque, a rua era toda grudenta, pichada de preto pelos dejetos dos óleos queimados pelas locomotivas diesel da Cemig. Eram imensos geradores de energia, alinhados de dois a dois, em cada lado da rua. Um barulho medonho e um cheiro de fumaça de caminhão. Na minha imaginação infantil, sentia-me no futuro, numa embaçada metrópole, intoxicado pela fumaça, pelo fedor e pelos ruídos das monstrengas máquinas. Os misteriosos lupanares vinham logo a seguir. Eu pegava o passeio da direita, diminuía o ritmo das passadas, o coração disparava, num tum-tum que faltava sair pela boca. Tomava fôlego, levantava lentamente a cabeça e a girava em direção à casa de Roxa, no intuito de registrar fotograficamente tudo o que ocorria no prostíbulo. O olhar cirúrgico era esmiuçador em busca de putas ou de parte delas: coxas, calcinhas, bundas, bocas, peitos, sutiãs, batons numa obsessiva coletânea de imagens e fantasias para o bom uso e devaneio logo que chegasse em casa. Fotografado pelo olhar e feito o registro do primeiro bordel, morrendo de medo de ser zombado por algumas das putas, partia para o segundo que, salvo engano, era o de Miana. Deslocava-me, trôpego, atravessando todos aqueles ruídos, palavrões, gargalhadas de putas e a música alta, lembro até de um bolero recorrente de Altemar Dutra, “sonhei/ que tu estavas tão linda/ numa noite de raro esplendor”, e concentrava-me para colher, mais uma vez, com a apurada visão, quaisquer partes ou detalhes que me despertassem, em casa, a sós, lúbricos e pecaminosos desejos. Envolto naquele burburinho da rua e no meu redemoinho interno, prosseguia para passar pela porta do terceiro prostíbulo, o de Geralda Brejeira, minha última chance de mirar e satisfazer meu sonho cotidiano: uma puta peladinha, estalando gostosura, tilintando nudez, sorrindo, com os peitos, a vergonha e os tufos de cabelos à amostra, para eu morrer feliz no hedonismo mais carnal. Pronto. Passou o derradeiro cabaré. Atravessei o devasso caminho. Dessa vez, meus clics olhares registraram uma perna em cima de uma cama ou sofá, uma anágua e uma calcinha dependuradas no varal de um quintal e um magistral meio peito, com o bico quase pulando do sutiã de uma puta que fumava no pequeno alpendre de uma das casas. Ela olhou e piscou pra mim, quase me despiu com a piscadela. Aquele sinal com os olhos tinha mais devassidão que todas as minhas fantasias. Ela ia se ver comigo mais tarde. De posse das imagens captadas, debulhava-as na mente, sem dar mais bolas para os demais quarteirões, para o beco que cortava a Padre Augusto e para os seus comércios. Tudo passava despercebido: a transportadora, o armazém dos irmãos José Maria e João Melo, o moinho de Zé Vieira... |
Por Ucho Ribeiro - 16/6/2016 11:30:51 |
OCUPADO Em um bom papo com Tio João Valle Maurício, ele me segredou que na rua Padre Augusto, nos anos cinqüenta, tinha uma dama discretíssima, de sangue bávaro, chamada Frieda, que atendia, reservadamente, cavalheiros recatados e abonados. Era bem frequentada, pois além de loira, tipo raro no sertão, fazia célebre peripécia que as putas habituais de Montes Claros desconheciam ou acanhavam no ofício. Ela morava bem em frente do escritório de Waldemar Tic Tac, contador metódico, que tinha por obsessão controlar tudo à sua volta. De olho no relógio, sabia o horário da chegada e saída de todos os funcionários das lojas comerciais adjacentes e fazia um verdadeiro rastreamento na rotatividade da madama. Os clientes tinham os seus horários pré-estabelecidos, hora e meia, e a entrada na casa de Frieda era precedida por uma batida na porta com um certo repique, previamente definido. Batuque certo, porta aberta. Certa feita, um mancebo erado do Brejo das Almas, atraído pelas prendas da alemã, desavisado, veio bater na porta da loba germânica, sem prévio agendamento. Batia, dava um tempo, batia de novo e ... nada. Waldemar Tic Tac, do outro lado da rua, pela janela do seu escritório, já tinha registrado que um velho freguês, minutos atrás, já havia entrado na casa e estava desfrutando seu tempo. Ao ver o rapaz bater insistente na porta, não se conteve e bradou: - Oi, psiu! Ô moço! Não tem ninguém aí, não? - É, parece que não. Eu bato e ninguém responde. - Ora, desconfie, rapaz, se você bate e ninguém responde é porque tem! Xispa! |
Por Ucho Ribeiro - 8/6/2016 10:42:36 |
STERCUS CANIS* Em conversas tolas sobre práticas escatológicas ou excretoterapia (designações dadas a medicina popular que utiliza substâncias ou ações repugnantes ou anti-higiênicas, como fezes, urina, cera de ouvido e saliva) eu tive conhecimento da existência de um livro antiquíssimo chamado “Erário Mineral”, que é um dos primeiros tratados de medicina brasileira com os mais extravagantes conselhos e experiências de práticas médicas, escrito pelo cirurgião-barbeiro Luís Gomes Ferreira, editado em Lisboa, em 1735. O autor veio para o Brasil com a intenção de se enriquecer com a mineração. Perdido nos grotões de Minas, ao defrontar com a ignorância reinante na época e com as inúmeras doenças da população, passou a ser, empírica e obrigatoriamente, médico e cirurgião. Curioso, eu naveguei na internet e encontrei o alfarrábio no site da Scielo Livros.** Como era muito interessante, embora copioso, imprimi as partes mais bizarras e as levei para São Gonçalo do Rio Preto, onde pretendia lê-lo no final de semana ao lado do meu guru e raizeiro Irineu. Lia e sabatinava o mestre matuto sobre os absurdos e as veracidades dos conselhos seculares do cirurgião-barbeiro. No livro, o autor dizia que para acabar com alcoolismo teria que dar ao bebum um ovo de coruja mal cozido e vinho misturado com gotas de suor de cavalo. Irineu discordou e disse que a cura para cachaceiro é botar uma garrafa de cachaça no ninho de choco da galinha e depois que esta tirar os pintinhos, dar o conteúdo (fermentado durante os 21 dias) ao biriteiro. O coitado vai pôr as tripas pra fora de tanto vomitar e nunca mais vai querer tomar uma. Para os carecas havia uma receita que não falhava: raspar à navalha toda a cabeça do sujeito e bezuntá-la durante um mês com sebo de homem esquartejado. Irineu torceu a cara e disse: - Onde vamos encontrar homem esquartejado por aqui, Ucho? Seguindo a extensa leitura, o cirurgião do século XVIII dizia que a inflamação da pele em volta da unha curava-se enfiando o dedo doente no anus de uma galinha. Para a cura da malária ele recomendava que o enfermo andasse com um osso de defunto pendurado no pescoço. Irineu se calou, cabreiro e, embora atento, dedicou-se ao preparo do seu paioso. Minha leitura e os conselhos continuaram: no combate à asma, devia-se comer, diariamente, uma lesma esmagada e fervida com mel; a saliva, logo ao se levantar, antes de falar qualquer palavra, era ótima para curar feridas; as crises de asmas deveriam ser tratadas com o uso de formigas torradas com café. O epiléptico precisava beber, por uma semana, uma pinga guardada durante anos com um cordão umbilical de bebê recém-nascido. Para as hemorróidas, havia um tratamento supimpa, porém dificil de ser encarado: enfiar no anus trapos de panos encharcados em suco de limão, pimenta, cachaça e pólvora. Irineu, agoniado, protegendo o seu, inverteu a posição das pernas e disse: so faltô riscá o fósqui, cê besta! Para feridas brabas, aplicar sobre elas um sapo aberto no meio. Chá de grilo para icterícia, chá de penas de urubu para hidrofobia, chá de saco de bode para dores nos rins, chá de cocô de cachorro para tosse e sarampo... - Peraí! Interrompeu, Irineu: - Já vi falá de muitos desses tratamentos e assimpatias. Os qui eu num sei, Abel da Raiz pode dizê se já usô ou não, mas chá de bosta de cachorro, se for alvinha e ressecada, é bom mesmo pra caqueluche, sarampo e pra picada de cobra. Aí, me presenteou com um dos seus causos. Contou que, há muito tempo, aparecia nas bandas das Boleiras, antes de existir o parque do rio Preto, um marchante turco munheca, chamado Nassib, com um palavreado todo atrapalhado, que não acreditava de jeito nenhum nas simpatias e mendicâncias e fazia até chacota das crenças do povo. Arrotava que a única coisa que tinha medo era de cobra peçonhenta e por isso usava um amuleto da terra dele, azul, na forma de um olho. Segundo Irineu, a criatura tinha a mania de levantar as mãos pro céu e dizer emboladamente: “Tão me lasca!” Era só oferecer alguma coisa pra ele e o turco achava caro e dizia: “Tão me lasca!”. Eu, hoje, deduzo que na verdade ele deveria dizer “Tanrı askina!”, que em turco quer dizer “Pelo amor de Deus!” e que sonoramente parece com “Tão me lasca!” Era tão arrogante e descrente das meizinhas e crenças do Jequitinhonha que o pessoal se ajuntou para armar uma arapuca pro filho da puta. Combinaram que no dia em que alguém matasse uma cobra graúda, esta deveria ser levada para o buteco, onde Nassib, invariavelmente, depois de farto almoço, se debruçava e apagava sobre a mesa. Tram-cham. Não passou uma semana, Abel apareceu com uma jararacuçu morta imensa. Esperou só o Nassib esmorecer sobre a mesa e colou a cobra do lado dele. Nisso Chico pegou uma daquelas tábuas finas de caixotes de banana, que tem dois pequenos pregos na extremidade, e explicou: – Eu vou bater a tábua na perna do Nassib e vocês dois, com os porretes, fingirão que estão matando a cobra a pauladas. Dito e feito. Chico, pé ante pé, golpeou a tábua, com os pequenos e finos pregos, na perna de Nassib, enquanto Abel e Xisto baixaram o cacete na jararacuçu já morta, aos gritos de “Olha a Cobra, Turco!” “Cuidado!” “Afasta, Seu Nassib!” O turco deu um pulo e ficou sapateando sem saber pra onde ia ou saltava. Quando viu o tamanho da cobra, aí que sapateou bonito. Ao perceber o sangue brotando e os dois orifícios na perna, berrou: - Tão me lasca! (Tanrı askina!) O cobra me picou! Tanrı askina! O que é que eu faço, meu gente? Nisso, Chico segurou o turco com firmeza, sacolejou-o e disse: - Calma, Seu Nassib, eu vou fazer um torniquete pro veneno não espaiá pro seu corpo, mas fique aqui, quieto e deitado. Xisto, do lado, compenetrado, alertou o turco, já suando em bicas. – Relaxa, homi, enquanto o torniquete vai ataiano o veneno, Abel vai prepará o chá de bosta de cachorro. Ele é cobra criada no fazimento do chá. - Nada de cobra criada! Socorro! Me tira daqui! Tanrı askina! Num é a chá de titica de cachorro que vai me fazer viver. Onde tem uma automóvel pra me levar pra cidade? - Seu Nassib, aqui não tem carro e nem tem cavalo pra te levar a tempo pra cidade. São 10 léguas, turco! Até lá, você já foi pros quinto do inferno. Confia no homi e no chá, pois são os meios que temo e Abel já salvô uma meia dúzia de ofendido de cobras. - Prepara logo esta chá. Tanrı askina! Gritou. - Já estão acedendo o fogo, mas o chá só ficará pronto em 40 minutos. - Você está brincadeira, moço, será que vou aguentar este tempo todo? - Vai ter que aguentá, pois o chá só faz efeito se ficar 40 minutos em água fervendo. - 40 minutas? Com quarenta minutas já apodreci com o veneno. Tanrı askina! Estarei todo gangrenado. Adeus, filho de Haluk e Sarila! Será que vocês não podem adiantar a fervura? Abel, Chico e Xisto balançaram a cabeça negativamente. Nassib, então, no auge do desespero, clamou: Ô gente! Tanrı askina! Me dá logo uma pedaço desta merda seca do cachorro para eu ir roendo até que a chá fica pronta. *Stercus Canis Officinale, também chamado Album Graecum, era um medicamento popular encontrado nas farmácias antigamente, produzido a partir das fezes secas e embranquecidas de cães e de outros canídeos, inclusive do lobo Guará, e usado na forma de chá pra tratar varias enfermidades, principalmente afecções nas vias respiratórias superiores. **Scielo Livros, portal que publica e disponibiliza eletronicamente livros de caráter científico, editados, prioritariamente, por universidades. O “Erário Mineral” foi ressuscitado e republicado, no ano 2002, graças a associação da Fundação Oswaldo Cruz e com a Fundação João Pinheiro (organização Júnia Ferreira Furtado). |
Por Ucho Ribeiro - 30/5/2016 11:57:24 |
VENDA DE VALDIVINO Dia morno na Jaíba. O sol se pôs arrastado, vermelho, deixando turvo de ferrugens o bordeado do horizonte. Foiceiros e vaqueiros, como de costume, largaram o trampo e se dirigiram à venda de Valdivino para lavar a goela e fazer a resenha do dia, na paz. De repente parou na porta da venda a Veraneio empoeirada e amassada da polícia de Itacarambi, conhecida como “Lady Laura”. O Delegado Abrantes desceu decidido, costeado por dois PM`s, ressabiados, com as mãos apertadas sobre as armas. Foi direto ao proprietário, sem rodeio: - Que lambança houve aqui, Seu Valdivino? Que abatedouro foi esse? - Calma, Seu Delegado! Num foi nada não. Senta um pouco nesse banco que eu lhe conto a história todinha. Mas se assossegue, pois de estampido assim eu posso num alembrá duns detalhe, dotô, mesmo tendo muita gente aqui que assistiu e participô da lambança, como o senhor disse... Certo é que, depois da lida, a peãozada estava toda esparramada pela venda, uns no gole, outros no truco e os de sempre contando mentira, até que Crispim de Josefa, aquele corno escurraçado do Brejo do Mutambal, ignorô, assim do nada, nadinha, meteu a mão no balcão e coiceou: - Aqui na Vila Florentina não tem homi!... O pessoal ficou ressabiado, mordido, estranhando o vomitório sem termo, aquele despautério. O chifrudo, então, voltô a relinchar: - Eu sabia, aqui não tem macho messsmo, devia tudo andar de saia... Andalécio, na sinuca, não suportou o desaforo do desafeto antigo e, sem titubear, num giro, afundou o lado grosso do taco na cabeça do Crispim de Josefa, que caiu no chão se batendo que nem galinha quando imolada. No reflexo, o junta de canga de Crispim, parceiro de foice dele lá no Brejo, conhecido por Varmir, grunhiu de lá e passô a sua afiada ferramenta de trabaio no cangote de Andalécio, que desabô pra escanteio. O companheiro de sinuca de Dalécio, de apelido Zé do Grilo, metido a valente, num solavanco arrancô sua peixeira, empurrô Varmir até as pratelêra e furou ele que nem peneira. Fuc-fuc-fuc. E isto tudo num vapt vupt, pois o filho mais graúdo de Varmir, em defesa do pai, avançô na balança da venda, pegô o maior peso, de quilo e meio, e afundô nos miolos de Zé do Grilo. Deu pra ouvir até o crec do arco da moringa. Até aí, nos conforme, briga deles e eu não queria tomá partido. Mas Ednaldo pôs fogo na fervura ao pegá a faca de retaiá porco, deixada no balcão, e partiu pra cima de Nêgo de Ramiro, meu parente afim, pro mode de coisa antiga, de muié, seu Delegado. Então começaram a misturá as coisa, a ressucitá véias mal querência, que não procedia no momento. Naquele ingranzéu, não é que Durvalino, lascador de aroeira, jararaca de espera, se irritô também e machadô uma das perna de Ednaldo? E ieu, até então sem querê tomá partido, instigado naquele redemoim de desavença, comecei a me sentir dentro da confusão. Eles soprando tição de fogueira e eu aqueçeno, né? Por precaução palpei minha peixeira, prumei ela e ajeitei a menina pr`alguma serventia anunciada. No rebuliço, a muié de Ednaldo, chamada Carmina, chegou por trás de Durvalino madeireiro, abraçou ele qui nem tamanduaçu, puxô a cabeça do coitado pelos cabelo e degolô o vivente num corte só. Sangue espirrô que nem esguicho de égua, tintando o chão de minha venda. Aí não teve jeito, seu Delegado, eu e uns chegado, todo mundo de siso, já com a baba grossa dispindurada, se arrevoltemo. Lambança até certo ponto, né, dotô? - Hum! Mas e aí, Seu Valdivino? -Aí nós arretemo e tomemo partido. Foi quando a briga começou. |
Por Ucho Ribeiro - 30/3/2016 10:40:49 |
O SILÊNCIO VERGONHOSO DA COPASA E A OMISSÃO DA SECRETARIA DO MEIO AMBIENTE Em concordância com o Milton da mensagem nº 81423, nunca é demais repetir que o insuportável mau cheiro empesta há muito os bairros Santos Reis, Jardim Brasil, Renascença, Edgar Pereira, Alice Maia. Infecta inclusive o Todos Santos II, passa pela Nova Morada e vai até o Eldorado. Catinga das mais fedorentas. E isto já tem anos e mais anos. Fedentina generalizada. A Secretaria do Meio Ambiente sempre se silenciou. Surda e muda. A COPASA por sua vez, ignora o esperneio e a gritaria da população. Continua calada, omissa, e não se defende quando a sua Estação de Tratamento de Esgoto é acusada de emitir o putrefato cheiro. Uns culpam a ETE, outros acusam as descargas residuais das fábricas do distrito industrial emitidas na calada da noite ou nos finais de semana, quando não há fiscalização ambiental. Se é que existe? A Secretaria de Meio Ambiente deveria se manifestar de forma clara, objetiva e informar categoricamente de onde vem o fedor. Declarar se já aplicou alguma multa ou se já estabeleceu prazo para findar o mau cheiro. Quais foram as efetivas medidas adotadas pela prefeitura para sanear este terrível fedor? |
Por Ucho Ribeiro - 14/3/2016 19:30:01 |
UM DOMINGO PREOCUPANTE Estive nas manifestações. Tudo muito colorido, bonito. Muita gente. O dia estava radiante. Era um amarelo só. Nunca havia visto tantas pessoas espontaneamente protestando contra um governo nas ruas de Montes Claros. Chavões gritados a pleno pulmões contra Lula, Dilma e a corrupção. Que eu me lembre de multidão assim, só nos showmícios das décadas de 80 e 90, quando os candidatos, pra encher a praça, traziam cantores sertanejos do tipo chitãozinhos e chororós. Naquela época, o povo via o show e ia para casa satisfeito, sem dar muita bola para a politicagem. Mas, no domingo, vi alegria, disposição, muita gente cheia de esperança, numa vontade danada de passar este país a limpo. Animei-me. Cumprimentei e abracei muitas pessoas. Muitas. Quase todo mundo que eu via, abraçava. Então, comecei a perceber que era minha geração que estava presente, que maciçamente era minha classe social que estava na rua. Senti a falta de gente que não é possuidora de um poder aquisitivo ou detentora de um padrão de vida e de consumo razoáveis. A maioria das pessoas tinha certamente mais de 35 anos e pertenciam à classe média. A pouca juventude presente era composta de meninos e meninas de até 15 anos que ainda acompanham obedientemente os pais. Raros eram os jovens de 16 a 35 anos protestando. Por que eles não foram? Alienados? Desmotivados? Com o que eles se preocupam? Onde estavam? Sentem que este país não lhes pertence? Esquisito. Não entendi. Nós, os pais, estávamos lá, em defesa de um futuro melhor para nossos filhos e netos e, eles próprios, ausentes. Parece que não estão nem aí para o destino deste país. Ligaram o “foda-se”. Uma pena! Que diferença da minha geração. Lembro que nos comícios da “Diretas Já” e do “Fora Collor” a presença majoritária era de jovens com as caras pintadas. Como disse, senti falta também do povão, dos menos favorecidos. Será que para eles tanto faz, toda política não passa de uma ladroagem, de uma pouca vergonha? Ao final, sempre são eles que pagam a conta. Agora mesmo, a incompetência e a roubalheira do governo acarretaram a crise, a recessão, o desemprego e a inflação, males que quem vai pagar e sofrer intensamente serão os mais pobres. Parece que no dia 18 haverá passeatas em defesa de Lula e Dilma em todo o país. Certamente também não veremos a presença “espontânea” do povo. Os “populares” presentes serão transportados, alimentados e remunerados pelos sindicatos, CUT e MST. Estas organizações não vão para as ruas contra a corrupção, porque são sócias muito bem remuneradas dessa putrefação e defendem desavergonhadamente o governo e os seus malfeitos. Resta-nos continuar mobilizados, em defesa do estado de direito, das instituições brasileiras e em apoio à condenação dos corruptos e safados, seja de que partido for. Pressinto que os corruptos e os corruptores da Lavajato estão percebendo que irão para cadeia, em vista das futuras delações premiadas que serão formalizadas por graúdos políticos e empresários fugindo das altas penas. Assim sendo, a próxima fase será do salve-se quem puder ou do preparo de uma imensa pizza para colocarem no forno. Os Temeres, Cunhas, Calheiros e Aécios, na tentativa de salvar os seus couros e fugir das grades, vão propor um acordão, abençoado por Lula e Dilma, para tentar frear o ministério público federal e a polícia federal. É quanto a isto que deveremos nos mobilizar de agora em diante, pois se estancarem ou melarem as atuais investigações da Lavajato e as futuras averiguações sobre os desvios do BNDES e dos Fundos de Pensão este país não vai ser passado a limpo e corre o risco de virar uma grande Venezuela. |
Por Ucho Ribeiro - 17/2/2016 15:27:06 |
REELEIÇÃO Ano de eleição é tempo dos candidatos criarem os seus slogans políticos e dos pobres eleitores suportarem a irritante ladainha da propaganda. A maioria dos candidatos tem dificuldades para encontrar os seus slogans, porque, aparentemente, parece ser simples, mas não é. Slogan tem que ser curto, de fácil assimilação e certeiro. Tem que ficar gravado, se possível, impregnado na cabeça dos eleitores. É a alma da campanha e é a partir dele que se vende a imagem do político. Um slogan errado é um tiro no pé. Há alguns geniais, como: “Yes, we can” (Sim, nós podemos), utilizado por Barack Obama na sua campanha presidencial, ou “Brizola na cabeça!”, e há outros, desastrosos, do tipo: “Agora vai!”. A frase faz o eleitor relembrar das derrotas anteriores do candidato. Montes Claros já teve vários slogans que fizeram história: “Pisa na fulô que Simeão já ganhô”; “Pedrão, o maribondo do povo”; “Mutirão de novo para o bem do povo.” Porém, nos últimos anos, depois de aprovada a reeleição, as frases dos candidatos de situação são sem graça e sempre as mesmas: - Bom pro povo é fulano de novo. - O que tá bom vai continuar. - Pra seguir em frente. - Pra fazer ainda mais. - Ele chegou com tudo e merece ficar. - É daqui pra melhor. - É preciso continuar crescendo. Não pode parar! Há uma ótima história sobre o afoitamento de encontrar um slogan para a reeleição. Dizem que um prefeito de uma pequena cidade do interior do norte de Minas iria se candidatar à reeleição, mas estava em dúvida com a escolha do seu slogan. Tinha feito uma boa administração, mas não queria utilizar as manjadas frases de sempre, como as listadas acima. Já estava nas vésperas da convenção partidária para o lançamento da candidatura e a indecisão era imensa. Um dos coordenadores de sua campanha, que disputava ser o puxa saco mor, estava ansioso para achar logo um slogan para começar a trabalhar e reeleger o prefeito. A vitória seria a sua garantia de mais quatro anos de baba-ovo e seu emprego garantido. O adulador, numa ida à capital, passou por uma cidade e viu estampado nos muros: “George fez – George vai fazer”. Pensou com os seus botões: “Eureka! É isso!” O nosso prefeito também fez muito e vai fazer muito mais. Não temos que inventar o que já está inventado, o slogan encaixa como uma luva em nossa campanha. Será esse mesmo. Deu meia volta no carro, retornou à sua cidade, decidido fazer uma grande surpresa ao seu admirado prefeito. Nem foi em casa, comprou as tintas nas cores partidárias, saiu à cata de todos os pintores disponíveis e passou a noite no comando do serviço de pintura dos inúmeros muros dos correligionários com o seu slogan adaptado. Foi dormir de manhãzinha, estafado, mas orgulhoso, pois tinha dado a largada na vitoriosa campanha. O prefeito iria ficar satisfeitíssimo e ele, com a bola cheia, teria possibilidade de ganhar até uma secretaria municipal. Não passou um par de horas, acordou sufocado com as duas mãos do prefeito no seu pescoço, enforcando-o e gritando: - Eu te mato, fila da puta! Cê qué mi fudê! O infeliz bajulador, na ansiedade de ajudar, não percebeu um pequeno detalhe. O apelido do admirado prefeito era “Nem”. E a cidade amanhecera toda pichada: “Nem fez – Nem vai fazer“. “Nem” perdeu a eleição, o puxa-saco perdeu o emprego e ganhou o ódio eterno do admirado prefeito. |
Por Ucho Ribeiro - 7/8/2015 16:50:38 |
AUDITORES FISCAIS DA RECEITA FEDERAL ENTREGAM OS CARGOS EM COMISSÃO EM TODO O BRASIL. A Receita Federal do Brasil entrou no dia de hoje na maior crise interna da instituição em toda a sua história. Ao evitar a inclusão dos Auditores Fiscais da RFB (Receita Federal do Brasil) na PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 443/09, o Governo assumiu o risco de encarar o maior embate já travado contra a categoria. Ao descumprir a promessa de que não haveria tratamento diferenciado entre AGU (Advocacia Geral da União), DPF (Delegados da Polícia Federal) e Auditores Fiscais, a base do Governo na Câmara dos Deputados demonstrou falta de compromisso com a categoria. O líder do Governo, José Guimarães (PT/PE), e o líder do Partido dos Trabalhadores, Sibá Machado, contrários à inclusão, enxovalharam a categoria publicamente ao colocarem os Auditores como uma classe menor frente a outras carreiras de Estado. Relegaram os Auditores a terceiro escalão do serviço público ao tratá-los como ‘outras carreiras’ e ‘tudo mais’, ou seja, desprestigiando não só à categoria, mas o órgão Receita Federal do Brasil. A Receita Federal é responsável por aproximadamente 66% de tudo que se arrecada no País, dando sustentação aos programas sociais como o Bolsa Família, Pronatec, Ciências sem Fronteiras, dentre outros, viabilizando investimentos em infraestrutura, saúde e educação, propiciando a formação dos Fundos de Participação dos Estados, Municípios e Distrito Federal, principal fonte de recursos de grande parte dos municípios e dando sustentabilidade a Previdência Social, principalmente no pagamento de aposentadorias e pensões e não menos importante faz o controle aduaneiro (regulando e fiscalizando a entrada e saída de mercadorias do País). Dentro dessa estrutura, os Auditores Fiscais são responsáveis pelas fiscalizações, julgamentos administrativos de processos, análise de pedidos de compensação e ressarcimento, despachos de exportação e importação, atuando firmemente no combate e na prevenção aos ilícitos fiscais e aduaneiros como sonegação fiscal, contrabando, descaminho, pirataria, fraude comercial, tráfico de drogas e de animais em extinção e outros delitos relacionados ao comércio internacional, além do importante papel no combate a corrupção. Para melhor compreensão só no ano de 2014 os Auditores Fiscais da Receita Federal lançaram mediante procedimento de fiscalização mais de 150 bilhões de reais, julgaram processos tributários que somam aproximadamente 126 bilhões de reais além de apreenderem mercadorias que totalizam 1,8 bilhões de reais. Essa grave crise institucional no principal órgão arrecadador do país, devido à natureza e complexidade do trabalho, vai comprometer a recuperação econômica não só da União, mais também dos Estados, Municípios e Distrito Federal, devido ser da Receita Federal a arrecadação dos recursos que compõem os Fundos de Participação. Tendo em vista o duro golpe sofrido pelos Auditores Fiscais no plenário da Câmara dos Deputados, com a rejeição da Emenda Aglutinativa 16, orquestrada pelo líder do Governo e pelo líder do PT, todos os Auditores Fiscais da Receita Federal, detentores de cargos em comissão, estão entregando os referidos cargos em todo o Brasil. |
Por Ucho Ribeiro - 8/6/2015 10:25:01 |
O FURTO NA IGREJA DOS MORRINHOS Lá pros fundos dos Morrinhos se escondia um restolho de cigano alcunhado de Turíbio Caiano, danado para roubar o que via. Embolsava tudo. Matreiro, surrupiava na maior cara lisa. Era cleptomaníaco de mão cheia. Não podia ver nada dando sopa que auferia. Roubava por doença e burrice, pois não tinha nem a quem vender. Os receptadores refugavam a compra do objeto roubado tamanha era a escâncara dos furtos. No bairro, Turíbio era nota de dois reais, conhecidíssimo. Ao apontar nas ruas e becos o povo logo alertava: - Lá vem ele, olhem o rato, fechem as portas. Se desaparecia alguma coisa, o culpado era um só: o caiano. Pois não é que um dia sumiram o cálice e a patena da singela Igrejinha dos Morrinhos. O sacerdote, ao chegar no domingo para celebrar a santa missa, deu por falta do vaso utilizado para a consagração do vinho e do prato que recebe as hóstias consagradas. Ao comunicar o fato aos fiéis, de pronto recebeu a sentença: - Ah, foi Turíbio Caiano! Ele estava zanzando por aqui. O sensato pároco foi logo atalhando: - Que isto, meus filhos, não podemos acusar ninguém. Não podemos cometer injustiças. Devemos ir à delegacia registrar a ocorrência e todos nós rezaremos para que o ocorrido seja esclarecido o mais rápido possível. Assim, em oração, com o amparo de Deus, recuperaremos o cálice e a patena sagrados. Um dos fiéis rezingou: - Pra quê polícia, Seu Padre? Basta dar um aperto no Turíbio Caiano que ele afrouxa facim facim. O padre fingiu que não escutou e foi direto procurar o Major Abdo. Explicado o sucedido, o Major Abdo solicitou ao sacerdote que tentasse arrumar três testemunhas para lavrar a ocorrência e poder prender o suspeito. Par de horas depois, lá estava na cadeia da Dr. Veloso, um povaréu: o acusado Turíbio de Jesus dos Santos, o paramentado padre, as três testemunhas solicitadas e um amontoado de xereteiros da Paróquia dos Morrinhos. Segue-se o interrogatório: Major Abdo dirigiu-se ao sacristão Zé Sinete, primeira testemunha, e perguntou: - O senhor viu o Sr. Turíbio entrar na Igreja e roubar o cálice e a patena? Zé Sinete: - Delegado, num vou mentir que eu vi, mas que foi ele, foi. Este descarado pega tudo que vê pela frente. Pode prender sem remorso. Todo mundo sabe que foi ele. Major Abdo argüiu, então, a segunda testemunha, a beata Dona Aparecida: - A senhora presenciou o furto do cálice e da patena na Igreja? Dona Aparecida: - Doutor Abdo, o senhor me conhece muito bem e posso garantir que eu ponho a mão no fogo se não foi este excomungado. O que ele vê, ele apanha, sem dó. Num respeita nem as coisas sagradas. É rato caiano. Aplica um corretivo que ele abre o bico, Doutor. Major Abdo para Tomé, o vigia da igreja, última testemunha: - E o senhor? Pode me dizer se viu o Turíbio roubar as coisas da Igreja? Tomé: - Óia, Seu Delegado, vê, anssim com os óio, eu num vou dizê que vi. Mas todo mundo du Morrim sabe que ele róba mêmo, sem termo. Pode prendê ele, dotô! Prende logo esse larápio sem vergonha! Major Abdo, depois de uma pausa: - Bem, os senhores e a senhora não viram o Turíbio roubar o cálice e a patena, não é?... Os senhores afirmam que foi ele, mas não viram o fato em si. Você são testemunhas auriculares, de ouvido, de ouvir dizer. Infelizmente, tais afirmações não são provas para o encarceramento do acusado. Dona Aparecida, retrucou: - Num carece de vê, dotô! Todo mundo sabe que este rola bosta róba. Pode perguntar pra cidade inteira. Foi ele. Prende logo esse peste! O Major Abdo, inclinando levemente a cabeça, abrindo as palmas das mãos para o sacerdote, dirigiu-se para o acusado com o olhar firme e sentenciou: - Olha aqui, Turíbio! Eu também tenho certeza de que foi você que roubou o cálice e a patena da igreja. Mas, dada a insuficiência de provas materiais, sólidas, conclusivas... você está, por mim, absolvido. Turíbio, se borrando todo, esquivando-se do olhar do delegado, amofinou: - É, Dotô?... É isto, Dotô? Estou mesmo absorvido? Major Abdo, sério: - Isto mesmo. Está absolvido. Turíbio: - Então, que dizer que eu tenho que devolvê aquela caneca e aquele pratinho besta? |
Por Ucho Ribeiro - 28/5/2015 10:24:51 |
TIMPIM MARITACA Timpim Maritaca era um pinguço falastrão e imprudente. Bravateiro que só ele. Passava a semana oculto na roça, no refúgio da ressaca e no esquivo da enxada. No sábado, vinha à cidade apurar uns mil reis na feira. Com o grosso do trocado abarrotava-se da marvada cana e a ninharia guardava para esvaziar numa rapariga chinfrim. Bebia de se contorcer. Chapado, arrotava coragens intercaladas com elogios à sua montaria e às suas virtudes de cavaleiro. Num desses sábados, depois de vender as poucas dúzias de ovos e algumas galinhas que trouxera da roça, foi pra venda de Fraim, encher a lata e fanfarronar, como era seu costume. Sentou no habitual banco e, bêbado, debulhou o repetido terço de confetes para o seu cavalo e a velha xaropada de mentiras. No final da feira, depois de enfarar todos, deu de ir embora. Ao sair do buteco, defrontou-se com o seu garanhão todo pintado de amarelo. Respirou fundo, deu meia volta e entrou furioso no bar, bufando e mastigando impropérios: - Quem foi o atrevido, o insolente, que pintou o meu rosilho? Se tiver cu que se apresente. Dum canto da venda, levantou um vara pau, um cabra peito-largo, jagunço renomado, Andalécio Quatro-Presas, que caminhou decidido pra cima de Timpim, desembainhando lentamente sua famigerada peixeira e sussurrando entre os dentes: - Olha aqui seu lo-ro-tei-ro de merda, o piquira de cor de bosta que tá lá fora é o pan-ga-ré que vai te levar “ca-pa-do” pra casa, seu borreeiira. Timpim, miúdo, com voz trêmula, esquivou-se: - Peraí, meu senhor! Peraí, meu senhor! Eu só queria avisar que a primeira demão já tá seca, sequinha da silva. |
Por Ucho Ribeiro - 12/3/2015 10:36:52 |
DIA 15 DE MARÇO Como será o protesto neste domingo em Montes Claros? Inúmeras convocações virtuais escancaram-se nas redes sociais, conclamando a população para protestar no dia 15 de março. Porém, inexistem mensagens com informações precisas sobre o horário e o local da concentração. Domingo, dia de descanso, sem pessoas na rua, é a data mais inadequada para mobilizações. O local tem que ser o mais central possível e que exija o menor deslocamento da população. E o horário? Caminhadas a sol a pino tendem a ser estafantes, dispersivas e fugazes. Dia de protesto se faz em dia de semana, de segunda a sexta-feira, no final da tarde, com o sol já morno, quando as pessoas ao deixarem o trabalho, as escolas, os afazeres, podem aderir ao movimento. Falo com uma certa experiência, pois desde pequeno vi e participei de passeatas e protestos. Em 68, rapazote, seguro pela mão de meu pai, assisti os estudantes de BH enfrentarem a cavalaria da polícia. Na época da faculdade, 74 a 77, metido até o pescoço no movimento estudantil, saia às ruas contra a ditadura e corria dos cassetetes da repressão. Em 79, no começo da abertura, reunia, mobilizava e "passeatava" a favor da anistia ampla, geral e irrestrita e pela demarcação das terras indígenas. Em 84, no Rio de Janeiro, participei do Comício da Candelária a favor das diretas já, que foi a maior manifestação pública da história do Brasil, até então. Em 92, juntei-me nas passeatas à milhares de brasileiros, caras pintadas, pedindo a saída do presidente Fernando Collor de Mello do poder. No dia primeiro de janeiro de 2003, fiz questão de juntar-me a uma multidão na esplanada dos ministérios em Brasília para assistir a posse do primeiro líder de um partido de esquerda eleito presidente da república. O primeiro operário. Um homem do povo. Também estive, junto com minha mulher e filhos, nos protestos de 2013, conhecidos como Manifestações dos 20 centavos, Manifestações de Junho, que teve uma propagação viral. Em seu ápice, milhões estavam nas ruas protestando não apenas pela redução das tarifas de ônibus, mas também contra os exorbitantes gastos públicos na Copa, contra a má qualidade dos serviços públicos, indignados com a corrupção política galopante. Mesmo o domingo sendo um dia inapropriado para manifestações, eu voltarei às ruas, com a minha família, para cobrar punição às falcatruas escancaradas e para que o julgamento deste lamaçal não acabe em pizza. Ainda mais agora que Dias Toffoli, ex-advogado do PT, presidirá o julgamento da Lava Jato. Bem, mas se for para chover no molhado, que a chuva dos nossos gritos indignados caia sobre os corruptos e corruptores. Que seja um toró de civilidade para lavar as sujeiras do nosso mundo político. Que a nossa voz rouca das ruas destampe os ouvidos moucos de nosso judiciário. Não vou como incendiário, pois sei que estamos vivendo um momento tenso e perigoso. Que estamos sentados num barril de pólvora, basta ver os telejornais, ouvir as conversas nos botecos, dar uma olhada nos comentários dos emails, whatsapps e telejornais. O Brasil está descarrilhado, temos que fazer alguma coisa. Omissos não podemos ficar. Precisamos salvaguardar nossas instituições, defender a imprensa livre e não incitar a violência. É essencial que saíamos às ruas de forma ordeira, pacífica, como fizeram os parisienses por ocasião do atentado a Charles Hebdo, como protestaram recentemente os nossos hermanos argentinos diante da misteriosa morte do promotor Alberto Nisman, e como fizemos nós mesmos nos protestos do ano de 2013 – é o que nos resta para escancarar o nosso descontentamento e o nosso asco a tanta roubalheira e impunidade. Entretanto, é bom alertar ao povo que irá às ruas e aos organizadores do protesto que tenham juízo. Temos que ter a temperança que tem faltado a Lula e ao governo federal. O nosso prefeito Ruy Muniz e os chefes das polícias militar, civil e federal, que respondem pela segurança pública, devem reunir-se e pensar num plano que assegure a ordem, mas que também garanta a livre manifestação da população. Nós, os descontentes, teremos que ter todo o cuidado e saber que é grande o potencial para as provocações baratas e para a ação de vândalos infiltrados. Deveremos afastar e até mesmo repudiar os manifestantes com bandeiras de partidos e organizações políticas. As nossas legítimas armas num protesto democrático são a voz, a indignação, a serenidade e a defesa do estado democrático e de direito. Para finalizar, é bom estarmos alertas e precavidos com a turma golpista que defende a retomada do poder pelos militares. Possivelmente eles estarão por lá e essa gente é tão inimiga da democracia como aqueles que na semana passada espancaram manifestantes em frente à Associação Brasileira de Imprensa. Eu repudio o petralhismo militante, o bolivarianismo, bem como todas as ditaduras militares, mesmo que temporárias. Saio à rua pelas liberdades democráticas, pelo estado de direito, pela necessária reforma política e contra a absurda corrupção que tomou conta do país. Vamos lá! Domingo será dia de protestar de cara limpa, sem máscaras, mas também será um dia para cantar, rir, reivindicar, distribuir abraços, dar as mãos para um país melhor. Nossa indignação coletiva precisa ser fotografada, filmada e mostrada aos podres poderes de Brasília. Vamos lutar por um Brasil melhor, mais justo, mais honesto, onde as pessoas respeitem as pessoas e os políticos respeitem o dinheiro público. Sem corrupção. Sonho? Talvez. Mas precisamos dar o primeiro passo. À luta! Nossos filhos merecem e nossos netos certamente nos agradecerão! |
Por Ucho Ribeiro - 24/1/2015 08:58:45 |
IRINEU ESTELAR OU CONFETES CÓSMICOS Dia desses, em atoice aguda no Rio Preto, em papo familiar, proseávamos a respeito de estrelas e de nossas insignificâncias mundanas sob a atenta escuta do jequitinhonho Irineu. Um falava sobre a vertiginosa velocidade da luz, outro sobre as volumosas águas nas caldas dos cometas, um terceiro sobre o tamanho do universo, quando Tavo, meu filho, clareou-nos a cerca da escuridão dos buracos negros. - Os buracos negros existem, teoricamente, devido as grandes quantidades de matérias ou matérias em altíssimas densidades. Eles têm a massa volumar tão intensa, que tudo o que se aproxima é engolido, sejam astros, asteroides, planetas, cometas. Até estrelas podem ser surrupiadas. O campo gravitacional é tão forte, que nada escapa. Nem mesmo a luz, que move numa velocidade absurda, pode se safar, ela também é roubada, por isso a escuridão naquela região. Irineu, esquivado, olhar canteado, aparentemente desatento, sentenciou:- Ruum... apertem o criolo, apliquem um corretivo que ele entrega o serviço. Nalgum lugar o cabra escondeu estas coisas tudo que cês tão falando aí, inclusive a fiação. Gargalhadas ressoaram até que Fred começou a demonstrar com uma laranja, as rotações e as velocidades do nosso planeta. - A Terra, no seu movimento de rotação, percorre em 24 horas sua circunferência de 40.075 km, numa velocidade de 1.670 km por hora. Mais de quatro vezes a velocidade máxima alcançada por um carro de F1. No seu movimento de translação, a Terra orbita em torno do sol a 107 mil quilômetros por hora. E ainda movimenta junto com todo o sistema solar, que gira a cerca de um milhão de quilômetros por hora em relação ao centro da galáxia. Nós estamos destramelados a milhões de km por hora, gente! - Viajão, exclamou, D. Jacy. Ao girar rápido a laranja num circulo mínimo e o braço num movimento circular maior, esclareceu: - nós somos um pião zunindo a 1.670 km/h em volta de nós mesmo e deslocando a 107 mil km. Além disso, durante o anual percurso de 365 dias, a Terra dá dois leves balangandãs, afastando um pouquinho do seu eixo, mas aproximando ligeiramente um dos seus polos ao sol, o que faz ser verão num hemisfério e, consequentemente, inverno no outro. - Pára, pára, que eu quero descer, já estou ficando tonta, disse, Kênia. Irineu, desconfiado, afastou o copo de pinga, carburou o paiozo e olhou por cima, duvidoso. Pat, então, perguntou: - Porque tudo num despenca nesta velocidade toda? - Gente, tudo parece que está parado. Apenas parece, porque as velocidades dos movimentos de rotação e translação da terra são constantes, não há aceleração ou desaceleração. É como se o planeta fosse um avião. Todos e tudo que existe estão dentro dessa nave açoitada. Do lado de fora, dá para perceber a tremenda velocidade, mas internamente no avião, tudo acontece normalmente: os passageiros estão sentados confortavelmente, uns se deslocam até o banheiro, outros lêem revistas, a aeromoça serve o café, tudo na mais perfeita ordem. Porquê? Porque todos, inclusive a aeromoça, a xícara, a garrafa térmica, o café despejado, as revistas estão deslocando numa velocidade constante, idêntica. Se desacelerar, sacolejar, bagunça tudo. - Imaginem se na nossa velocíssima viagem cósmica, o planeta Terra gaguejasse? Melhor dizendo, se desacelerasse, mesmo se fosse por um segundo? Seria o caos. Os oceanos lavariam os continentes. Desexistiríamos num triz, num piscar de olhos. Sacaram? Marquim, mais empolgado, destramelou: - Vocês sabiam que a luz do sol para chegar na Terra demora oito minutos? É como se ligasse o acendedor lá e a lâmpada aqui só acendesse 8 minutos depois. Irineu, nessa hora franziu a testa e refugou forte: Ruumm! Eu, então, fisguei-o: - Cê num acredita não, Irineu? Cê tá duvidando desta conversa? -Ô, Ucho, esta conversa docês, de avião, bule de café, pagadô no sol, terremoto, bambolê da Terra, só se for lá pros lado dos Monsclaro. Aqui, desde que nasci, a num ser um ventinho ou outro mais açoitado, tudo é do mesmo jeito, e eu garanto que pros antigos também. O sol todo dia nasce na banda de cá e morre à tardinha na banda de lá. A lua também tem o prumo dela, o seu nascer e o seu minguar costumeiro, só muda o horário. Mas cada um bebe e fuma o que quer e vê o que credita. Tomou papudo! |
Por Ucho Ribeiro - 7/1/2015 17:29:40 |
Prezada Maria Luíza Silveira Teles, Vendo sua mensagem nº 79258, lembrei-me de ter lido há muito sobre o baixo uso da morfina no Brasil. Era uma estatística de proporções disparatadas, do tipo: "enquanto nos hospitais americanos, de cada 1000 pacientes terminais, 380 fazem o uso da morfina, no Brasil, apenas 6 doentes ao final da vida são sedados para não sentirem dor`. A reportagem dizia até que na Argentina a aplicação era quinze vezes superior à brasileira: de 96 para cada 1000 doentes graves. O Brasil chegou a ser denunciado em foros internacionais por deixar pacientes sofrerem dores intensas e desnecessárias. Pelas explicações da época, a baixa utilização da morfina era devido a nossa formação cristã que considera a morte um sofrimento natural e doloroso, que todos devem passar. Um absurdo. Hoje, ao navegar pela internet, deparei no site da Anvisa (http://anvisa.gov.br/medicamentos/controlados/alerta/mundo.pdf) com a seguinte informação: "Menos de 20% dos pacientes terminais e daqueles que sofrem com o câncer ou traumatismos, no Brasil, recebem tratamento adequado para o alívio da dor, diz Elisaldo Carlini, titular de psicofarmacologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e um dos membros da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes das Nações Unidas". Grande abraço, do admirador, Ucho Ribeiro |
Por Ucho Ribeiro - 14/11/2014 23:22:57 |
BAIXADA DA SANTA CASA 4ª PARTE Uma minúscula casa guinada para o poente, ao fundo do Colégio Imaculada, abrigava um casal germânico com três filhos louros, de olhos azuis. O mais velho, John, era colega de Fred, o do meio, Henry, meu colega, e o menor, que não lembro o nome, também estudava no colégio São José. A porta, sempre trancada, só era aberta parcialmente pela mãe quando batíamos para chamar os meninos para brincar. O pai nunca aparecia, não trabalhava nem saia de casa. Na fértil imaginação infantil, achávamos que o oculto e carrancudo alemão era da Gestapo e fugitivo da guerra. Suspeitávamos que fosse parceiro do famoso médico da SS nazista, Josef Mengele, “Anjo da Morte”, responsável pelo extermínio de judeus. Chegamos a montar uma carta denúncia para a embaixada de Israel, colando cuidadosamente palavra por palavra, recortadas de revistas e jornais, porém nunca conseguimos tirar uma foto do temido e misterioso oficial ariano para anexarmos como prova. Creio que só não efetivamos a delação por causa da amizade e afeição que tínhamos pelos três meninos. Ao lado do refúgio da família alemã era o dormitório do internato do Colégio Imaculada. Quase todas as semanas rapazes faziam serenata para galantear as resguardadas internas, entre elas, as belas Marina Queiroz e Suely Oliveira. O cortejo musical se estendia à casa da frente, morada das jovens donzelas Lopes: Teresinha, Maristela e Vicentina(19). No mesmo passeio em direção a Cel. Luiz Pires, residia o solitário e elegante Pedro Santana, mestre nas cadeiras de história, inglês e na norma culta, coloquial, sem gírias. Só saia de casa arrumado e bem penteado, sempre pronto para uma recepção. As duas casas vizinhas eram da família Dias. Na primeira, vivia Dona Aldinha, com suas filhas Ariana e Ana Verena e, na outra, Dona Nenzinha, que tinha uma filha chamada Neuza. Na direção a Rua Reginaldo Ribeiro, havia a casa de Dona Idália, mãe de João Capoteiro, Ernestina, Arlinda e Neném(20). Também na irmã Beata, lado oposto, vizinho do Seu Juquita Queiroz, morava Seu Geraldo Borges do Café Diplomata, pai de uns dez filhos(21). Findando a rua, à direita, em frente a casa da família Tralalá(22), ficava a casa do Seu Píndaro e Dona Ilda(23), que não fugindo à regra, tinham uma porção de filhas, todas bonitas, e um punhado de marmanjos, dois deles notívagos e músicos, Dandão e Davi. À esquerda, era a funerária da Santa Casa, onde fabricavam variados tipos de caixões para os defuntos da cidade. Uns eram acolchoados, nos quais Paulinho, meu irmão, quando matava aula, dormia. Marão o acordava cedo para ir ao Polivalente e ele se esquivava e corria para a funerária. Lá, destampava o caixão mais fofo, deitava e puxava a tampa e o ronco. Só deixava uma frestinha para respirar. Acordava ao final da aula gazeteada. Esperava desinchar a cara e chegava para almoçar. Existia um único caixão para os indigentes, construído com o fundo falso. O pobre morto só era agasalhado até o cemitério. Depois que o caixão descia na vala comum, o fundo era aberto e o coitado despejado. O féretro era recolhido e o defunto coberto de terra. Bai, bai... Na Santa Casa, trabalhavam: Zé Azul, motorista e braço direito das Irmãs, que as acompanhava para fazer compras no mercado e outras tarefas; Pedrinho e Tampinha, mecânicos e eletricistas, responsáveis pela manutenção dos carros; Seu Liordino, um velho senhor que dirigia tanto a Veraneio das irmãs como a caminhonete fordona. Esta tinha uma carroceria de carregar defuntos para o cemitério que parecia um oratório. Um dos divertimentos era cuspir fino e pouco nos olhos abertos dos mortos recém-chegados à funerária, para ver se eles piscavam e fechavam a pálpebra do olho salivado. Tinha ainda dois outros senhores, responsáveis pelo destrinchamento dos cadáveres para a vistoria do legista Dr. Geraldo Drumond: Seu Geraldo e Seu Barbosa. Este último era um negro forte que, antes de iniciar o serviço de corte, ia ao boteco mais perto e tomava um copo até a tampa de pinga. Ao final, outro, para arrematar. Um para ter coragem, o outro para esquecer. Na lateral da Santa Casa também tinha uma fabriqueta de hóstias. Sá Joana, após cortar as redondas pastilhas de trigo, distribuía as rebarbas para a gulosa meninada. Tinha moleque que chegava entalar com as sobras que pregavam do céu da boca a garganta adentro. Na esquina do Café Diplomata, iniciava-se o beco da Coronel Spyer. Logo depois do muro da casa de Tóla, no outro passeio, moravam Seu Idevano, gerente do Automóvel Clube, e Dona Pedrelina(24), costureira de mão cheia. Nosso convívio era com os filhos Marcão (Gordo) e Nenga (Nem Galinha). Este último era o capeta em forma de gente. Uma vez, minha mãe estava encomendando uma roupa na casa de Pedrelina e viu Nenga correndo em cima do muro do quintal. Assustada, mamãe perguntou: - Ave Maria, Pê, este diabo do Nem Galinha frequenta aqui também? Não sei como você aguenta, ele falta me enlouquecer lá em casa. Pedrelina, sem graça, disse: - Ô Jacy, eu tenho que aguentar, Marcos Antônio é meu filho. Colado na casa de Idevano havia o sobrado de João Caldeira, dono da madeireira que funcionava na Irmã Beata, ao fundo lateral da nossa casa. O dia inteirinho ouvíamos o barulho do vai e vem das serras cortando as imensas toras de madeiras. Era de lá que pegávamos a serragem para colocar nos gols dos campinhos de futebol. Ele tinha um filho, Roger que, salvo engano, foi para Belo Horizonte estudar dança, e uma linda filha chamada Vilma. Havia também o assisado Jackson, que o ajudava na serraria, andava sempre arrumado e só se deslocava montado numa bicicleta verde toda paramentada e limpíssima. Tinha um moderníssimo dínamo para acender os faróis e até um rádio acoplado no guidom. De dar inveja. Já quase no final do beco, situava-se a casa do Coronel João de Deus(25) e seus rebentos. Os homens, Ziba, Têra e Ada, eram companheiros de toda hora, tinham o sentido sempre voltado para as brincadeiras e para o futebol, quando não estavam no mundo encantado deles: Juramento. As meninas, Deusmira e Valmira, diferentemente, eram estudiosas e a última tornou-se promotora em Montes Claros. Na Cel. Spyer também moravam Dona Joana e seus filhos, Amarildo, Ronnie e Alexandre, amigos da rapaziada. Bem, depois de tantas e saudosas memórias, o que restou da minha baixada? Onde está o longo muro esburacado da Santa Casa? E o murinho da casa de Jessinho? Cadê os campinhos de futebol e as casas dos meus amigos com as portas escancaradas? Não vejo crianças nas ruas, nem o rio correndo vistoso e piscoso. Não ouço mais a gritaria da meninada, apenas buzinas e freadas. O cheiro de café foi substituído pela fumaça dos carros e das ambulâncias. Só na memória e de olhos fechados ouço o variado barulho dos rolamentos percorrendo as diversas texturas dos passeios das residências: zizizizi, vrum vrum vrum, tlec tlec tlec, vrup vrup vrup, ziiiiiiii, e o sonoro e contumaz tombo. Onde eu guardei as minhas bolinhas de gude, minha manivela de 16 cruzetas e o meu álbum completo de figurinhas, tão quistos? Cadê a minha tanajura mor, da bundona mais inchada, vitoriosa em todos os combates frente às dos outros meninos? E a meia dúzia de cobras de vidro que eu guardava na gaveta do meu guarda-roupa? Para aonde foi a minha coleção de selos, herdada de mamãe? Lembro-me de páginas e páginas de “Olho de Boi”, que troquei com Ernesto e Paulão por míseros centavos, por um lápis de cor ou por uma desejada borracha? Cadê a inocência de Cori, os causos do Cel. Georgino, a gentileza de Seu Juquita, a amizade de Waltinha, a fidalguia de Júlio de Melo Franco, a alegria de Tola, as palhaçadas de Tadeu, os tombos de Aníbal, o fundo musical do piano de Júnia, as brincadeiras de strak-deixa, estátua, bolso esquerdo, a raça de Têra e Ada na defesa e os dribles de Tone Lídio e Malveira no ataque? Não ouço mais a estridente corneta de Mazzaropi, nem a rouca buzina de Adão Padeiro, anunciando o seu pão alemão. Não mais flutuo por cima do rio Vieira, pendurado em cipós, nem pego mais cari em suas águas. Nunca mais nadei em seus poços ou brinquei nos esconderijos de suas margens. Hoje tudo está cimentado, asfaltado, enterrado na nossa memória. Tudo passou, foi embora, levado para longe, como as enchentes do Vieira que arrastavam madeiras, fogões, cobras, portas, vidas e sonhos. Resto-me só, desamparado, neste caos urbano, anônimo, tentando aspirar na memória, inocentemente, um pouco daquele cheirinho de café torrado, na esperança de voltar à minha infância para brincar com aquela meninada alegre e amiga, principalmente com os que se encantaram e nos deixaram saudades. Fim. NOTAS: (19) Filhas de Biô e Florinda Lopes, juntamente com Irmã Marilda, Padre João Batista, o vereador Hamilton Lopes, Geraldo, Antônio Augusto (Antoninho), Romário, Jason e Alexandre. (20) Neném, casada com João Rosquinha, pais de Ernane, Everaldo e Everlando. (21) Geraldo Borges e D. Sinhá, pais de Jandira, Elenice, Luciene, Cristina, Betinha, Marco, Walkir, Irã, Reinaldo e Marcinho. (22) Ubaldino e D. Marlene, pais de Tone Lídio, Lalá, Lucado, Cazoba, Caderinque (Ique), Sergio, Marcelo (Nem) e Viviane. (23) Píndaro e D. Ilda, Ari, Davi, Dandão, Ernani, Danilo, Oldack, Geralda (Gue), Kaia, Ieda e as gêmeas Eni e Adi. (24) Idevano e D. Pedrelina, pais de Marcão (Gordo), Marco Antônio (Nem Galinha ou Nenga), Marília, Mary e Marla. (25) João de Deus e D. Durvalina (Vainha), pais de Ziba, Têra, Ada, Deusmira (Di) e Valmira. 4 |
Por Ucho Ribeiro - 9/11/2014 13:20:24 |
BAIXADA DA SANTA CASA (3ª parte) A encascalhada Rua Irmã Beata era usada como corredor de bois para o matadouro Otani. Ao ouvir o toque do berrante repicado amadrinhando a boiada e ao avistar de longe a poeira em nuvem levantada, todos corriam para dentro de suas casas. Das janelas, portas e varandas, a meninada arreliava o tropel esquentado, bufante, torcendo por um estouro ou por um desatino de uma vaca mais doida, que não raro saltava a mureta de uma casa e fazia um escarcéu no jardim. Passado o tumulto, a rua ficava toda esverdeada, salpicada de estrumes, que deixavam o rastro e um cheiro de curral. Essa nem tão beata rua foi uma chocadeira de artistas. Dali saíram vários músicos e compositores. Depois da casa de Baixote morava Dona Carlota(15), mãe de uma porção de gente, inclusive de Tadeu, artista polivalente, mambembe, circense, itinerante. Rodou o país como músico, teatrólogo, hippie, artesão e o escambau. Viveu e bebeu a vida como poucos. Sempre alegre e criativo. Seu irmão, Dirceu, foi-se novo. Outra das minhas primeiras sentidas mortes. Mas a figura que habita o melhor da minha lembrança é Vicença, uma velha empregada, que passou a vida na casa de Dona Carlota. Era compacta, cheia, rosto redondo, despachada, alegre e conversada. Entendia-se bem com os adultos e dava conta da vida da meninada inteira. Sabia dos malfeitos, das brigas, dos romances e de todos os fuxicos e intrigas, mas não entregava ninguém. Amigona da garotada, sempre alertava: - Ó, soverte, sua mãe está atrás de você. - Cuidado, Seu Cristóvão está sabendo que você passou bosta na chave do relógio da casa de Dona Piluxa. - Os meninos já desceram para jogar bola. - Fulaninha tá dando mole procê! Acoche! Era o cupido da safadeza. Estimulava e dava guarita pras malinagens. Sabia de tudo, mas sempre de bico calado. Não entregava a criançada, que confiava nos seus conselhos e dicas. A casa seguinte era a de Cori Gonzaga(16), a eterna criança. Desde pequeno já participava das molecagens dos mais velhos. Não era o artífice, mas cúmplice, sempre xereta. Cedo pendeu para música e para os atrativos da noite. Adolescente, percorreu o Brasil com o Grupo Raízes. No compor músicas belíssimas procurou inspiração em muitos venenos e volta e meia calcava o pé no coentro. Uma vez, ao sair de casa à noite, deparei com Cori sentado sozinho no murinho. Triste. - E aí, meu poeta, como vão as coisas? - Ô, Ucho, eu não tô bom não. Cê acredita que eu esqueci o nome de mãe? O jeito foi recomendá-lo ir para casa tomar um copo de leite e dormir. – Amanhã conversaremos, Cori. Outra feita, num velório na Santa Casa, Cori, que morava ao lado, apareceu para ver quem era o defunto. Manso, chegou junto ao caixão e perguntou a um dos familiares: - Ô, Nem, o compade aí morreu de quê? O parente, sentido, em voz baixa, respondeu: - Já estava doente há muito tempo. Cori arrematou: - Ah, então já tava carunchado, né? Casa cheia era a de Seu Juquita Queiroz(17). Fábrica de artistas e músicos. Tudo pedra noventa. Era gente que não acabava mais. Recordo do Seu Juquita sempre formal, bem vestido, educado, elegante. Cumprimentava todo mundo, levantava o chapéu para as senhoras e tinha trato até para as crianças. Canarista e amigo do meu avô Pacífico, que sempre remoía: Todo criador de canário da terra é gente boa e séria. Pode confiar. Uma vez, Seu Juquita, ao chegar em casa, deparou com um menino em cima do muro contemplando o por do sol. - O que você está fazendo aí em cima do muro, jovem? O garoto pego de surpresa: - Ahn? Seu Juquita, curioso, indagou de novo: O que você está fazendo aí em cima do muro? O rapazinho respondeu, brandamente: - Tô de bobeera. - De bobeira? Como assim? À tarde, sempre passava um vendedor gritando: - Olha a paçoquinha! Olha a paçoquinha! E em certos dias, frisava: “Hoje tem! Hoje tem!” Os desinformados achavam que ele anunciava que quem comprasse sua mercadoria afrodisíaca ia ter uma caliente noite. Mas para os entendidos, avisava que naquele dia ele estava abastecido com outras especiarias mais alucinantes e contemplativas. Existiam outros ambulantes vendedores de guloseimas para a molecada. Um era Mazzaropi, que de longe tocava sua corneta estridente avisando a chegada de sua deliciosa iguaria – “Olha o quebra queixo da Bahia, quem tem dinheiro compra, quem não tem espia..... Burlesca e ao mesmo tempo fúnebre era a doceira Pacífica, sempre de luto, vendendo pés de moleque, doces de leite, cocadas brancas e pretas. A dupla concorria com os vendedores de pirulitos em cones de rapadura derretida, envoltos em uma fina película de papel manteiga e encaixados nas dezenas de buraquinhos de uma tábua furadinha que ficava pendurada no pescoço do ambulante. De noitinha, apareciam pipoqueiros na Praça da Santa Casa, com os amendoins achocolatados, os cocos caramelizados, os algodões doces coloridos e os tradicionais roletes de cana caiana. Mas o suprassumo das gostosuras era a bala de puxa das Irmãs do Imaculada. Na fissura de refrigerantes, bebida rara naquela época, saíamos de casa em casa atrás de garrafas e litros para trocarmos pelo guaraná da fábrica RC, que por um tempo funcionou na Rua Irmã Beata. Dividíamos a bebida, gole a gole, sem nojo ou higiene. Lá perto tinha também uma das delícias de Montes Claros, a paçoca de Dona Teresinha Vasconcellos(18), muito apreciada pelos adultos. Doces não eram vigiados. Os adultos adoravam ver os pequenos comerem fartamente. Até incentivavam a comilança. Ninguém preocupava com obesidade e nunca vi criança fazer regime. A meninada era ativa, não ficava parada. As brincadeiras aconteciam na rua e despendiam muita energia. Íamos a pé ou de bicicleta por todo o canto da cidade. Brincávamos até o anoitecer e nossos pais desconheciam o nosso paradeiro. A patota era unida e havia regras que eram seguidas à risca, pois todos tinham o sentimento de pertença a baixada e se orgulhavam de ser da turma. Continua... NOTAS: (15) D. Carlota, mãe de Tadeu, Dirceu, da grande mestra Edméia, de Dilma (namorada de Beto Viriato), Fredo, Frido, Lindéia e Dílson. E a empregada Vicença. (16) D. Clarice, viúva de Antônio Gonzaga, pais de Cori, Antonina, Sandra e Artur. (17) Seu Juquita Queiroz e D. Lia, pais de Ruy Bongô, Dino, Marcos (Juquitão), Juquitinha (Nuné), Rosa, Amália, Marly, Olívia, Suzana e Silvia. (18) D. Teresinha Vasconcellos, mãe de Cláudia, Sônia, Tina, Juliana e Leonardo. 3 |
Por Ucho Ribeiro - 31/10/2014 14:19:30 |
BAIXADA DA SANTA CASA 2ª PARTE O maior desejo da garotada era ter um carrinho de rolimã. Andávamos a cidade inteira pelas oficinas mecânicas em busca de rolamento, que era a coisa mais difícil e cara do mundo. Precisávamos de quatro. Dois mais robustos para o eixo de trás, que ficava sob o banco e, outros dois, que podiam ser até menores, para o eixo da frente, que era comandado pelos nossos pés. Os que não tinham carrinho se ofereciam para ser o braçal motor do piloto. A cada cinco voltas, quem empurrava o bólido pelo circuito dos passeios tinha o direito a uma volta de brinde. Os motores/meninos mais fortes, que proporcionavam maiores velocidades aos carrinhos, eram disputados e presenteados com voltas extras. As competições eram rotineiras. A vontade de ganhar e a falta de freios causavam sucessivos acidentes. Todos os garotos tinham as palmas das mãos escalavradas, os joelhos e os cotovelos arranhados e, algumas vezes, a testa rachada. À tardinha, no banho, era um chororô só. As mães esfregavam sem dó as perebas dos pilotos para retirar a sujeira impregnada nos ferimentos e passavam o ardido mertiolate. Fora o esmeril causado pelos carrinhos de rolamentos, sempre tinha um menino com gesso no braço ou na perna, com dente quebrado e cabeça lascada devido às outras estripulias. Abaixo da casa do Georgino, residia Dona Pilucha(6). Em seguida, seu filho Júlio de Melo Franco, casado com Dona Santuza(7). Da rua, dava para ver, na biblioteca, o circunspecto jornalista e advogado manusear seus livros, e ouvir sua primogênita tocar piano. Era Júnia que comandava os sazonais namoros da criançada. No meio de junho, ela começava a arrebanhar os xucros meninos para a grande quadrilha que acontecia todo ano, em 4 de julho, aniversário do seu irmão Aristeu. Era um upa para levar a meninada para ensaiar, pois todos só queriam saber de bola e brincadeiras na rua ou no mato. Com jeitinho Júnia ia amansando e acasalando os pares da quadrilha de acordo com o gosto das meninas, há muito definido. No começo, os garotos nem pegavam nas mãos das meninas. Ensaiavam numa má vontade que só vendo. Não acertavam um passo, não batiam as palmas, o sentido era um só, dar linha daquela dança jeca. Mas com o tempo, o carinho e o perfume das garotas domavam os moleques. No dia da quadrilha, após uns dez ensaios, a molecada estava toda caidinha pelas mocinhas. As mãos até suavam de gosto. O “tu” já era rodopiado juntinho e brotava até ciúmes dos anavãs, pois estes afastavam temporariamente os pares. Ao terminar a quadrilha, todo mundo estava enamorado. Paixão que não durava muito. Aos poucos os namoricos eram desfeitos, devido às troglodices dos garotos. Irrequietos, não aguentavam a regulagem das namoradas e acabavam fugindo daquela ardilosa arapuca para as brincadeiras de rua, o nadar no Vieira e as peladas. No passeio oposto ao de Júlio Melo Franco, morava Seu Robson Crusoé(8), um certo herói para criançada por ter sido, em tempos outros, chefe de escoteiros. Porém, nunca convivemos com este seguidor de Baden-Powell, nem com os seus filhos, devido à diferença de idades. Colado neles, residia o fazendeiro Lauro Maia, alto, pálido, meio seco. Era, no entanto, a mais calma das criaturas e vivia para satisfazer sua mulher e suas sete filhas(9) em todos os seus caprichos. Abaixo, depois do Café Diplomata, por um tempo, viveu uma senhora, Dona Badu, recatada, de sotaque dessemelhante, com os seus cordatos filhos, Arnaldo, Paulo e Guinha, que depois regressaram para sua saudosa cidade paulista. No final, virando à direita, era a casa de Lôla e, em frente, a morada temporária do encapetado Roberto Piranha. Ainda naquele toco de rua lateral, hoje chamada de Gabriel Passos, residiam o fotógrafo Valdevi, sua esposa Dona Neide e seus quatro filhos(10). Havia três campinhos de futebol. Um em frente ao Café Diplomata, num terreno irregular com traves marcadas com pedras, onde passávamos a tarde tentando domar a enfurecida bola que chicoteava pelos tufos e buracos. O outro, dos eucaliptos, ficava mais adiante, perto do Curtume. Lá chegamos a jogar alguma coisa mais parecida com futebol, pois o campo, embora pequeno, era plano e tinha traves de madeira. Os craques eram Tola(11), Lôla(12), Tone Lídio e todos os seus irmãos, do maior ao tampinha de binga, inclusive sua exímia irmã Viviane(13). O terceiro terreiro de bola era bem ao fundo do terreno do Colégio Imaculada, na Vila do Grilo. Lá, só jogavam renomados, Malveira, Márcio, Marcos e outros com passagens marcantes pelo Ateneu e times da cidade. Jogar com e contra eles era um orgulho e um fiasco, pois humilhavam a garotada com dribles desconcertantes e goleadas de dois dígitos. Durante as peladas tabelavam até com duas arvores barrigudas que solenemente sombreavam o meio do campo. Zombavam até que uma delas fazia mais gols que todo o nosso time visitante. O calçado tênis não existia, quando muito um Kichute. De rede e jogo de camisa só me lembro de quando havia jogo na casa de Dr. Geraldo (Bilé) (14). Lá também ninguém derrotava os Machados. Apitavam até offside em futebol de salão para anular um gol marcado contra o time da casa. O único jeito de ganhar era entrar para o invicto time deles. Se não tivesse ninguém jogando bola nos campinhos, era certo que a garotada se encontrava nas cavernas ou nos esconderijos à beira do Vieira e do Pai João, onde, escondidos em latas enterradas, estavam os preciosos e indecentes catecismos de Carlos Zéfiro. Apareciam de tempos em tempos e acabavam desfolhados devido ao contínuo uso. Eram a inspiração maior para as diárias e sucessivas bronhas. Havia até concurso para ver quem as batia mais e seguidamente. Tudo na maior desinibição ao vivo e a cores. Uns furavam o barranco de argila do rio com o dedo, punham um pouquinho de água e mandavam ver. Degustavam em sonhos as mais belas meninas da cidade e uma sortida variedade de artistas de Roliúde. Quase todos tinham uma bananeira escolhida como concubina, pela qual até manifestavam dor de cotovelo. Na altura da pingolinha, perfuravam o tronco e encontravam o céu. O pintinho permanentemente estava roxo, pois a nódoa demorava dias para sair. Pinto limpo, sem mancha, só mesmo na abstinência da Semana Santa. Do domingo de Ramos até o sábado de Aleluia, a meninada guardava suas endiabradas pistolinhas, ou melhor, não as tiravam para fora do calção. Elas permaneciam intocáveis até a meia noite da sexta-feira. O vício solitário e as indecências eram pecados mortais na semana do Senhor morto. Suas práticas eram bilhetes certos, de ida, para o temido e ardente inferno. Todos ficavam acordados na espreita das primeiras horas do sábado de Aleluia, quando tudo retornava ao dantes e a garotada tirava o atraso. O império onanista imperava até a criançada atinar para a preparação da queima do Judas ou para a distribuição de cascudos nos outros meninos. Não sei o porquê, mas no sábado, véspera da Páscoa, todos davam coques e beliscões a torto e a direito e justificavam: “Aleluia”. Creio que o sentido era dizer: “Cansei de ser santo, puro, imaculado. Chega!” Houve um torneio para ver quem seduzia a maior variedade de bichos e coisas. Linca, que não era fácil e por ser o menor, queria fazer o mais difícil para ganhar a competição, comer um cupim. Não o cupinzeiro como o barranco do rio, mas o isóptero, o inseto. Puxou o pinguelinho e colocou a criatura na pontinha do pintinho. No primeiro vai e vem levou uma ferroada bruta. No chororô, desesperou vendo a cabecinha da sua pombinha crescer e roxear. Em poucos minutos, ele, menino, ficou a segurar aquele pintão de gente grande, sem nenhuma fimose. O rápido inchaço apressou o árduo e diário trabalho que os garotos tinham para retrair na munheca a capa da pistola e expor a glande para fora. Difícil foi ter coragem para explicar e pedir a Marão uma pomada para aquela extravagância toda. Fora a dor e a prévia vergonha de mostrar ao velho, que não fez nenhuma reprovação, Linca foi vitorioso duas vezes: ganhou o campeonato e o trunfo de ter o primeiro pinto com a cabeça totalmente exposta. Um par de dias depois, o desinchado e calvo pinto foi mostrado orgulhosamente para a invejosa meninada. Continua... NOTAS: (6) D. Piluxa, mãe de Cristóvão, Júlio, Márcia e Cleusa. (7) Júlio Melo Franco e D. Santuza, pais de Júnia, Aristeu, Floriano, Júlio César, Otávio Augusto, Suzana, Janice e Raissa. (8) Robson Crusoé e D. Zizinha, pais de Eustáquio, Robinho, Raquel e Jaime. (9) Lauro Maia e D. Nenzinha, pais de Marina, Ângela, Marly, Fátima, Beatriz, Tânia e Andréia. (10) Valdevi e D. Neide, pais de Mara, Zana, Paulo Benzina e Rogério. (11) Tola, filho de Antônio Mineiro e irmão de Laís. (12) Lôla, irmão de Dimas, Didi e Mônica. (13) Antônio Elídio, filho de Seu Ubaldino e D. Marlene, irmão dos craques: Lalá, Lucado, Cazoba, Caderinque (Ique), Sergio, Viviane e Marcelo (Nem). (14) Dr. Geraldo (Bilé) e D. Thais, pais de Geraldão, Flávio, Luiz, Marcelo, Telmo, Paulinho, Terezinha, Thais e Laís. |
Por Ucho Ribeiro - 27/10/2014 10:34:02 |
BAIXADA DA SANTA CASA 1ª PARTE Dia desses, bestando calado em uma demorada espera de consulta médica, fiquei abismado com o caos que se transformou o entorno da Santa Casa. Trança-trança de barulhentas ambulâncias à procura de um estacionamento e de indóceis pacientes em busca de atendimento. Aquele furdunço todo a acontecer no meu naco mais íntimo, onde vivi a minha divertida infância e adolescência... Antes, era um arrabalde de casas ocupadas por famílias empencadas de crianças. Não existia comércio, nem consultórios, nem clínicas, nenhuma prestação de serviços. Não havia mão nem contramão, pois automóveis não transitavam por ali, salvo os de uns poucos moradores. Precárias ruas sem pavimentação, cobertas de cascalho miúdo socado, terminavam naquela baixada, que tinha ao fundo o rio Vieira. A Coronel Luiz Pires, que começa na avenida Cel. Prates, só rompia três quarteirões abaixo, até pouco depois da fábrica do Café Diplomata e reduzia-se a uma ruela ramificada em trilhas que nos levavam as margens do nadável rio. A Rua Irmã Beata morria na funerária da Santa Casa, em frente à residência de Píndaro. Sua paralela, a Cel. Spyer, era um beco sem saída, nem começava direito e já esbarrava no muro lateral do Colégio Imaculada. Estes poucos logradouros e mais o mato ao redor eram o nosso gueto, o nosso umbigo, sempre envolto num perene aroma de café torrado. Raramente deparávamos com crianças que não fossem da nossa tribo. A baixada não era passagem para lugar algum, a não ser para uma pinguela que nos levava ao Curtume, onde um prático dentista, sempre chapado, ameaçava cair todo entardecer ao retornar do seu arranca-dentes. Durante as chuvas, a trilha ficava escorregadia e a meninada, empoleirada na escadinha do café, torcia pelo tombo. Queda ocorrida, com aplausos e risos, corríamos para socorrê-lo. A primeira casa da Cel. Luiz Pires era do seu Ernesto da Barroso(1), que não gastava tempo com a nossa rua. Toda manhã o seu sentido estava no quarteirão do povo, na sua papelaria, no escarafuncho dos assuntos políticos e nos fumegantes fuxicos do Zim Bolão. Abaixo, onde hoje é a Santa Casa Olhos, morávamos nós(2) - papai, mamãe, oito filhos e, durante um tempo, os nossos avós maternos. As casas da baixada não eram protegidas por muros. Tinham apenas muretas ou grades pequenas, que não tapavam as fachadas das residências. As portas viviam abertas, a meninada entrava sem bater, convocando para as brincadeiras. Andávamos em bando, conluiados, brinquedos e segredos compartilhados. Em frente da nossa casa residia Dona Gladys(3), generosa mestra do Grupo Francisco Sá, que pacientemente alfabetizou metade dos meus irmãos com suas aulas particulares. Vivia com seus filhos, três sobrinhos e sua calada mãe, Sá Luíza, sempre munida de cachimbo e muleta. À tardinha, Sá Luíza nos dava um troco para comprarmos o seu traçado na venda de “Genaro Meu Irmão”(4). Os seus filhos Tinim e Waltinha eram meus irmãos de unha e carne na infância. Eu passava o dia na casa deles. Lá criávamos preás, coelhos, tartarugas, cágados, passarinhos, fazíamos manivelas, montávamos pipas, araras e guardávamos todos os nossos tesouros em seus quartos: bolas, canivetes, bilboquês, gibis, piãos, bolinhas de gude e álbuns de figurinhas. Mônica, minha irmã, também adorava estar ali, mas seu interesse era outro – ler e reler as melosas fotonovelas das revistas Capricho e Contigo, que nossos pais proibiam terminantemente. Ao fundo da casa de Dona Gladys havia outro café, o Primor, do popular Tuca Amorim. Ao final do dia, escalávamos um robusto pé de goiaba encostado no muro divisório para nos deliciarmos vendo, pelas frestas do telhado, as funcionárias da fábrica tomarem banho para retirar o suor e a fuligem do café. A meninada, empoleirada, toda de pintinho duro, nem piava. De olhos arregalados, maravilhava-se com aquele mulherio pelado, risonho, ensaboando-se. Puro cinema. Marquim, meu irmão, que só conhecia xibiu de criança, ficou decepcionado ao subir na goiabeira pela primeira vez: - Ô Ucho, eu só vi os peitos delas, não deu pra ver o resto, não. Todas puseram umas buchas entre as pernas. Na esquina do Café Primor, em frente, estava a casa de seu Edson, que era dono de uma Rural saia e blusa, branca alaranjada, e da lanchonete localizada no passeio da Praça Dr. Carlos. Ele e Dona Teresa tinham uma ninhada endiabrada de filhos: Panga, Baixote, Edí, Ninha e Lê. Patota malinamente entrosada com todos os meninos da rua. No outro passeio da esquina da Irmã Beata, residia o famoso Cel. Georgino(5). Era dos poucos adultos, ou o único, que sentava com a meninada para prosear. Criança era apartada de gente grande. Mundos diferentes, mas como vivíamos sentados no murinho da sua casa, maquinando para aprontar alguma, de quando em vez o Coronel aparecia e dava uma canja com seus causos. Certa vez, ele chegou a esta mureta, onde amontoava-se a meninada miúda e alguns graúdos e começou a contar uns causos de onça. Cada um mais arrepiante do que o outro. Numa das estórias, depois de narrar com detalhes a enorme e raivosa onça pintada e relatar minuciosamente como a bichona faminta se encorpava pra cima dele, Ruy do Bongô, troviscado, com os olhos arregalados, o interrompeu abruptamente: – Coronel, Coronel, mas esta onça devia tá muito doida pra querer enfrentar o senhor, não? Georgino não conteve o siso, nem o riso, gargalhou. Era neste baixo muro que a molecada se juntava, desde as primeiras horas da manhã até a noite, para bolar as brincadeiras: brasil e espanha, mãe da rua, queimada, paredão, acadabaspará. Criávamos e praticávamos jogos com simples paus e pedras. O nosso “cabas pará”, chamado em Belo Horizonte de “bentealtas”, era jogado no passeio dos Melo Francos. Lá tinha uma tampa de ferro da Caemc que servia de um dos apoios para o jogo. As duplas se formavam e aguardavam a vez definida no par ou impar. Horas se passavam naquele divertido vai-e-vem, na tentativa de derrubar a casinha piramidal feita de três pauzinhos de madeira pregados num quadradinho de couro. Nada como aparar no ar uma bola defendida ou arremessada e gritar: Vitória! Quando surgia um álbum novo de figurinhas, o bafo tomava conta dos passeios. Chamava-se bafo porque era o vento provocado pelas mãos durante a batida no monte de figurinhas que as fazia virar. A garotada formava roda para a disputa. Cada menino colocava uma quantidade combinada de figurinhas no bolo e, pela ordem, depois de arrumá-las, batia com a mão em concha ou aberta no monte. As que viravam ao avesso eram recolhidas pelo garoto que tinha acabado de bater. Uns mais traquinos curvavam um pouco as figurinhas ou passavam um leve cuspe na mão para virá-las. Volta e meia uma trapaça era descoberta e os sopapos comiam soltos. Raiva e choros amansados, a molecagem voltava ao jogo. Ninguém chamava papai ou mamãe. A parada era resolvida ali mesmo, naquele foro infantil. Certas brincadeiras eram definidas pelas estações. Em agosto, com os fortes ventos, no azul céu surgiam as coloridas pipas e araras. A meninada, com os sentidos nos ares, dedicava o dia à manufatura de seus artefatos voadores. Cola, papel e os carretéis de linha 40 eram comprados na loja de Tamiro, no beco Cônego Marcos, e as taliscas eram retiradas dos raros pés de bambus existentes na baixada. O sonho da criançada era montar uma arara biteluda, multicolorida, rabuda ou sureca, e ter uma manivela de 16 cruzetas nas mãos para recolher ligeiro e esticadinha a linha. Final de setembro, com a chegada das chuvas e a maciez dos terrenos, iniciava-se a temporada dos jogos de finca e bolinha de gude. O chão das ruas ficava todo riscado pelas fincas e biloiado pela variedade de bolinhas existentes à época: gataiadas, leitosas, sorteiras, bolofofos. Só se ouvia a criançada gritar: “Gute, please, todos!”, “Bololô na minha!”, “Mão quieta!”, “Rondas!”, “Quero tudo e não dou nada”. A despedida das águas era o tempo de sairmos à cata de tanajuras. A meninada toda, com uma garrafa litro debaixo do braço, se espalhava pelas ruas colhendo as formigonas bundudas para trocar com Toni Pinguim por um picolé. O nordestino adorava comê-las fritas como pipoca, mas tínhamos a leve desconfiança de que ele usava o creme das bundas delas para fazer os tão procurados picolés cremosos. Continua... NOTAS: (1) Ernesto e D. Dilma, pais de Ana Amélia, Ernesto, Paulão, Dilsinho, Denise. (2) Mário e D. Jacy, pais de Pat, Fred, Ucho, Marquim, Mônica, Paulinho, Márcia e Bertha; vovô Pacífico, vovó Eny; três auxiliares que seguravam o tranco das tarefas caseiras: Joana, Dui e Sá Rita; e Benjamim, o motorista. (3) D. Gladys, mãe de Beatriz, Fidelina, Tião, Tinim, Waltinha. Viviam ainda lá, os sobrinhos Neguinha, Luizinha, Eustáquio e a avó Sá Luiza. E era diariamente frequentada pelos primos Carlúcio (Tuca) e Lóis. (4) Genaro, pai de Glicério, o rei das embaixadinhas, mascote do Cassimiro de Abreu, e de Glicéria e Glicídia. (5) Cel. Georgino e D. Dinorah, pais de Lúcia, Lídia, Leda, Jorge, Georgino Junior (Gininho), Jefferson (Jessinho) e Guilherme. |
Por Ucho Ribeiro - 29/9/2014 11:45:05 |
É um disparate! O nosso poeta maldito, benquisto por muitos, cantor, compositor e escritor Elthomar Santoro, autor da música “Rapariga do Bonfim“, morreu nesta manhã no Hospital Haroldo Tourinho, por complicações cardíacas. Elthomar tinha 56 anos e foi um dos maiores compositores musicais que Montes Claros já teve. Compôs centenas de canções e várias delas são e serão cantadas para sempre pelos nossos jovens. “Elthomar, você foi embora Vou morrer de tristeza e desgraça Vou enterrar o meu dente na cachaça por você me abandonar. Mas se queres ir embora para sempre Será um disparaaaate.” O corpo será velado a partir das 13h no Centro Cultural Hermes de Paula. Estarei lá! |
Por Ucho Ribeiro - 15/9/2014 10:17:20 |
ADELÍNIO MEIA COLHER No finalzinho dos anos setenta, coube a mim tomar conta da fazenda Ipueira, lá nos cafundós da Jaíba, beira do velho Chico e ermo do sertão. Ia pra lá desmatar, fazer carvão, plantar capim e criar boi. Triste sina. Quem sou eu, hoje, para derrubar um pau, uma árvore. Sou incapaz de quebrar um galho ou fazer uma poda e há 35 anos eu derrubava alqueires a correntão puxado por tratores D8. Juntava aquela imensa moçoroca de aroeiras, angicos, barrigudas, ramas e cipós e tacava fogo sem dó nem consciência. Um inferno que ardia por dias e noites. Era o que se fazia, desajuizadamente, com autorização do IEF e do Ibama. O orgulho era arrotar: - Na minha fazenda não tem um pau, uma sombra. Tudo liso. Puro capim. Hoje, macambúzio, vejo as fazendas encapoeiradas e os rios secando um a um. Envergonho-me. Mãos à palmatória. Bem, nessa época, como eu passava a maior parte dos dias naquela tosca e rústica empreitada, precisava de pelo menos um canto pra repousar a noite. Resolvi, então, fazer uma casa, mesmo sem luz elétrica e confortos. Porém, lá não havia pedreiro, nem mestre de obra, as choupanas eram feitas de adobe e taquara. O ribeirinho do São Francisco era afastado do mundo. Televisão não existia, rádios, uns poucos, mesmo assim, desligados, pois pilhas eram caras e não tinham onde comprar. Materialmente, o povo sobrevivia de peixe e abóbora, desconhecia qualquer tipo de consumo e tinha medo de automóvel. A vila Florentina, que ficava ao lado da fazenda, era uma Macondo, que vivia em volta do seu umbigo. Existiam para eles mesmos e desconheciam o resto do planeta. Embora isolados, eram curiosos e respeitosos com a pouca e rara gente da cidade que aparecia. Na longa busca por pedreiro em Montes Claros me restou Adelínio, que se apresentava dizendo: - Muito prazer, Adelínio Figueira, seu servo. Era metido a besta que só ele. Imagine um pedreiro que fazia as unhas aos sábados. Usava cabelinho glostora, empastado, fiapo de bigode aparado a navalha, perfumado a Lancaster. Quando o sol esquentava, o sobaco suava e o azedo do Rastro avisava. Sonhava ir ao Chacrinha cantar “Parece que eu sabia que hoje era o dia de tudo terminar”. Se achava um galã. Sempre de pente no bolso, a toda hora o puxava e passava nos seus rebeldes cabelos. Era caspa para todo lado. Pior era quando ele batia o pente nos cantos dos móveis para o farelo branco cair. Sem contar que o gaiato andava com cotonetes e palitos de dentes na carteira de bolso. Quando o levei para Jaíba, ao terminar as refeições, ele abria a carteira, tirava pausadamente o seu usual palito, cutucava os seus cariados dentes e ao final dava a inevitável chupadinha: chichi, chichi... Em seguida, retirava um dos seus guardados cotonetes, introduzia no ouvido, o rodopiava pra lá e pra cá e retirava suas ceras amareladas. Higiene explícita e completa. Os barranqueiros, que não tinham nem escova de dente, assistiam aquele ritual como coisa de outro mundo e depois comentavam: - Viu que homem educado. Sá Rita, a cozinheira, querendo ensinar bons modos as suas filhas, alertava: - Aprendam, meninas, prestem atenção, ele anda com o palito na carteira pra futucá os dente e limpa as orêia com vareta de prástico com algodão na ponta. Nunca é tarde pra aprender! Para a obra andar e eu me livrar logo do Adelínio, arranjei dois sujeitos bons de serviço para serem seus serventes e platéia, Zé e Antõe. A dupla logo-logo pegou o ritmo do serviço, num faltava tijolo, nem massa para o pedreiro contador de potoca. - Já fiz minha inscrição no programa de Chacrinha. Uma pena que vocês não vão poder assistir. Só estou precisando de uma “partner” para o meu show, será que não tem nenhuma mocinha por aqui que eu possa levar aos estúdios da Globo? Antõe, sem entender, perguntou: - Cumé qui é, seu Adelino? - Adelí-ni-o, meu filho, Adelí-ni-o! Nome de artista: Adelínio Figueira. - Tá bom, mas o que o senhor quer mesmo? Perguntou, de novo, Antõe. O pedreiro, carente, há dias socado naquele fim de mundo, doido pra arranjar um rabo de saia, de olho na assanhada filha mais velha de Sá Rita, jogou verde: - Será que a Delcira num topa viajar comigo pra Montes Claros e de lá nós irmos apresentar um show no Rio de Janeiro? - Topa! Ela tá até engraçada com o senhor, mas o senhor num rompe, num toma as rédea. Adelínio endoidou. Acabou o serviço, tomou um banho, perfumou-se, penteou o rebelde por duas vezes e foi estalando pegar a janta na casa de Sá Rita. O sentido inteirinho na sua filha. Acabado o jantar, finalizadas suas explícitas higienes, puxou conversa com a serelepe Delcira e a chamou para caminhar e ver a clara e redonda lua. Papo vai, papo vem, promessas de viagens e presentes, tomou coragem e pediu a cabrocha pra namorar. De pronto, Delcira topou e eles já voltaram de mãos dadas. A semana rodou, naquele ritual - trabalho, jantar, higiene e namoro. No escuro, Adelínio já beijava, roçava e mastigava a Delcira toda. Ficava pra morrer de tesão, pedia, implorava e nada. A filha de Sá Rita podia estar sopitando, mas sempre dizia: - Não! O coitado do pedreiro passava a noite pensando na namorada. Amanhecia bambo e ia insone para o trabalho. Lá encontrava com a dupla Zé e Antõe, que já sabendo do seu sofrimento, perguntava: - Comeu? Adelínio, arrasado, sempre respondia: - Quase. Até que numa manhã, Antõe perdeu a paciência: - Que quase, homi, comeu ou não comeu? Adelínio, sofrido, duvidou: - É, acho que ela não dá não. - Não dá? Ontem mesmo, depois que você deixou ela em casa, o Zé chamou ela pra debaixo do pé de Joá e conferiu. Num foi, Zé? - Ó, se foi, já peguei a bichinha quente e moiada. Ela chegou a assubiá. Ao ouvir aquilo, Adelínio perdeu a paciência, jogou a colher de pedreiro pro lado, desceu do andaime e saiu à procura da sua namorada Delcira. Encontrou-a na beira do rio, batendo roupa. Sem discrição nenhuma, na frente das outras lavadeiras, Adelínio destramelou: - Delcira, eu estou te namorando sério esse tempo todo, prometendo-te levar pra Montes Claros e mais sei lá o quê, e você num dá pra mim, mas dá pra qualquer um? Delcira, estranhando aquele ataque todo, respondeu calmamente: - Mas, Bem, cê só pede. Eu digo “não” e cê num passa a rasteira, num me dirruba. |
Por Ucho Ribeiro - 8/9/2014 12:06:35 |
HÁU! Cansados de pescar no velho Chico, os compadres Enio Pacífico, Murilo Maciel e Pedrim da Antarctica programaram uma pescaria no Araguaia. (Histórica foto acima). Juntaram as tralhas e mais meia dúzia de amigos e rumaram para o miolo do Brasil. O sonho da maioria era pegar uma piraíba de pelo menos 50 quilos pra matar de inveja os pescadores que não foram na viagem. Despediram das patroas, das suas pragas e dos seus bicos, beijaram os bacuris e partiram para o meio da selva. O papo durante a viagem foi sobre a expectativa do que eles iriam encontrar naquela selvageria toda. - Me disseram que lá tem índio igualzinho aos que estavam aqui quando descobriram o Brasil. - Ó, se tem... Tem e é muito daqueles bitelões, botucudos, peladões. - Alfredo me falou que pra onde nós vamos tem bugre que nunca foi amansado, que nunca teve contato com branco. Bruto igual jaguatirica. Pedrinho, apimentado, sonhou alto: - Será que lá num tem também umas indiazinhas no pelo pra gente amansar? A viagem durou uns dois dias, até se abrigarem numa encantadora esquina de areia branca do Araguaia. Desceram os barcos, as tralhas, do caminhão, armaram as barracas e montaram jeitosamente a cozinha na sombra de uma rósea sapucaia centenária. Instalaram os jiraus pras panelas, estantes para os fartos mantimentos e forquilhas pra secar os sonhados peixes. Tudo maravilha. Turma alegre, escolhida a dedo, estoque renovado de causos e piadas, bóia de primeira, gole frouxo sem regração e o riso solto, destramelado. Pescaria melhor? Não se lembravam. Já tinham esquecido de Monsclaro, das patroas e do trabalho. A toda hora uma brincadeira: - Fulano, cê já trabalhou? Em seguida, emendava: - É, aqui tá melhor do que trabalhar. A rotina era acordar aos deus-dará, tomar um café, sem pressa, reforçado com ovo, farofa e banana frita. Entrar no barco, quando desse vontade, pescar o dia inteirim e só voltar para o acampamento à tarde para tomar mais umas e saborear o criativo rango do cozinheiro Druvalino. Pança cheia, paia certa até o começo da noite, quando uns iam jogar truco e outros mais fissurados voltavam para o rio à procura da piraíba desmedida. Lá pelo quinto dia, no final tarde, depois da bóia e do descanso, Enio e uns companheiros foram banhar e lavar as panelas no rio. Distraídos com tanta beleza e vastidão, demoraram a perceber as três canoas que despontaram na curva do rio. Murilo, treiteiro, desconfiou: - Será que é índio? Pedrinho: - Ih, são índios e dos grandes! A cambada atemorizada foi saindo de fininho do rio, sem correr para não parecer covardia e soverteram para dentro do mato e das barracas. Sobraram, dentro dágua, Enio, com as panelas na mão, e Pedrinho, agachado e escondido atrás do compadre. Nisso, duas das canoas estocaram e a maior, com um indião desmesurado, foi deslizando nàgua em direção à dupla tremelique. O bitelo do índio veio remando levemente em direção dos dois até que freiou sua canoa com um reverso movimento no seu remo. A canoa fez uma pequena meia lua e parou perpendicular a eles, estampando aquele imenso e carrancudo selvagem, como um totem. Enio, a ver-se de frente daquele bichão selvagem, bruto, todo emplumado, encarnado de vermelho urucum, com uma rodilha de madeira no beiço, começou a fazer borbulhas dentro dágua, no focinho de Pedrinho. Sem saber o que dizer, pois diálogo com índio só havia visto em filme de Gary Cooper, largou as panelas, levantou o braço, abriu a palma da mão direita para cima e arriscou: - Háu! O sisudo índio apenas respondeu o cumprimento: - Háu! Enio, atrapalhado, perdido como as suas panelas rio abaixo, perguntou com voz trêmula: - Chefe, onde homem branco pegar peixe? O empavido selvagem, pausou e respondeu: - No ri-o! Enio, cercado de borbulhas, tomou coragem e engatilhou outra pergunta com o vozear pausado: - Mim, ca-ra pá-li-da, que-rer pe-gar pe-i-xe gran-de. Co-mo pe-gar pe-i-xe gran-de? O índio, então, destramelou: - Depende do seu equipamento. Vocês estão com carretilha ou molinete? Aqui pra pegar piraíba grande só com carretilha DAM ou Abu Garcia. A vara tem que ser Fleming ou Sumax de 120 libras, a linha Raiglon 0,90 mm e o anzol Mustad 12/0. Mas tudo isto só serve pra quem tem braço pra fazer força e pelo visto tá faltando homem aqui. Tomou, distraído? PS. Acredite quem quiser - nesta pescaria eles pegaram uma Piraíba de mais de 200 kg. |
Por Ucho Ribeiro - 25/8/2014 10:17:40 |
MACHO MAN No verão de 94, Marão aporrinhou o seu compadre João Valle Maurício a largar Monsclaro e viajar pelo mundo. - Deixa de ser munheca, João! Vamos viajar! Adular as patroas! Você fica guardando dinheiro para genro gastar. E olha que os seus são mais ricos que você. - Mário, eu é que sei dos meus apertos. - Bobagem, vende o Fronteiro, cala os apertos e vamos queimar dinheiro. Jacy e as meninas programaram uma viagem pros States e Caribe. Leva a Milene e as filhas e faça uma média boa. Serão elas que vão tolerar suas rabugices e imundices na velhice. Dito e feito. Um mês depois, fomos todos para Miami e em seguida para um cruzeiro no Caribe. Naviozão colosso, dez andares de altura, mais de 2500 passageiros, muita festa e comilança. Na primeira manhã, fomos juntos para o deck da piscina apreciar aquela confraternização toda. Maurício, Milene, Marão, Jacy e as filhas aninharam-se em cadeiras ao redor da piscina, tomando margaritas e burritos. Eu, inquieto, fiquei a circular, observando aquele burburinho agitado ao som de rumba e salsa. Nisto um apresentador poliglota, metido a galã, de microfone em punho, que circulava e animava o ambiente, me segurou pelo braço e disse: - Here one more for the contest “Macho Man” (Eis aqui mais um para o concurso do “Macho Man”). Eu, sem entender direito, refuguei dizendo: - O quê? O homem, então, emendou: - Ah, brasileiro? De onde? Está gostando da viagem? Eu só dizia: - Não! Não! Não! Eu não quero participar do concurso. Aí, o fiduma, sem me largar e de posse de seu potente alto-falante, perguntava a todos os passageiros do navio na mais diferentes línguas: - He will participate in the contest Macho Man or not? Él participará en el concurso “Macho Man” o no? Ele vai participar do concurso “Macho Man” ou não? A cada pergunta do apresentador, centenas de pessoas espalhadas pela piscina e pelas sacadas dos andares respondiam: - Yes! Oui! Si! Sim! Não teve jeito. Esperneei, fiz de tudo, mas não consegui escapulir daquele mico. O navio chamava-se “Celebrity” e eles queriam escolher já no primeiro dia a celebridade: o Macho Man. Foram selecionados mais três concorrentes e fomos colocados cada um num dos quatro cantos da piscina, em cima de palcos em forma de cilindros parecidos com aqueles das chacretes. Eu, naquela semgraceza toda, torcia para acabar tudo rapidinho e o mico ser o menor possível. A primeira tarefa foi nos colocar para imitar o Mister Universo exibindo os músculos, como num concurso de fisiculturismo. Como não tenho e nem tinha músculos para mostrar, resolvi levar na gozação e estufei a minha barriga desenvergonhadamente. Uns riram, outros vaiaram. Um vexame. Daí, o agitador informou a segunda tarefa: - Macho que é macho grita que nem Tarzã. Vamos ver quem grita melhor e mais alto. Eu então pensei com os meus botões, bom, isso é fácil, quantas vezes não imitei o Johnny Weissmuller na minha infância? Os outros concorrentes berraram uns gritos mixurucas mais sem graças e eu me animei. Quando o apresentador colocou o microfone na minha frente eu enchi o peito de ar, abri a boca e soltei com toda força do mundo um grito horrível: pífio, agudo e estridente. Como imitar Tarzã com a boca totalmente aberta? Fiasco total com vaias unânime. Outro vexame. Fui para a terceira tarefa, desmoralizado e envergonhado. Eles colocaram uma linda mulher, balzaquiana, sentada sublimemente num pedestal, como uma deusa, e tínhamos que galanteá-la com gestos, palavras e cantos, a la Don Juan. Pensei, tô lascado. Lá vem mais uma vaia. Olhei para os lados e vi Tio Maurício. Abri os braços com as palmas das mãos abertas mostrando o meu desespero e, ele, montesclarense até a alma, invejando o meu lugar, deu a solução: - Cante “Amo-te Muito”! Cante “Amo te Muito”! Seria a perfeição, cantar o nosso hino de amor para um navio entulhado de gringos de todas as nacionalidades. Sem dúvida, sucesso garantido. Só tinha um probleminha: não sei cantar nem sabia a letra de “Amo-te Muito”. Aí, foi o vexame dos vexames. Meu galanteio restringiu a um cumprimento a uma suposta alteza, referenciando-a com um suave movimento de braço e um beija-mão ridículo. Tio João olhou para mim, balançando a cabeça com o desdém a um verme. Hoje, fico a pensar, que deveria tê-lo chamado para cantar em dupla. Ele soltaria orgulhosamente a voz e eu o dublaria mudamente. Tio Maurício ficaria todo orgulhoso e eu me safaria do vexame. Enfim, a quarta e última tarefa: cada um dos quatro concorrentes deveria chamar o maior número de mulheres para o seu canto da piscina. Não foi tão difícil assim, pois logo localizei minhas irmãs, minha mãe, dona Milene, Vitória e Liliane, e elas me ajudaram a arrebanhar mais gente. Mas, em seguida, o apresentador arrematou: - A pontuação será dada em dobro a quem convencer às mulheres a pularem na piscina e, em triplo, se caírem de roupa. Antes de ele terminar de dar as explicações, Mamãe deu um tibum dentro d’água, de roupa e tudo, para me dar a pontuação máxima. Mônica, Bertha e as Maurício vieram atrás imitando-a. Percebi num relance que naquele deck havia um imenso e repleto toalheiro com rodinhas e eu o puxei para perto da escada da piscina, onde à medida que cada mulher saía da agua eu beijava sua mão, agradecia e lhe dava uma toalha. O navio inteiro foi um aplauso só. Não teve apuração, todo mundo começou a gritar: - Macho Man! Macho Man! Macho Man! Ganhei brindes, perfumes e uma camiseta com os dizeres: “Sou uma Celebridade. Sou o Macho Man.” Nunca fui tão famoso. Por onde passava alguém me saudava: - Hi, Macho! - Olá Macho! Uns 3 dias depois, de manhãzinha, ainda no mandato de Macho Man, o navio aportou no México. Tio João me chamou reservadamente e fez um ultimato: - Ucho, nós vamos descer do navio e não vai ficar uma bodega desta Acapulco em que nós não vamos tomar um trago, uma tequila. Combinado? Eu, sem vacilar, respondi: - Combinado! Saímos os dois, alegres e joviais, com o México sob os nossos pés. Tio Maurício impecável. Calça vincada branca, blazer azul marinho, botões dourados, lenço vermelho no bolso da frente, sapatinho duas cores e um quepe de almirante estalando de novo. Pronto para o que desse e viesse. Eu de jeans e vestido com minha célebre camiseta de Macho Man. O dia estava reluzente, céu e mar azuis de tinir, temperatura agradável, brisa boa e nossa disposição para virar o universo ao avesso. Na saída do navio abracei Tio João e ele foi desembrulhando conselhos como caramelos: - Ucho, a vida é pra ser vivida mais açoitadamente. Não podemos debrear. Lembre-se, sempre um uísque a mais, um sono a menos, um calor, uma paixão. Temos que aquecer o coração. Devemos nos entregar aos sonhos. Hoje é um dia que vamos nos presentear. Nós merecemos. Dito e feito. Entramos em todos os bares que vimos pela frente. Pedíamos a tequila no balcão. Tio João puxou conversa com todo mundo, chicos e chicas, cantou, dançou, recitou, fumou charuto, flertou com raparigas, aprendeu o grito del mariachi, ensinou-me “Amo-te Muito”, tomou mezcais e mojitos, provou todos os antojos e petiscos e encheu os meus e os seus olhos de alegres lágrimas. Fomos completos e plenos durante o dia inteirinho, transbordamos contentamento e irmandade. No entardecer, já atrasados para o embarque, voltamos cantando “Rapariga do Bonfim”, “Amo-te Muito” e gritando repetidamente: - “Viva o Mé-rri-co”. No pau que a gente estava, nem notamos que os passageiros do navio estranharam aquela cumplicidade amiga e carinhosa do Macho Man com aquele elegante, singelo e rico senhor. Eram só cochichos e olhares maldosos... Nós dois, amparados um no outro, entrelaçados, rodopiamos pelo navio até alcançar as poltronas reclináveis da piscina. Pedimos mais duas saideiras tequilas Jose Cuervo e antes de sermos servidos nos apagamos nas espreguiçadeiras. Nirvanamente mortos. Só abri os olhos um par de horas depois, devido ao estalar dos flashes das máquinas fotográficas de uma porção de idiotas. Percebi, com pena, o preconceito deles ao ver o Macho Man do navio dormir de mãos dadas com o galante e idoso senhor. Nem dei bolas, fechei os olhos em desprezo, certo e alegre de ter passado um dia maravilhoso com o supimpa Tio João Valle Maurício. Não larguei sua mão e continuo enlaçado aos seus sábios conselhos. |
Por Ucho Ribeiro - 11/8/2014 11:17:20 |
Um Didal de Irineu Para uns, um ninguém. Para outros, um truão, um mentecapto. Isolado, disjunto, iletrado, isto ele é. Como mesmo diz: - não faço nem o “ó”. É mudo e mouco para este mundo apressado, máquino. Desconhece nossa vida elétrica, internética, televisiva. Ignora leis, política, papéis, carimbos, documentos. Não sabe sua idade, mas, se entrega: - Na grande cheia de setenta e nove eu era rapazim, fiquei apartado na Boleira, do outro lado do rio por luas, comendo só quiabo da lapa e samambaia cozida em enchu de galinha. É devoto e doutor em formigas, árvores, passarinhos e besouros. Segue abelhas, pacientemente, atrás de favos de mel. Protege os insetos e não mata lagarta porque ela concebe as borboletas. Afirma categoricamente que alguns paus viram insetos e uns insetos quando morrem viram paus. Dá mansas e longas aulas sobre quebranto e mau olhado. Silencia-se, com olhar esconso, para decifrar pios e grunhidos. Conhece o tempo, o vento, as nuvens. Vigia o revoar dos pássaros, o canto da coãn, o colorido do céu, o deslize do rio. Sabe quando chove e quando estia. - Vai parar de chover! - Por que, Irineu? Está invernado há dias. - Oh, olha aí as tanajura! Elas tá largano as asinha por tudo quanto é lado. Essas bichinha são danada de protegida, quando elas aparece, estia. O céu amanheceu anil. Alguns o acham um mané, um migué, um qualquer. Coitados, passarão a vida na ignorância, sem conhecer os mistérios e os encantos contidos na matuta cachola do sábio catrumano. Calado fica de tanto ouvir as asneiras e baboseiras dos citadinos. Só abre a boca afiançado e se for muito instigado. - No garimpo você reza para achar a pedra grande? - Moço, que é isso? Diamante não apreceia reza, não! Diamante gosta é de sangue, de confusão. Ouro é mais carola, é diferente, pegá com Deus é um djutóro bom pra bamburrar. Depois de um espirro, perguntei: - O que cura gripe, Irineu? - Quem gargareja urina de muié veia de madrugada num gripa nunca. - Mas não serve urina de mulher nova, não? - Não! - Mas por quê? - Muié nova num tem as “mardade”. Dias desses caminhávamos na beira do rio, quando fui alertado: - Olha o cipó! - Cipó, que cipó? - Na sua frente, moço, cuidado! - Viche Maria! É uma cobra! - Psiu! Não fale este nome! Ela num sabe que é peçonhenta, não. Se sabê, aí de nós! Eu o conheci quando comprei uma terrinha num canto formoso do vale jequitinhonho. Era mata pura, rio límpido e mil criaturinhas – bichos, insetos, plantas, peixes, pássaros, que me foram por ele nominados e apresentados um a um: - Monjolo é madeira ispicial pra chão e brejo, já pereio é o pau pros cabo das ferramenta; o chá de barbatimão é cicatrizante e bom pra lavá as partes das muié; o burro é o animal que foi pra escola, dá aula pra cavalo; quando a vaca cruza na lua cheia o bezerro nasce macho; arapuá é boa para ezipa; pra tirá cascão de pé de gente, bom é esfregá jenipapo verde; bicho de se preocupá é taturana, é uma lagarta que faz homi mijá perna abaixo e se não acudi mata criança pequena; banha de sucuri serve pra torcicolo... Num jorro contínuo de sabedorias, foi me explicando a natureza em detalhes. Em simpatias, então, é uma sumidade: - Pra não abortá é só colocá sobre o telhado uma caixinha com maribondo; pra fazer minino pequeno falá basta dá água pra ele em sineta de igreja; se a muié tá entulhada na hora do parto, a gente deve abrí as cancela, se não der certo, abri as janela e as porta, e se continuá encalhada, vai destelhando a casa pra dá passagem... Nesta toada ele me fez ouvir todo tipo de sapiências e mil maravilhas. Tenho tomado nota de tudo, inclusive aprendi a usar um mundo velho de remédios: guapo, poejo, tipi, batata de purga, papaconha, calumba, macela, mastruz, alcanfor do campo e outros tantos, e, aqui para nós, estou até ficando craque em rezas e benzeduras. Mas no começo de nossa convivência, como eu não tinha casa no Alecrim, deixava meus trecos – bicicleta, bóias, coletes, caiaque – com ele, que os guardava zelosamente em um dos seus cômodos. Quando chegava, era o primeiro lugar que eu passava, para pegar alguma das tralhas, filar uma boa prosa e encomendar um frango com ora-pro-nóbis, para comer no finalzinho do dia. Sua casa era de chão batido, o piso esfregado com o esmeraldino esterco bovino e as paredes clareadas com tabatinga. Seu porco Filomeno tinha trânsito livre, porém usava um espetado brinco de arame no nariz, para impedi-lo de futucar e esburacar o chão. As galinhas dormiam empoleiradas pelos cantos, a do choco se aninhava confortavelmente num velho forno de um inativo fogão a gás. As rapaduras apuradas com abelhas petrificadas ficavam dependuradas acima do fogão de lenha. Perguntado como ele aproveitava as rapaduras com tantas abelhas grudadas, respondeu de pronto: - No café, elas fica no coador. Num janeiro, época em que findam os mantimentos, me comovi com a carência remoída há meses por um malogro no garimpo, tristemente escancarada nos miúdos filhos e na mulher Maria, ossos à vista. Fui à cidade e comprei saco de arroz, feijão, açúcar, caixa de óleo, macarrão, café – feira farta, sacudida, para eles. Sumi em meus afazeres montesclarinos por uns vinte dias. Ao voltar e passar em sua casa, com o sentido em pegar o colete para descer a cheia do rio, perguntei: - Cadê minhas coisas? Ele disse: - Estão aí, no mesmo lugar. Ao entrar no cômodo onde entulhavam as minhas tralhas, deparei com todos os sacos e caixas de alimentos intocados. Sem entender, indaguei: - Vocês estão doidos? Porque não usaram a comida que lhes deixei? Assustado, respondeu: - Uê, mas era sua... - Que isso, Irineu? Eu comprei para vocês. Par de lágrimas deslizaram dos olhos da bambeante Maria, abraçada em amparo pelos meninos. Quando levei sua família à Diamantina, foi a primeira vez que os seus filhos saíram da roça. Ao chegarmos numa lanchonete para merendar, os três pequetitos, Ozéia, Onofrim e Paulim, mergulharam no piso de cimento queimado e nadaram de braços abertos, esfregando seus corpos e faces naquela lisa superfície. Era a inocência, cheia de risos e de encantamento. Na volta, no carro, perguntei: - Irineu, você já viu televisão? Ele deu um tempo e depois respondeu, seguro: - Já! - Você viu onde? - Vi no Alecrim. Tava desligada, mas eu vi! No final da viagem, ao despedir, disse-me: - Ucho, a vida me ensinô que tem dois tipo de gente: os que agradece e os amuado. Eu aprendi a agradecê. Eu também. Bendito. |
Por Ucho Ribeiro - 8/7/2014 11:55:18 |
SESSENTA E NOVE - Mário, acorde! Tem gente mexendo na porta! - Maria, a esta hora da manhã, deve ser ladrão. É melhor ficarmos quietos. - Mário, levante e vai lá ver. - Há gente pelos jardins e dois carros parados na porta. - Será, Mário? - É, vieram me pegar. Estão à paisana e não conheço ninguém. Eram quatro horas da manhã quando tocaram insistentemente a campainha da nossa casa na rua Luiz Pires, 80. Meu Pai foi até a sala, abriu a porta e disse: - Pois não? Um deles perguntou: - É aqui que mora dr. Mário Ribeiro? Marão, querendo se safar, respondeu: - Não, aqui mora Mário da Silveira, sinto muito! E tentou fechar a porta, quando um paramilitar colocou o pé à frente, impedindo. Entraram, seguiram-no até o quarto para se vestir e determinaram que ele os acompanhasse imediatamente. Minha mãe assustou-se com as duas armas apontadas para ela, exigiu que eles se retirassem para que pudesse trocar de roupa. Papai, desorientado, procurou atrapalhadamente tranquilizá-la: - Não se preocupe, Maria, vou atender um cliente e volto já! Ao se despedir, com um beijo, Marão cochichou: - Chame logo o Georgino. Deitado na cama, assisti, pela porta aberta, àquele trança-trança de homens desconhecidos e armados dentro da minha casa. Rodopiaram por todos os cantos, foram até a biblioteca, pegaram os livros de capas vermelhas e mais o reles livro “Eu e a China”. Toda a movimentação para levar meu Pai não durou cinco minutos. Mamãe ligou para o Cel. Georgino, que chegou em seguida. Contou mal-mal o acontecido e ele saiu com uma maleta com algumas peças de roupas para serem entregues a Papai, caso ainda o encontrasse pela cidade. Soube, depois, que o Georgino se encontrou com Marão no posto de gasolina ao lado do Batalhão. Ele estava numa Kombi com mais três detidos, salvo engano, o seu compadre Laert Ladeia David, dono da Gráfica Orion, Porfírio Comunista e o dr. Clóvis, médico do São Lucas. O Coronel apresentou suas patentes, entregou a maleta e pediu toda atenção para com o meu Pai: - Independente de sua posição política, de ter sido cassado e de ter perdido seus direitos políticos, posso lhes assegurar que Mário é um homem de bem. No clarear do dia, tio Otávio chegou nervoso lá em casa com vovó Fininha. Andava ao redor da mesa, fumava um cigarro atrás do outro e aconselhava alto com sua fala embaralhada: - Maria Jacy, os meninos não devem ir ao colégio. - Vamos ligar para Genival. - Você já falou com Márcio de Castro e Silva? Quando os meus irmãos e irmãs acordaram para ir à escola, Mamãe nos reuniu e explicou: - Hoje de madrugada, uns homens estiveram aqui e prenderam o seu Pai. Ele não fez nada de errado! Trata-se de perseguição política, porque ele pensa diferente do governo. Nós vivemos numa ditadura e quem pensa diferente é perseguido. - Tio Otávio acha que vocês não devem ir ao colégio para não ficarem constrangidos. Mas vocês irão à escola, de cabeça erguida e peito estufado. Com muito orgulho do seu Pai. - Pat, hoje à noite você tem apresentação de Ballet no Imaculada e nós todos vamos estar presentes. Você vai ser a bailarina mais bela e a que vai dançar mais bonito, viu? Fui para o Colégio São José todo empinado, calado e introspectivo, à espera de uma sabatina por parte dos garotos. Entrei e fui direto para a minha carteira, não fiquei pelos corredores brincando com os colegas. Fingi que terminava o dever de casa. Aula iniciada, percebi que ninguém sabia de nada. Eu, preparado para o que desse e viesse, e meus colegas, agindo normalmente, nem me olharam diferente. Meu Pai havia sido preso às 4 horas da manhã, a notícia ainda não tinha se espalhado pela cidade. No recreio, fiquei na minha, quieto, reservado, à espera de alguma gozação ou provocação. Mas, nada. Quase no final do recreio, meu amigo Wallen chegou perto de mim e perguntou: - Seu pai foi preso? Eu, de pronto, já preparado por minha mãe, respondi, na pinta, com o queixo levantado: - Foi, por quê? - Não, nada não. Marão perdeu os seus direitos políticos em julho de 1969. Estávamos no sítio Tira-Teima, quando ele ouviu pelo rádio o seu nome na lista dos cassados pelo Conselho de Segurança Nacional. Marquim, inocente, saiu alegremente gritando: - Ô, os minino, falaram o nome de Papai no rádio! Marão permaneceu calado, cabisbaixo, depois de um tempo lamentou pela Famed: - Perdi minha Escola! Um par de meses depois era a Parada de 7 de Setembro. As escolas públicas e privadas aproveitavam a data cívica como vitrine para se promoverem. A meninada toda se alvoroçava para fazer bonito no desfile. Uns queriam participar da fanfarra, tocar tarol, caixa clara, surdo, até mesmo corneta. Outros decoravam suas bicicletas com pequenas flâmulas e entrelaçavam os raios com papeis crepom coloridos. Havia os pelotões dos desportistas, dos troféus, dos estandartes e dos envergonhados e raivosos baixinhos do colégio - a indesejada e vaiada “rabada”, que marchava ao som das batidas dos próprios pés. Os ensaios eram quase diários. Por todos os cantos da cidade, dava para ouvir as bandas se aprimorando para não sair do tom ao passar pelo palanque das autoridades militares e municipais. No Colégio São José havia um consultor militar, creio que do Tiro de Guerra, por conta de assessorar o nosso desfile. Ensinava com o maior rigor como os alunos deveriam alinhar, marchar, curvar, arrancar e não dispersar ou sair da ordem estabelecida. Os ensaios duravam semanas, a expectativa era imensa. A cidade inteira assistia as comemorações do Sete de Setembro. Na véspera da parada, no ultimo horário de aula, esse militar, juntamente com um subalterno do colégio, retirou meus irmãos, Fred e Marquim, e eu das salas de aula, levou-nos até a um canto e sentenciou: - Amanhã, vocês três podem ficar em casa, não é para se apresentarem para o desfile. Estão dispensados desde já. Nem perguntamos o porquê. Foi duro ouvir aquilo, mas o pior foi que, no dia seguinte, não pudemos assistir a alegre e esperada parada, pois seríamos os únicos meninos que não estariam na marcha e não teríamos como explicar aquela antipatriótica ausência. Passamos a manhã recolhidos, com os sentidos voltados aos sons das fanfarras, dos estampidos e no barulho unissonante das pisadas firmes dos meninos. A nossa casa ficava a meio quarteirão do rumoroso desfile e estávamos enclausurados e excluídos da festa. De volta à noite da prisão, Marão nos disse que a viagem foi tragicômica. Ele, no maior cagaço, fingia que tudo não passava de um engano. Volta e meia, blefava para um dos companheiros presos que choramingava: - Calma, meu velho, a esta hora Magalhães Pinto já foi avisado. Vamos chegar no DOPS com a ordem expressa de soltura. Vocês vão ver, à tarde já estaremos soltos! Que nada! Foi cadeia mesmo. Cana dura. Ficaram lá uns dias, não sei quantos. Meu Pai nos contou que não foi torturado fisicamente, mas que tinha uns fidumaéguas que passavam o dia fazendo terror com perguntas aos outros carcereiros: - O cara lá aguentou os choques ou se borrou todo? - O do pau de arara abriu o bico, alcaguetou os outros? O sempre solidário Genival Tourinho e tio Márcio mobilizaram uns amigos, desafiaram uns inimigos, encurralaram uns bunda-moles, cutucaram uns omissos e, depois de mexerem muitos pauzinhos, conseguiram tirar o velho da cana. Segundo eles, após se comprometerem e se responsabilizarem pela custódia e soltura de Marão, aconteceu o mais inusitado. Na descida da escada do DOPS, já na rua, com Mário Ribeiro livre igual a um passarinho, meu Pai parou e disse: - Peraí um minuto, eu tenho que resolver um probleminha aqui. Voltou-se e entrou de novo no prédio do DOPS. Genival e Tio Márcio esperaram um pouco para entender aquela doideira e não vendo sentido foram atrás de Marão. Percorreram as salas até entrarem no gabinete do superintendente. Depararam com Papai pedindo-lhe uma autorização para comprar dinamite para a sua pedreira em Montes Claros. O superintendente, possesso, sem entender aquele pedido maluco, voltou-se para Genival e perguntou: - Este cara é louco? Ele foi preso por ser cassado, subversivo e comunista. Sei lá se não é um terrorista, um guerrilheiro e quer di-na-mi-te! Eu vou é socar ele de novo nas grades. Genival, então, atalhou: - Que é isto, Doutor? Ele está muito perturbado, insano, e quando fica assim, fica irreverente, vira um zombador. Desculpe! Desculpe! Ele está precisando é de repouso, de descanso. Ao saírem de novo do prédio, tio Márcio deu-lhe uma bronca: - Cê tá doido, Mário? Você está querendo comprar dinamite no DOPS? - Marcito, Marcito, minha pedreira está parada por falta de dinamite e são estes fidumas que dão a autorização pra a gente comprar os explosivos. Já que estávamos aqui, não queria perder a viagem. Marão era desse jeito: prático e de um coração do tamanho do mundo - perdoava todo mundo. Vários anos depois, num final de tarde, tomávamos umas no Bar e Restaurante Quintal, em uma mesa com muitos amigos e notei que Marão encontrava-se estranhamente calado. Ele estava a observar um cara sentado sozinho numa mesa apartada. Passados uns minutos, ele levantou-se foi até o sujeito e o convidou insistentemente para sentar à nossa mesa, apresentando-o festivamente: - Este é fulano. Ele foi o meu algoz lá do DOPS, quando eu fiquei preso em sessenta e nove. |
Por Ucho Ribeiro - 30/6/2014 10:50:14 |
SESSENTA E QUATRO Éramos uma ninhada, escadinha de sete crianças de 4 a 11 anos. Mamãe tinha 34 anos e Papai cinco a mais. Ela vivia por conta da gente e ele por conta de tudo quanto havia no planeta: política, reformas, eleições, medicina, construções, futebol, cinemas, fazenda, frigorífico, pedreira, curtume, imprensa, etecetera e tal. O Brasil era uma efervescência e Marão era um alka-seltzer naquele burburinho todo. Vivia viajando a BH, Rio, Brasília e pelo circuito de seus cinemas no norte de minas. Só o víamos alguns dias na semana, entrando ou saindo, e mesmo assim acompanhado de um monte de amigos, companheiros, correligionários e curiosos. Chegava com aquela turba toda, cobrando almoços, lanches, jantares, pra já: - Maria, frita mais bifes, põe água no feijão, o pessoal tá com fome! Partimos amanhã cedo para o Distrito Federal. Darcy vai nos receber para aprovar umas escolas profissionais para nossa região. Meu pai não dormia nem bebia naquela época, porque não dava tempo, o agito e a pressa eram demais para mudar, passar o país a limpo. Dava pitaco em tudo, falava pelos cotovelos, tinha idéias e soluções para todos os problemas do Brasil. Defendia apaixonadamente a educação de qualidade, uma saúde plural e básica e propagava que a terra improdutiva tinha que frutificar. Após as refeições, ao agradecer sempre dizia: - Senhor, dai pão a quem tem fome e fome de justiça a quem tem pão. Nos punha no colo e dizia aos amigos: - Este menino come três a cinco refeições ao dia, tem toda a assistência de saúde, tem uma cama, um teto, uma mãe formada em pedagogia e uma escola boa. Ou seja, tem todo apoio familiar e público para se tornar um cidadão decente e prestante. Chegou o momento de lutarmos para dar mais às outras crianças que estão desamparadas, famintas e sem estudo. É esta a revolução que temos que fazer. Por isso, a premência das reformas de base. Porém, a revolução que veio foi outra: o golpe de 64. Primeiro de abril! O Mario Ribeiro barulhento, inquieto, teve de se calar, recolher, entocar, sumir. Graças ao providencial aviso de tia Lourdes Pimenta: - Jacy, o compadre tem de sair da cidade agora, imediatamente... Ele se escondeu por uns bons tempos na fazenda Rio do Peixe de tio João Valle Maurício, fugido dos “bate-paus”. Nossa casa esvaziou. Ficamos meses sozinhos, com as portas e janelas cerradas. Não podíamos brincar na rua, mesmo sendo ermo o bairro Todos os Santos naquela época. Fomos limitados ao nosso umbigo, ao nosso quintal. Pat, Fred, Marquim e eu íamos juntinhos para a escola e voltávamos cercados pela garotada nos xingando: “comunistas”, “comunistas”. Crueldade de crianças. Reflexo do que escutavam dos pais em casa. Não me lembro de temer aquele xingatório todo, estava blindado pelos esclarecimentos de mamãe. Tinha apenas receio dos meninos, que eram tantos e tão irados, baterem em Pat e nos meus irmãos. Minha mãe conta que um dia a minha professora do grupo D. João Pimenta me levou até a minha casa e lhe contou com lágrimas nos olhos: - Estou lhe trazendo Ucho porque os meninos o estavam ameaçando e xingando de comunista. Ele disse que não era e nem sabia o que era comunista. Um deles o acusou: Se seu pai é comunista, você também é! Seu filho, então, respondeu: - Olha, se meu pai é comunista deve ser coisa boa. Eu também sou! À noite, depois de rezarmos e pedirmos a Deus proteção ao papai, ficávamos todos embolados no quarto de minha mãe. Além de Mauricinho, Toninho Rebello ia diariamente lá em casa: - Comadre, está tudo bem? Vocês estão precisando de alguma coisa? Os meninos estão bem? Recebeu a feira que eu mandei? Precisa de dinheiro? Qualquer coisa mande me avisar! Fique tranqüila, eles não vão encontrar o Mário. Marcolina manda lembranças e está rezando por vocês. A feira de Toninho foi tão farta, que comemos goiabada e gelatina durante anos. Tinha tanta comida na despensa que eu pensei: - meu Pai não volta nunca mais. Mozart Caldeira era o outro grande amigo que aparecia para ajudar. Mas a minha impressão era de que ele tinha tanto receio de pegarem meu pai, que passava um pouquinho da sua tensão e medo pra gente. Enquanto uns poucos foram solidários, outros tantos estavam no encalço de Mário Ribeiro. Há pouco tempo soube que alguns foram até a fazenda de Tio Maurício devido a suspeita dele estar lá escondido. Ao chegarem nos arredores, Lafayete, ex-supervisor da Escola Normal, se ofereceu para ir sozinho na frente, com o seguinte argumento: - Pessoal, como o Mário e seus comparsas devem estar armados e sendo eu o único solteiro, sem filhos, creio que devo ir até lá na sede para fazer uma prévia checagem. Foi, viu Marão e Maurício na maior prosa, voltou e disse aos seus compartes: - Não foi desta vez, lá não tem uma viva alma, tudo apagado. Podemos voltar. Minha mãe nunca pode agradecê-lo, quando soube deste ato de estima o Lafayete já havia falecido. Lembro que mamãe, antes do golpe, alfabetizava adultos pelo método Paulo Freire na nossa casa, à noite. No meio daqueles alunos tão humildes havia uma senhora, mãe de uma dentista. Ela era nossa vizinha, mais velha, boa pessoa, e estava toda contente porque já começava a juntar as letrinhas. O golpe a fez sumir lá de casa. Nunca mais apareceu e passou a não nos cumprimentar. Para muitos passamos a ser leprosos sociais. Por sorte éramos tantos, sete crianças e mais mamãe, a cozinheira Joana e suas duas filhas, Detinha e Dui, que nos bastávamos no quintalzão imenso. Não esqueço da alegria de tio Enio. Esteve presente o tempo todo. Dormia no sofá da sala. Distraia-nos com suas brincadeiras e dava segurança à sua irmã Cici. Creio que foi este casulo familiar que nos manteve e nos mantém tão unidos até hoje. Nossa casa ficava afastada da cidade, no bairro Todos os Santos, em frente onde hoje é o Skema Kente. O campo do Cassimiro não tinha nem muro direito. Éramos nós, o orfanato e mais cinco ou seis vizinhos espalhados numa manga sem ruas. A ponte para o bairro que cruzava o rio Vieiras é aquela passarela na Sanitária que liga o Sesc ao Posto Via Dupla. O resto era uma estradinha estreita que passava pela nossa porta e ia até o Pequi de Joanir. Ao entardecer, eu ia para o quarto de Joana escutar no radio a novela “Gerônimo, Herói do Sertão, e o Moleque Saci” e ficava atemorizado. Imaginava e sentia o aperto que os meus heróis passavam ao serem perseguidos e encurralados, que devia ser o mesmo que o meu pai sentia. Torcia calado para que o Gerônimo escapasse e encontrasse Marão. Iria protegê-lo. Na santa e obrigatória missa do domingo, íamos empoleirados no carro, chegávamos juntinhos e voltávamos todos grudadinhos para casa. Se não fossemos à missa, a acusação seria implacável: são mesmo ateus e comunistas de carteirinha. Depois do Ofertório, na hora da Consagração, quando o padre levantava a hóstia e depois o cálice, mamãe pedia para a gente dizer com toda a fé do mundo: - Meu Senhor e Meu Deus, protegei Papai! Passado um tempo, que não sei dizer quanto, em uma noite ele apareceu. Foi a maior alegria silenciosa. Não podíamos falar alto, fazer barulho ou arruaças, para não alardear vizinhos e bisbilhoteiros. As únicas luzes acesas foram as do fundo da casa, da cozinha. Matamos a saudade e a curiosidade, mas fomos dormir cedo, pois antes de clarear o dia um carro buscou meu pai com peruca e barba e o levou para Bocaiúva. Lá, ele tomou o trem e desceu em Sete Lagoas, de onde seguiu noutro carro para Belo Horizonte. As estações e rodoviárias eram vigiadas, um risco para os “perigosos comunistas”. Na Capital, ficou escondido num pequeno apartamento, sob a guarda e proteção de tia Nini, irmã de mamãe, e de tio Ruy, seu marido. Fico a imaginar como ele, que vivia ligado a 220 volts, cercado de gente por todos os lados e sem parar quieto um minuto, conseguiu suportar o isolamento, sem família, sem amigos, sem notícias, sem atender o telefone. Estava só. Enjaulado. Minha tia conta que, quando tocava a campainha, ele escondia dentro de um guarda-roupa. Sei apenas que depois de muito tempo, toda a família foi de Kombi, no maior mistério, recebê-lo em Bocaiúva. Veio sem a peruca e a barba. A viagem foi a maior algazarra e alegria, parecia o retorno de um herói combatente de guerra. De volta a Montes Claros, Papai se recolheu, restringiu suas atividades aos seus negócios de cinemas e ao consultório. Bico calado. O mar não estava para peixe. Para nós, os filhos, foi bom. Passamos a ter um pai mais presente em casa. E que Pai! |
Por Ucho Ribeiro - 24/6/2014 12:00:46 |
O FIDUMA Carlos Alberto era funcionário da Caemc, antiga Companhia de Águas e Esgotos de Montes Claros. Exemplar servidor. Assíduo e rigoroso nos seus afazeres. Era o responsável pela carteira das contas dos consumidores. Implacável na cobrança e impiedoso com os inadimplentes. Sua vida resumia-se a seu ofício e às suas outras duas paixões: o futebol e a noiva Vera Lúcia. Após cumprir o expediente diário, passava em casa, banhava-se, jantava e seguia para a casa da Verinha. Namorava na sala sob a vigília do sogro e da sogra, assistindo o Direito de Nascer ou Telecatch Montilla. O término destas programações era o sinal para se retirar. Vera Lúcia o levava até o portão e Beto, quando tinha coragem e sorte no descuido dos velhos, pegava na sua mão. Já estava muito bom. Uma vez, roubou até um minúsculo beijo. Pretexto para suas fantasias noturnas. O pai de Vera era duro, um renitente, sempre de olho nas possíveis investidas de Carlos Alberto. Quando afastava o pouco que fosse dos noivos sinalizava com os olhos para a esposa marcar o casalzinho. Vera Lúcia, primeiro namoro, era vigiada ao extremo. Os pais a levavam e a buscavam ao grupo escolar onde lecionava e às festas. Não a deixavam sozinha de jeito nenhum. O controle era tal que até o pacote de modess era entregue pelo pai, um dia antes da sua regra mensal. Beto era apaixonado por futebol, mas era um pereba, um verdadeiro perna de pau. Ruim de bola de doer. O jeito que encontrou para poder participar do esporte foi apitar os jogos. Ser o juiz. Inicialmente, era ignorado, quase um carta branca nas peladas. Como era dedicado, tinha apito e uniforme, começou a apitar as pelejas na várzea e logo depois nos campeonatos amadores da cidade. Fez curso por correspondência pela Federação Mineira de Futebol e passou a ser requisitado com mais freqüência para os torneios municipais. Após cada jogo, Carlos Alberto narrava epicamente as partidas para Vera Lúcia. Se vangloriava no apito, principalmente nos lances que marcava faltas e pênaltis. Nos relatos das expulsões chegava a levantar-se do sofá com a mão estendida, como se estivesse com o cartão vermelho. A partida e o seu resultado não tinham tanta importância, o significante e majestoso era o seu desempenho, o seu arbítrio intransigente. Doesse a quem doesse. As torcidas podiam ficar mordidas, putas da vida, mas o seu apito era impiedoso, imperativo e irredutível. Ignorava e nunca relatava à noiva os impropérios que declinavam a ele e a sua digníssima progenitora. O sonho de Beto era levar Verinha ao Estádio José Maria Melo, para que ela pudesse assistir ao seu esfuziante desempenho e a sua autoridade no apito. Pois não é que na final do campeonato amador, Magalhães X São Pedro, Carlos Alberto conseguiu a permissão para que Vera Lúcia pudesse ir com a sua prima ao jogo. O pai as levaria e buscaria de carro na porta do estádio, mas durante a partida as duas estariam nas arquibancadas sem velas e acompanhantes. Sentaram nos primeiros degraus, em frente de uma das rumorosas torcidas. Ao ver o seu benzinho despontar em campo, ficou escandalizada como ele foi saudado pelas duas torcidas: - Ladrão! - Veado! - Filho de puta com soldado! Quando Carlos Alberto, engomadinho, de preto, todo bonitinho, chegou até o meio do campo para iniciar a partida, juntamente com os seus auxiliares, recebeu nova saraivada de palavrões: - Veio roubar de novo, né, seu rato caiano! - É hoje que você vai apanhar, fiduma égua! E logo que o jogo iniciou, Verinha ficou ainda mais rubra e horrorizada de como a sua sogra era xingada e mais ainda de como rotulavam as opções sexuais do Betinho. Não teve coragem de olhar para trás, estava totalmente escandalizada com tanta selvageria. Ficou estagnada, muda, estatelada, ouvindo todos aqueles absurdos, sem entender porque os torcedores tinham tanto ódio do Carlos Alberto. A qualquer som do apito, lá vinha: - Ô, filé da puta, ladrão! - Ô, filho de ratazana com mão lisa! - Ô, bicha escrota! Poucos minutos antes do final do primeiro tempo, numa jogada violentíssima dentro da área, um torcedor dos mais arrebatados gritou quase no pé do ouvido de Vera Lúcia: - Cê não vai dar o pênalti não, seu corno? Chifrudo! Descontrolada, desmedida, fora de si, Vera Lúcia deu um salto, se pôs de pé, voltou-se furiosa para a torcida e destramelou: - Ah, não! Isto não! Verinha, a bem criada, a recatada, jamais voltou a um estádio de futebol e nunca mais quis saber do fiduma Carlos Alberto. |
Por Ucho Ribeiro - 15/6/2014 08:47:24 |
ZÉ MUTAMBA E GUARANÁ De volta das Cabeceiras, Zé Mutamba veio bem acompanhado. Arrumara um companheiro, unha e carne, bom de prosa, de gole, chegado num joguinho e mais ainda num rabo de saia. Era o notório Guaraná. Ele trelou no Zé e convenceu o coitado a voltar para Monsclaro, com o argumento de que há dias não tiravam o atraso: “Zé, Zé, quando a gente começa a olhar pro tiché das éguas, tá na hora de retornar pra cidade”. Desembarcaram na Socomil e ali mesmo entraram no rendez-vous da Geralda. Grudadinho na Freiopeças de Shazan. Esvaziaram suas primeiras ansiedades e foram se empoleirar mais à frente, no outro meretrício lecotreco da Carminha, na Praça de Esportes. Lá sempre havia três ou quatro meninas, à disposição. Nenhuma era avião, nem mesmo teco-teco, mas todas caprichavam no trivial simples ou no serviço completo, barba e bigode, com o maior esmero. Se se catasse a miúdo os atrativos, as formosuras de cada uma, um olhar, um seio, uma perna, um naco de bunda, dava mal-mal uma rapariga meia-boca. O jeito era encher a cara e degustar uma com o sentido no encanto da outra. Amansadas as necessidades, saíram para tomar uma gelada e arrumar um carteado barato num lugar mais arejado. No caminhar, contornaram a Praça de Esportes, passaram pelo mercado antigo, subiram a Cel Joaquim Costa apreciando as lojas, reparando as desorganizadas bancas de vendas, até depararem um boteco onde havia banca de jogo do bicho. - Zé, vamos fazer um fezinha? provocou Guaraná. - Sei não, num sou chegado nesses viciozinhos, não. - Que isso, Zé Mutamba, fala um bicho qualquer aí. - Bem, pensando ní muié, só mesmo jogando em brabuleta: 16. - Pois tá aí, muié pra mim é cobra: 33. Cinco contos no milhar 1633. E pra arregaçar, vai mais 20 contos no duque das dezenas 16 e 33 do primeiro ao quinto. - Cê tá doido, Guaraná, cê vai jogar fora 25 contos nessa besteira? É dinheiro pra a gente ficar bêbado o dia intirim! - Besteira, qual o quê? Nós vamos é ficar rico, Mutamba. O duque paga 200 vezes e o milhar muito mais. Hoje é quarta-feira, não tem mutreta. É pela Federal. Quando sair o resultado, nós só vamos beber é scotch e luxar na casa de Tiana. Lá, tudo de comer é de primeira! Gargalhou... - Antes, nós vamos pro Seu Edson quebrar mais uma e daqui a pouco a gente volta para pegar a grana, tá? No bar do pai do Baixim, praça dr. Carlos, tomaram todas e mais algumas. Saíram mamados, esbarrando um no outro, mas Guaraná, com a pule fechada na mão, não esqueceu o jogo do bicho. Pois não é que deu o duque das dezenas 16 e 33. Muié pru riba de muié: 1º 7133 09 Cobra 2º 6069 18 Porco 3º 1716 04 Borboleta 4º 4758 15 Jacaré 5º 7212 03 Burro Guaraná ganhou. A dupla empapuçou. Os dois receberam a bolada. Uma em cima da outra. Nota preta. De lá mesmo, o furdunço começou. Enterraram o dente no gole. Até o tal do scotch entrou na parada. No miolo de Moccity, reviraram tudo quanto é boteco que existia. Arranjaram até uns saca-trapos pra irem atrás deles soltando foguetes e batendo palmas. Naquela turbulência toda, um foi mijar num reservado, enquanto o outro seguiu instintivamente o rabo de uma boazuda. Acabaram em bares trocados. Se desencontraram. Daí começou a confusa busca, um procura daqui, outro procura dali, e nada de se encontrarem. Um descia a São Francisco, o outro subia a Grão Mogol. Um rodava a praça dr Carlos, o outro se perdia na praça da Matriz. Guaraná emburacava pelo Beco da Vaca, Zé supitava na travessa Silvio Jardim. Foi um aranzel de desencontros. Até que, lá pelas tantas, Zé Mutamba, já desiludido, descendo a cel Altino de Freitas, deparou com dois guardinhas arrastando Guaraná pelo braço. Zé, então, perguntou: - Que é isto, gente, porque cês prenderam o hômi? - Cê conhece? Ele é seu amigo? - É! É gente boa! - Boa o caralho! Este vagabundo está preso por desacato à autoridade. - Mas por que, seu guarda, o que ele fez? - Esse fiduma, além de estar completamente bêbado, estava fazendo arruaça no rendez-vous de dona Geralda. Quando nós pedimos para ele maneirar, ele disse, aos berros: - Não vou maneirar porra nenhuma, pois eu estou é rico e tenho dinheiro para comprar tudo e todo mundo. Disse que comprava o puteiro, o delegado, a catedral, e que comprava até nós dois! - Ora, seu guarda, deixa de besteira. Não ligue não, Guaraná é desse jeito mesmo. Toda vez que bebe, quer comprar tudo que é porcaria que ele encontra pela frente. Não deu outra: Foram os dois dormir no xilindró. |
Por Ucho Ribeiro - 9/6/2014 11:28:25 |
BOA VIAGEM! Quem me contou foi Artuzim, lá de Pedra Preta. Ele estava no ônibus, lá no ponto da Socomil, à espera de voltar pra casa, quando pintou Zé Mutamba, truviscado. O motorista rabugento, impaciente, olhou aquela figura com desprezo. Zé Mutamba deu uma meia volta, uma bambeada, segurou na porta do ônibus e destramelou: - Seu motorista, esse ônibus passa nas Cabeceiras? - Passa, grasnou o motorista. – Sobe! - Ele passa mesmo? Perguntou de novo Zé Mutamba, com um dos pés no degrau. - Porra, eu já disse que passa. Sobe logo que eu estou atrasado. - Zé Mutamba soluçou, hic, aprumou-se, subiu o outro degrau, hic, deu uma olhada comprida nos passageiros, firmou no banco, hic, e quando todos pensaram que ele iria sentar, desceu novamente e voltou para a posição antecedente. - Seu motorista, eu estou avisando, só entro no ônibus se ele passar pelas Cabeceiras. - Não encha o saco, caralho. Ou você entra ou sai, porque eu não tô aqui pra aguentar cachaçada de bêbado, não. - Mas eu só quero saber se ele passa nas Cabeceiras... Mutamba botou novamente o pé direito no degrau, tentou o segundo degrau, trocou de pé, deu um passo pra frente, outro pra trás e estacou. O motorista, puto, largou o volante e partiu pra cima de Zé: - Escute aqui, seu bosta, cê vai encher o saco de outro, ou você embarca ou desce. - Calma, moço, eu só queria saber se ele passava nas Cabeceiras... - Passa, porra! Eu não disse que passa. - Mas ele vai pra onde? - Vai pra “Puta que Pariu”, gritou o possesso motorista. Com o berro Zé Mutamba amofinou, entrou no ônibus lotado, esbarrando em um e em outro passageiro, firmando-se nas cabeças das pessoas e foi sentar lá no fundo. Uns arreliaram dele, mas Zé nem deu bola. Acendeu um paiozo, deu uma cusparada no chão, umas baforadas e começou a cantar “A mulher do compadre Mané Peedro...”, que poucos entenderam a letra. O ônibus não chegou na Maiada e ele já estava roncando com o paiozo apagado no beiço. Daí até as Cabeceiras foi um pulo, um sossego. Zé Mutamba só acordou porque os passageiros o cutucaram. Quando o ônibus parou no encostamento para ele descer, Zé Mutamba se pôs de pé, rompeu até o motorista, virou-se para trás e, educadamente, disparou: - Passageiros com destino para a “Puta Que Pariu”: Boa Viagem! Saltou. |
Por Ucho Ribeiro - 2/6/2014 11:09:27 |
CAGAÇO Zé Maria era um frouxo, um cagão. Morria de medo de defunto, lobisomem, alma penada e tudo quanto é. Não dormia sozinho e fugia de escuridão. Tinha até o apelido de Borreira. Esse medo derivava da infância, desde quando os mais velhos na roça, à beira do fogo, em prosa, teciam medonhos e arrepiantes casos de fantasmas e assombração. O coitado, ao assuntar, trêmulo, tinha que se segurar pra não mijar nas calças. Os ditos amigos viviam dando sustos no infeliz. Ora o acordavam com lençóis brancos e máscaras apavorantes, ora assobiavam ao redor da sua casa, unhando a porta. Era medroso, mas prestativo, sem preguiça. Levava recados e embrulhos pra tudo quanto é canto. Na cidade, beirava os pontos dos fazendeiros, só no desejo de servir e cumprir ordens. Como era motorista cuidadoso, volta e meia era lembrado para levar uma vacina, um recado. Foi daí que aconteceu o caso. À-toa, bestando na praça Dr. Carlos, na Leiteria Celeste, Zé Maria foi convocado às pressas, no começo da noite, pra levar uns remédios pra um enfermo lá pras bandas das Contendas. Missão urgente e de responsabilidade graúda. Viajar à noite não era do seu agrado. Perguntou se não podia sair cedinho, de madrugadinha. Nada. Tinha que partir de imediato, logo após a manipulação dos medicamentos. Como não tinha como negar o pedido, saiu à caça de um companheiro de viagem. Foi ao posto de gasolina, não achou uma viva alma, passou nos botecos conhecidos e não arrumou ninguém para acompanhá-lo. O jeito foi partir já quase oito horas da noite, ressabiado. Ao pegar a estrada de terra, fingiu que não estava com medo. Cantarolou, assobiou, se esquivou dos pensamentos arrepiantes. Volta e meia vinha à cachola um temorzinho, um pavorzinho, e Zé Maria tentava pensar noutras coisas: no forró do Rio Seco ou nas meninas de Zé Coco. Depois dos Veados, hoje Nova Esperança, a lua saiu e Zé Maria lamentavelmente lembrou que mais à frente iria passar pelo mal-assombrado local do acidente da jardineira do Expresso Santana com o caminhão de pinga Claudionor. Aí, pronto, o cagaço veio, num crescente, à medida que relembrava os fatos. O acidente ocorreu no comecinho de 1970, em janeiro, numa curva, onde logo após se avistava Mirabela. Morreram 23 pessoas, a maioria carbonizada, irreconhecíveis. Alguns passageiros nunca foram identificados, pois até os documentos se queimaram. O motorista do caminhão fugiu, escafedeu-se. Só se apresentou dias mais tarde, derruído, arrasado. Já o motorista da jardineira foi um santo, mesmo gravemente ferido ajudou a salvar nove pessoas, vindo a falecer mais tarde no hospital Pio XII em Montes Claros. No pânico, Borreira desabafou: - Cruz Credo! Vale-me Nossa Senhora do Perpétuo Socorro! Logo eu que joguei no bicho as dezenas da placa 89 69 23 da jardineira e ganhei. Desconjure! Perdoe-me, meu Deus! Daí em diante, foi uma tremedeira só, que aumentava à medida que chegava perto do local do acidente. E o pior é que o intenso tremor pelo corpo inteiro se findava no pé que apertava o acelerador num ritmo inconsequente. O jeep ia aos solavancos no compasso dos trancos e arrancos de Borreira. Passava das 11 da noite, o pedaço de lua empinava no céu, quando entrou na tão sombria curva, onde no alto foi erguida uma pequena capela pelas vítimas do acidente. Aí, não teve jeito, entre bufas e tremores, o medo de Borreira tomou conta e deixou o carro morrer. Bateu a chave, nada. Bateu de novo e só um ré-rém rém fraquinho. Pronto, era o fim, estava entregue às almas do outro mundo. E elas viriam tomar satisfação da sua jogatina com a desgraça dos outros. – Oh, Meu Deus do Céu, me acode! Eu devolvo o dinheiro! Juro que doarei tudim pros parentes das vítimas do acidente. Nada. Não se ouvia nada. Só havia silêncio, frio e o breu abrandado pelo pedaço da lua. Minutos se passaram, até que surgiu do canto da estrada um cachorro grande, preto, imenso, estranhamente de orelhas brancas. Alvíssimas. Veio em direção do carro, parou, levantou serenamente suas patas dianteiras e as colocou no para-lama do lado do motorista. Deu uma cafungada, como se tivesse cheirando algo no motor, olhou para o cagão do Borreira, e perguntou: - Qual o problema? Estatelado, sem voz, sem saber se o que estava vendo era um cachorro ou um lobisomem, grunhiu fino: - O jeep encrencou e não quer pegar. O cachorrão, então, ordenou rouco: - Sai do carro e levanta o capô. Borreira, submisso, mudo, atendeu na maior ligeireza. - Abre o distribuidor, tira o platinado e o esfregue no para-choque do jeep. Lixa a ponta e coloque de volta no lugar. Borreira, amedrontado, fez direitinho, conforme mandado. - Agora, fecha o capô, entre no carro e bata a chave. Veja se o jeep pega. Mais que depressa, Borreira entrou no carro, virou a chave e vrummm... o motor pegou. No terror que estava, nem agradeceu ao cachorrão. Sentou o pé no acelerador e saiu jogando cascalho pra tudo quanto é lado. Nunca correu tanto na vida. Não sabe nem como fez as curvas até chegar à Mirabela. Entrou a mil na cidade, freando bruscamente na porta do único buteco aberto àquela hora. O dono que estava fechando o bar se assustou com aquele estouvamento e perguntou: - Que é isso companheiro, parece que você viu assombração? Borreira, com voz fina de mulher, desabafou: - Seu moço, seu moço, sabe aquela curva do acidente do caminhão de cachaça com o ônibus? Pois foi lá que o meu jeep quebrou. Eu estava sozinho, no desespero, a rezar pro mode de alguém me socorrer. E não é que por milagre ou assombração surgiu um cachorrão preto e me mandou lixar o platinado e o carro pegou. Nisso o dono do bar, dando-lhe um copo d’água, perguntou: - um cachorrão desmedido, preto, de orelhas brancas? Borreira, balançando a cabeça, confirmou: esse mesmo, esse mesmo! O butequeiro, então, arrematou: - É, rapaz, cê teve uma sorte danada! - Por que, por quê? - Porque aquele cachorro é um enganador. Um palpiteiro! Ele não entende porra nenhuma de mecânica. |
Por Ucho Ribeiro - 30/5/2014 15:06:00 |
O TIC-TAC DA COPA. A Copa está chegando e o povo está frio, cabreiro. Os canais de TV bombam para criar um clima de euforia, de vamos lá! E o brasileiro? Continua desconfiado. Os meios de comunicação torcem para que o Brasil chegue a final, custe o que custar. Carecem deste mês de euforia, para faturarem. Afinal, precisam pagar as cotas de transmissão, os investimentos e ter um bom lucro. Mas os torcedores matreiros ainda estão com as bandeiras enroladas. Dona Dilma e seu staff torcem pela vitória, pois o hexa anestesiará os escândalos e os vexames do seu governo. O palco e os estádios estão prontos ou quase prontos. A segurança redobrada e a borracha dos cassetetes de molho, a espreita de qualquer tumulto. As eleições se avizinham. Os debates e as manifestações tendem a se aquecer. Existe o risco de torcedor e eleitor se confundirem. O campo de batalha poderá ser um só. Como em futebol tudo pode acontecer, embora não seja o meu desejo, imaginem se o Brasil tropeçar na fase de grupos? Suponhamos que nossa seleção perca o primeiro jogo para a Croácia e empate o segundo com o México, ou vice-versa. O tic-tac de espera até o terceiro jogo será deveras tenso. O pavio estará aceso. O Brasil precisará ganhar do Marrocos a qualquer custo e talvez com muitos gols. Caso contrário, acabou a Copa. Se formos desclassificados na 1ª fase, a turba tomará as ruas, mesmo debaixo dos cassetetes. Os jogos restantes serão um deus-nos-acuda. Ajuízo que o Joseph Blatter e o Marin já refletiram sobre esta possibilidade e devem ter alguma carta na manga. Talvez, precavidos, já arranjaram um juiz do tipo Renan Calheiros para salvar a Copa. Que este pavio não acenda! |
Por Ucho Ribeiro - 23/1/2014 15:55:30 |
O INFERNO DOS PRESÍDIOS. Estou cansado deste lero-lero sobre as reformas dos presídios. Sempre a mesma estória, logo após um motim a imprensa cai de pau e mostra o descalabro das masmorras brasileiras. Passado o escândalo o assunto sai de cena até surgir outra rebelião. As prisões para encarcerar o povo brasileiro sempre foram medonhas, superlotadas - o próprio inferno. Porém, existe prisão diferente para os bacanas, para os colarinhos brancos, para os políticos. Uma lei especial concede um cárcere diferenciado para os corruptos letrados, graduados, do porte dos protagonistas do mensalão. Duas leis, duas medidas, duas cadeias. O único jeito de passar o rodo nisso é, primeiro, ter uma lei só valendo pra todo mundo. Segundo, é garantir que todos, indistintamente, que mijarem fora do pinico irão preso e, terceiro, deixar claro que todo mundo que for preso vai ser encarcerado na mesma cadeia. Zé Dirceu com Escadinha; Zé Genoíno com um Pé de Chinelo. Se os políticos corruptos, os ladrões abastados e os membros podres do judiciário fossem presos, e fossem enjaulados nas mesmas celas dos ladrões de galinhas e traficantes, esses privilegiados almofadinhas iriam dar seus pulos e arrumariam rapidinho dinheiro para reformar todo o sistema prisional brasileiro. Presídios “a la primeiro mundo”. Mas, enquanto houver dois Brasis, o dos que mandam e fazem leis, mas não vão presos, e o dos que obedecem e vão para cadeia se pisarem na bola, a enfadonha ladainha sobre a calamidade do sistema presidiário permanecerá. A verdade é que as poderosas e privilegiadas aves de rapina não querem mudar as nossas vergonhosas leis, com medo de serem encarcerados nos aterrorizantes presídios brasileiros. |
Por Ucho Ribeiro - 4/1/2014 14:53:03 |
UM RAYU EM MINHA VIDA. Quando menino, Christoff era espevitado, expresso, curioso. Tinha todos os brinquedos, alguns inimagináveis, irreais até em nossos sonhos. Sua flash presença enchia por completo a família, o colégio, o ambiente. Carisma em pessoa. A meninada torpe estancava com tantas e mirabolantes idéias. Miragens para nosotros, terra firme para ele. Descobertas antevistas. Invejava sua coragem adulta, sua certeza indubitável, lógica. O que era dois mais dois para ele, para o resto da turma boquiaberta, mediana, era uma um devaneio. Dono do mundo, sem empáfia ou prosa. Simplesmente veio a passeio para desfrutá-lo, sem culpas e freios, até o osso. Tinha hobies só seus e gosto refinado para arte, música e velocidade. Pisava fundo em seus veículos envenenados e remexidos. Sua alegria era turbinada por motores e carenagens transformados pela sua ousada autoria. Passava horas a elucubrar designs, a acelerar suas máquinas, a desenhar e rascunhar com sua farta imaginação. Certos dias, afoito, batia a vida no liquidificador e bebia num gole só, noutros saboreava a noite gota a gota, gole a gole. Bastava ter uma companhia amiga, uma comunhão de alma ou uma comemoração que o amanhecer era certo. O usual era cozinhar no próprio caldo. Borbulhava-se. Adorava ser o híbrido Rayu. Dadivoso. Fleumático, sem ser narciso. Gostava de ficar só, a tramar, divertir, projetar, viajar, dar asas a sua privilegiada cachola. Se satisfazia. Feliz, amiúde. Era sempre Rayu. Único, inteiro, pleno e iluminado. Generoso, quase um pródigo para os mais próximos. Nunca despedi do primo sem ser presenteado com um mimo, um quadro, um incentivo, um toque, uma luz. Jamais borocochou numa conversa, debreou ou jogou a toalha numa aventura. Despejava ânimos ou dava pitos quando vacilávamos. Cagava e andava para boatos, disse-me-disses, fofocas. Ignorava a mediocridade, evitava os baba-ovos, a turbe ignara. Vivia a vida sem horários, regulamentos, agendas e não dava satisfação a seu ninguém. Degustava e flainava como um dandi. Livre, leve e louco. Nas madrugadas, na mais pura intimidade, revelava-se apaixonado pelos filhos e o mais orgulhoso pai. Nikita e Ian eram suas pedras preciosas. Amava-os no silêncio e discrição. Rayu Ribeiro Christoff, a inteligência e delicadeza mais bruta e amorosa que conheci, se foi. Escafedeu-se. Está a plainar sobre nós. Soberano, com toda a sua fleuma. Sinto-me desamparado, sem poita, uma lágrima só, num oceano enxuto e árido. Rayu, meu primo, meu amigo, meu irmão, minha luz! Vá em Paz! Te beijo de longe, de onde sempre quis te trazer e não consegui, mas que será a partir de agora nosso lugar de encontro. Ucho. Rio Preto. 03/01/14 |
Por Ucho Ribeiro - 22/11/2013 11:37:13 |
O mau cheiro insuportável empesta há muito os bairros Santos Reis, Jardim Brasil, Renascença, Edgar Pereira, Alice Maia. Infecta inclusive o Todos Santos II, passa pela Nova Morada e vai até o Eldorado. Catinga das mais fedorentas. E isto já tem anos e mais anos. Fedentina generalizada. A Secretaria do Meio Ambiente sempre se silenciou. Mouca e muda. A Copasa por sua vez, ignora o esperneio e a gritaria da população. Continua calada, omissa, e não se defende quando a sua Estação de Tratamento de Esgoto é acusada de emitir o putrefato cheiro. Uns culpam a ETE, outros acusam as descargas residuais das fábricas do distrito industrial, emitidas na calada da noite ou nos finais de semana, quando não há fiscalização ambiental. Se é que existe? A Secretaria de Meio Ambiente deveria se manifestar de forma clara, objetiva e informar categoricamente de onde vem o fedor. Declarar se já aplicou alguma multa ou se já estabeleceu prazo para findar o mau cheiro. Quais foram as efetivas medidas adotadas pela prefeitura para sanear este terrível fedor? |
Por Ucho Ribeiro - 14/11/2013 11:47:45 |
Bom senso futebol clube. Quarta feira histórica. Ontem, antes do Cruzeiro sagrar-se tri-campeão brasileiro, ocorreu a maior e mais representativa manifestação de protesto contra a atual situação do futebol brasileiro. A manifestação dos jogadores das 14 equipes que foram a campo, nesta quarta-feira, foi pacífica, necessária e legítima. Como os protestos de junho no país, as faixas pedindo respostas à CBF para o movimento “Bom Senso no Futebol” foram contundentes e verdadeiras. O árbitro de São Paulo e Flamengo, ao ver os atletas de braços cruzados, ameaçou punir os jogadores com cartão amarelo. Cena das mais tristes, que lembrou a ditadura. Os jogadores inteligentemente, para evitar os cartões, bateram bola amigavelmente por quase um minuto ao ser dado o início da partida. Imagem que vai percorrer e chocar o mundo. Retratará escancaradamente a nossa arcaica cartolagem e a deficiente estrutura do futebol nacional. Infelizmente, a Rede Globo continua a ignorar tais protestos e a mobilização dos jogadores dos campeonatos brasileiros das séries A, B e C. Silencia-se, por que sabe que o modelo atual das competições favorece suas transmissões e a audiência de suas novelas. A luta apenas começou. Muita água vai rolar até a Copa do Mundo. Veremos! |
Por Ucho Ribeiro - 6/11/2013 15:16:02 |
Ao reclamar da péssima qualidade da minha internet fui informado que a situação vai melhorar, pois a Anatel ampliou o limite mínimo de velocidade de banda larga. Pela nova regra da Anatel os provedores de internet de banda larga terão de entregar “no mínimo” 30% da velocidade pela qual nos cobram e, na média mensal, 70%. Uma pouca vergonha! Antes o limite mínimo era 20%. Pouca vergonha e meia! Para o ano que vem, em novembro, esses números passarão para um mínimo de 40% e uma média de 60%. O absurdo continuará! Nesse compasso lá por volta de 2020 estaremos empatando: os provedores vão nos entregar tudo pelo que pagamos estes anos todos. Mais uma aberração legitimada pelo governo. As prestadoras dos serviços deveriam devolver com multa e correção a diferença do que venderam e não entregaram. |
Por Ucho Ribeiro - 25/9/2013 10:50:46 |
DESPEDIDA Ênio Pacífico abriu o Quintal para juntar os amigos. Era um adulo só. Pra cada um tinha um trato especial, um bajulo, um tira-gosto, um carinho e uma franciscana atenção para ouvir causos, lamentos e anedotas, mesmo que velhas. A turma chegava a partir das seis horas da tarde, mas alguns tinham ali como escritório, surgiam logo depois do almoço e atravessavam a tarde debaixo das mangueiras a bebericar e a filar a prosa boa do proprietário. Dárcio Cabeludo era um deles. Instalava-se ao lado da mesa de trabalho de Ênio e de lá mesmo despachava os serviços do seu escritório de contabilidade. Cervejinha mocada, assuntos aparentemente sérios e bicadas escondidas até às cinco e meia. Daí em diante, a gelada passava escancaradamente para cima da mesa cada vez mais aninhada de amigos. Outro, menos assíduo, que passava pelo Quintal, era Túi, parente mais velho de Ênio, sempre duro e seco. Beirava o balcão com o olhar pidão à espera de um troco ou de uma dose. Acabava ganhando os dois. Voltava acanhado, dias depois, do mesmo jeito, calado, sem um tostão e numa vontade doida de tomar outra. Dárcio Cabeludo era diário, inclusive nos sábados e domingos, quando chegava de manhã, por volta das dez. Sua rotina só mudava um pouco na quarta-feira, dia de reunião na Câmara Municipal, pois tinha que estar lá às sete da noite. Invariavelmente não estava com paletó e gravata e suplicava a Ênio o empréstimo da indumentária. Com o passar do tempo, o paletó e a gravata do amigo já ficavam pendidos num cabideiro à disposição do edil. Dava a hora de verear, Dárcio pegava o traje dependurado e seguia para a Câmara que ficava no mesmo passeio da Cel. Prates, a uma distância de uns cem metros. Terminada a sessão parlamentar, retornava ao Quintal para tomar a saideira e dependurava de volta as usadas peças. Eis que um dia chegou a notícia da morte de Túi e da situação de penúria para providenciar o enterro. Ênio, parente e samaritano, tomou a frente de tudo e conseguiu fazer o funeral na Igrejinha do Rosário, bem em frente do Quintal. O corpo começou a ser velado à tardinha por Marlene e Jacy, esposa e irmã de Ênio. Iam passar a noite acordadas, numa morosa maratona. Igreja vazia, nenhuma viva alma foi despedir de Túi. Lá pelas 11 horas da noite, as duas cunhadas, caladas, já sem assunto, perceberam a entrada trôpega de Dárcio. Ele vinha do Quintal, após tomar a saideira. Passou, cumprimentou as comadres e dirigiu-se ao caixão. Ao avistar o corpo, balançou a cabeça e começou a resmungar: Ó não, como pode isto? Puxou uma cadeira, sentou-se, curvou-se, pôs os dois cotovelos na borda do esquife, as mãos na testa e continuou a resmungar, a balançar a cabeça e a lamentar, sentidamente. Jacy, então, comentou com Marlene: - Tá vendo, Nena, é por isso que ele se elege vereador. Nenhuma pessoa veio aqui despedir de Túi. Nenhuma, só o Dárcio. Ele é companheiro, solidário, amigo de todas as horas. Veja como tá comovido. Devem ter se conhecido nos bares da vida. Marlene, sensibilizada, levantou e foi até Dárcio. Apoiou as mãos nas costas dele e tentou consolá-lo: - Ô Cabeludo foi melhor assim, Túi descansou, Deus sabe o que faz... Dárcio, então, inconsolável, reclamou: - Este Ênio não tem jeito, é um desapegado, como pode fazer uma coisa dessas comigo? Olha pra você ver, lá se vão o paletó e a gravata. |
Por Ucho Ribeiro - 18/9/2013 11:34:05 |
Vejam esta bela história de Darcy, irmão de Marão, contada por sua grande amiga, Vera Brant, uma das pioneiras de Brasília Histórias do Darcy Vera Brant Numa reunião de trabalho, almoçávamos no apartamento do Darcy: Paulo Renato, Cristovam e eu. Durante o almoço, o Paulo Renato comentou que, quatro dias depois, num feriado, o coração dele faria um ano. Ele havia sido operado, no ano anterior. Quando eles saíram, o Darcy comentou comigo: Acho que o Paulo Renato está querendo comemorar o primeiro aniversário do coração dele. Vamos chamá-lo para almoçar? Concordei. Convidaremos umas vinte pessoas, o seu apartamento não comporta mais do que isso, com conforto. Tudo combinado, fui para o meu escritório. Mais tarde, liguei para a secretária do Paulo Renato para contar a novidade. O Darcy já havia ligado e dito que ela deveria fazer a lista de convidados e mandar para mim. No dia seguinte, dei uma passada no apartamento dele para verificar a quantidade de pratos, copos, essas coisas. Não havia quase nada. Pratos, uns dez, copos, onze, xícaras, sete. Resultado: eu teria que levar tudo. Mandei duas mesas de dez lugares, pratos, talheres, copos, tudo. Quando fui ver onde colocar as mesas, verifiquei que a cortina da sala de jantar estava com uma mancha marrom, de cima a baixo, horrível. Devem ter deixado a janela aberta, molhado e manchado. Peguei uns alfinetes enormes que encontrei na gaveta, dobrei as cortinas e, pelo menos do lado de dentro, ficou razoável. O Darcy me disse: “Filha, faça o Fernando Henrique saber que vai haver esse almoço e deixe-o à vontade para vir, ou não”. O Fernando era presidente, na época. Liguei para a Ana Tavares e disse-lhe: “Tenho dois recados para o Fernando. Um, do Darcy, que é para informar que haverá o almoço e deixá-lo à vontade. O meu é diferente: Não deixe de vir, não, porque é um feriado, você estará desocupado, o Darcy está precisando desse carinho e o Paulo Renato merece esta homenagem”. Vieram todos os convidados. Eram, mais ou menos, trinta pessoas. O apartamento estava todo florido e o Darcy feliz da vida. Lá embaixo estava cheio de jornalistas. Num determinado momento, começaram a pedir que chegassem à janela para uma foto. O Fernando Henrique pegou o braço do Darcy e foi se dirigindo à janela dos alfinetes. Eu dei um pulo da cadeira e segurei o seu braço: Não, aí não. Ele: Por quê? Depois te conto, venha para esta outra aqui. Foram e tiraram um monte de fotos, Fernando, Darcy e Paulo Renato. No dia seguinte, todos os jornais estamparam as fotos. Depois, mostrei ao Fernando os estado da cortina, toda manchada, com alfinetes. Do lado de fora, através dos vidros, era visível a feiura. O Darcy estava engraçadíssimo. Contou umas histórias malucas: Uma de suas tias havia perdido o filho e estava com os peitos cheios de leite, incomodando-a muito, doendo. Ela propôs ao Darcy chupar o leite, cuspir fora, chupar de novo. A cada chupada ela lhe pagaria tanto. O Darcy, que tinha cinco, ou seis anos, na época, ficou animado e aceitou a proposta. Fez isto várias vezes, durante vários dias. No quinto dia desistiu porque sentia enjôo e vomitava. Anos mais tarde, quando foi conhecer a relação sexual com uma mulher, ele, todo animado, beijava a mulher, adorando aquela situação. Até que ela pediu a ele que beijasse o seu seio. Ele ficou horrorizado, vestiu a roupa e foi para casa, correndo. Eu perguntei: Até hoje é assim? Foi uma gargalhada geral. Outra história: Sua bisavó paterna, Mariazinha, era viuva e tinha um amante de trinta e seis anos. Para ficar mais prático, ela casou sua filha Deolinda, de treze anos, com o amante. A Deolinda era avó do Darcy, e o amante, ele não disse o nome, era o avô. O casal foi tendo filho, um atrás do outro, num total de oito. Certa tarde em que a avó Deolinda voltou da missa mais cedo, viu o marido saindo do quarto da mãe, de ceroula. Tomou tanto pavor dele que nunca mais lhe dirigiu a palavra, nem falou o seu nome. Quando se referia a ele, dizia: “o homem”. Quando o marido morreu, ela não colocou luto, nem derramou uma só lágrima. E, quando estava à beira da morte, aos noventa anos, chamou os filhos e declarou o seu último desejo: Eu não quero ser enterrada com “o homem”. Os jornalistas, debaixo do prédio, não estavam entendendo nada. Quando terminou o almoço, alguns subiram ao apartamento e a primeira pergunta foi: Por quê vocês riam tanto? O Darcy: Era a Vera, contando os seus casos, as suas loucuras........................... |
Por Ucho Ribeiro - 11/9/2013 10:06:50 |
O TEMPO URGE De todos os protestos de junho e mesmo das contestações recentes do Sete de Setembro não surgiu nenhuma nova liderança nacional ou mesmo regional. Se existe, eu não vi, não ouvi, nem tive notícias. Daqueles comoventes alvoroços, da patriotada efervescente, não brotou um único homem ou uma nova mulher, frutos dos ideais dos movimentos, para que possamos acreditar, alinhar e dar o nosso voto de confiança. A população foi às ruas contra os políticos, contra a impunidade, contra a desfaçatez, contra a corrupção, mas não encontrou o seu representante nas manifestações. Não descobriu, não desvendou um novo candidato, sério, honesto, carismático, que a represente e lute pela moralização do país. O eleitorado norte mineiro, sujeito às requentadas promessas e xaropadas eleitorais, terá de escolher entre os deputados estaduais de sempre, na sua maioria chapas brancas, aliados ao Palácio da Liberdade. Já para deputado federal, fora os inumeráveis paraquedistas, a escolha estará restrita a pouquíssimos nomes, que não enchem u`a mão. Os habituais candidatos de outras eleições estão impedidos ou nos seus ocasos. No empurra-empurra, a gata pariu uns, outros jogaram a toalha e o restante a justiça ou a morte os retirou forçosamente dos pleitos. Senão, vejamos: Wilson Cunha faleceu, Cleuber Carneiro abandonou a política, Tadeu Leite continua enfermo, Marcio Reinaldo encontra-se prefeito em Sete Lagoas, Ruy Muniz também está confinado aos afazeres e deveres municipais, Fernando Diniz findou-se, Walfrido dos Mares Guia abdicou-se das eleições proporcionais, Paulo Lopes retraiu, Warmillon está preso, Athos Avelino está impedido de candidatar, Ariosvaldo de Melo esmoreceu. Por derradeiro, o emergente Demerval de Taiobeiras foi arapucado pelo Ministério Público Federal. Assim, para federal, restaram apenas Humberto Souto, Jairo Athayde e Saraiva. Pelo PT, o manda-chuva Virgílio Guimarães deve manter a candidatura do seu filho Gabriel e incentivar estrategicamente o lançamento de Paulo Guedes a federal, no intuito de ocupar espaços e abocanhar o espólio de votos deixado pelos ex- candidatos. Ruy Muniz, insaciável e ambicioso, ao perceber o vazio eleitoral e enxergar o universo de votos sem cabresto, poderá lançar sua esposa Raquel ao Congresso Nacional. Enfim, o potencial de dois milhões de votos do norte de Minas é um chamariz e uma oportunidade para novas candidaturas a deputado federal, principalmente para quem apresentar uma postura séria, visível e combativa, que traduza e exalte o clamor das ruas. Para tanto, este candidato deverá alardear sua campanha, primordialmente, nas redes sociais, com a volúpia, a garra e o tesão das passeatas. Terá que despertar o imenso e inerte eleitorado cibernético e plugá-lo ávida e dedicadamente à sua empreitada eleitoral. Um exercito on line, diuturno, com a vontade e disposição de passar o rodo na politicagem, de passar o país a limpo. Entretanto, pelo visto, deste mato não deve sair coelho, pois das agitações que balançaram o país não despontou nenhuma liderança com carisma para conduzir um processo de renovação. Onde estão os novos candidatos? Cadê a indignação da juventude, o renovar da política? Desafortunadamente, não temos um projeto político audacioso e articulado para mudar o país, nem um braço para estender a bandeira da moralidade. Até mesmo a suposta pauta “pontual e salvadora” da presidenta para consertar e moralizar a nação foi jogada na lata de lixo. Não está mais na ordem do dia. O certo é que o cavalo estará arriado para quem tiver verdadeiramente o discurso de oposição. Porém este pretendente tem que ser alertado da premente necessidade da sua filiação numa agremiação partidária. É importante ter o conhecimento que uma candidatura para ser posicionada tem que primeiro seguir as determinações e as exigências da lei eleitoral. Só pode ser candidato quem for filiado a um partido político e o prazo para a filiação às próximas eleições é 03/10/2013 (art. 9º da Lei 9.504/97). Isto mesmo, quem não se filiar a uma legenda até o dia 3 de outubro deste ano não poderá ser candidato nas próximas eleições de 2014. O tempo é implacável. Hoje, faltam apenas 22 dias para o prazo final de filiação. Donde se conclui que, nas condições atuais e devido ao exíguo prazo, será difícil surgir um candidato novo, com uma proposta de mudança, que empunhe o clamor das ruas. Na falta desta alternativa, o eleitorado com nojo dos atuais políticos anulará o seu voto ou se absterá das urnas como uma expressão de repulsa a farsa eleitoral. Desde já prognosticamos que o voto nulo e a abstenção vão bater recordes no circo eleitoral de 2014 e que os céus e o sertão norte mineiro estarão, como nunca, cobertos de opulentos paraquedistas. A compração de voto será feroz. Viver para ver. |
Por Ucho Ribeiro - 8/8/2013 10:46:17 |
GUERRA SEM FIM O melhor da pescaria são os preparativos. A pré-pescaria. É um mês de salvo conduto. Toda semana tem uma reunião para providenciar as tralhas. Álibi garantido para a patroa. Normalmente os encontros se dão depois do trabalho, a partir das seis da tarde, sem hora para acabar. São detalhes, minúcias demais para combinar. De volta à casa, de porre, a desculpa já está pronta: - Meu Bem, você precisa ver que pinga que o compadre Murilo arranjou pra a gente levar. Muito melhor que a de Ernane e a de Pedrinho. Boas também, mas num dá nem pra comparar! A esposa só rosna: - Ruum! Nos dias dos encontros, as ligações começam de manhã: - É hoje! Não falte, viu, fiduma! - Olha, o Ronaldo vai também! - Que bom! Leva aquela boa. - Ô, fidoutra, a cascavel vai te liberar? - A víbora pode sacudir o chocalho, pode destilar peçonha, jogar a praga que quiser, mas vou tá lá cedo, a espera de vocês. No finalzinho da tarde, a turma começa a surgir. Cada um mais animado que o outro. Passaram a semana à procura de um regalo, de um adulo, para levar pra a viagem. - Olha, gente, eu arranjei uma lingüiça “ispicial”, que vocês precisam ver. - Pois eu, tô preparando uma costela, que é pra comer de joelho. - Murilo está todo prosa com a pinga dele, mas cachaça boa, boa mesmo, vocês vão ver, é a minha. Consegui a reservada, a reservadíssima, a mocada de Beto Viriato. Tem que fazer genuflexão para prová-la. - Deixa de papo de ex-seminarista, rapaz, nós vamos é encher os cornos de gole. Ninguém vai pra missa, não! - Ô, os menino, o uísque eu levo. Tô com meia dúzia de Bala 12, goela larga, guardadinho. Coisa fina, de free shop. - Druva, Durvalino, cê não precisa preocupar com a dobradinha. Passei a semana babando o ovo da minha sogra e a veia, pra me adular, tá dando um senhor trato num bucho. O paio, a calabresa e o feijão jalo, tudo novinho, já estão embalados. - Enio, sabe aquela tequila mexicana de Jalisco? Pois vou por na roda. Você leva o sal e o limão. Porrete certo, compadre! - Companheiro é companheiro! - Estou levando umas revistas playboy e outras mais calientes pra a alegria de Seu João Lourenço e uma garrafa térmica de presente pra Dona Dalvina. - Ah, já avisei na barranca do rio, para irem guardando uns peixinhos pra gente. De preferência uns molequinhos e uns dourados. Seguro morreu de velho! - Informo aos patos do truco que o baralho eu estou levando. - Gente, gente, e os foguetes? Os rojões? - Quando vocês vêm com o milho, eu já vou com o fubá. Marquim e eu passamos em Mirabela e compramos na mão de João Fogueteiro 10 baterias e umas 30 caixas de 12 tiros. Aquilo lá vai virar um Vietnã, minino! Tem pipoco pra dar com pau. Januária e Itacarambi, acordai-vos! - É, sei não? Desta vez, teremos dois pirotecnistas: Enio e Marquim. Eles são do pavio aceso. No que outro retrucou: - E da pistola apagada! Enio, então, lamentou: - Pô, pessoal, o bicho tá pegando, eu só vou poder ir na sexta-feira. Não vai dar para viajar com vocês na quarta. Zé do Grilo porá fogo nos meus foguetes até eu chegar. - Xá comigo, Tio. Vou mostrar para eles o fogo das pistolas. Ui ui ui! - As carnes do churrasco já estão reservadas no mercado. No capricho. Tudo de primeira e no jeito. Comprei até um cupim pra dar trabalho pro Gedeon. - Surpresa! Dou o toba se alguém docês descobrir o que eu estou levando pra comer com mel. - ... - “Man-ga-ri-to”! Isto mesmo, mangarito! Consegui com Paulinho lá da Lagoinha. Sobremesa de lamber os beiços. De comer rezando. - Ô, turma, a feijoada já tá encomendadíssima, pra mais de vinte, pra sobrar. Linguiça, lombo e costela defumada têm pra dar com pau, pra quatro dias. Caprichei, mano veio! - Deixem as couves e as laranjas por minha conta. Na véspera, eu pego tudo fresquinho lá no meu sítio. Nisso, um candidato à primeira pescaria intrometeu para dar um palpite: - Ô, pessoal, eu estou providenciando os anzóis, as varas, os carretéis, as iscas... Quando foi interrompido por um gozador: - Porra, cara, não mude de assunto, nós estamos falando é de coisa séria, de pescaria, não vem com estas perfumarias, não, caralho! Daqui a pouco você quer levar até pijama. A gargalhada foi geral. Eis que Murilo interviu: - Cabe advertir aos iniciantes sobre os preceitos magnos da nossa pescaria e feijoada: Regra número 1 e fundamental: Dormir é respeitado. Quem apagar não pode ser molestado de forma alguma. Se acordado, vale tudo. Além disso, a digníssima feijoada é exageradamente calculada para durar mais que os dias previstos de pescaria. Serão aceitas turbinações complementares, caso a “furiosa” raleie, porém o Sr. Enio Pacífico está proibido de incrementá-la com peixe, frango e outras cositas mais que não descendam de cria de uma porca. Temperos serão aceitos com temperança e notório saber. Personas truviscadas, mesmo de conduta ilibada, sem profundo conhecimento culinário, estão restritos a degustar e se fartar. - Outra coisa, devido ao usual grau alcoólico dos mestres cucas, as questões higiênicas serão ligeiramente relevadas. Ouçam bem: Apenas ligeiramente. - Pra não ter briga, caso haja algum desentendimento entre os chefes de la cuisine, serão feitas duas ou três feijoadas apartadas. Com o compromisso verbal, em alto e bom som, de os cozinheiros não sabotarem a feijoada do concorrente. No entardecer do penúltimo dia da pescaria, haverá uma votação para escolher a melhor “furiosa”. Desde logo, já estão liberados o puxa-saquismo, a adulação escancarada e o suborno explícito para a compra do voto a favor da sua feijoada. Lembrem-se bem, vale tudo, menos sabotar a concorrente. - Olha cambada, imploramos aos conhecidos flatulentos de plantão, por uma questão de amizade, respeito e consideração aos amigos, que se afastem de nosotros quando forem esvaziar suas forradas e constipadas tripas. Não custa dar uns dez passos adiante para liberar seus folguedos. A única exceção é quando estivermos no barco, pois, como dizia Marão: - Quem guarda pum, tem espinha! - Ô gente, é bom avisar que está proibido parar em Lontra, porque senão Mirson Lessa apaixona de novo com a moça da folhinha da Pirelli pregada na borracharia. Da última vez, foi um upa para ele largar a loura de olhos azuis. No pau que estava, chegou a ajoelhar e implorar para a garota do cartaz acompanhá-lo à pescaria. Antes que o papo descambasse, o Coronel Zeder, com sua voz de militar, interrogou: - Tropa, antes de tudo, é importante saber: quantos elementos, quantas viaturas? Começou, então, a contagem, até que um gaiato sugeriu uma porrinha para definir quem seriam os motoristas. Os perdedores dirigiriam os carros. Depois de muito papo, goles, tira-gostos e porrinha disputada, tudo ficou mais ou menos combinado, horário da partida quase definido, a distribuição do pessoal nos carros praticamente decidida, porém as tralhas, as comidas e as bebidas estavam totalmente acertadas. Os marmanjos meninos voltaram para a casa ansiosos à espera da largada. Dia da partida, de manhã, foi aquela alegria. O atraso certo e os esquecimentos usuais, mas o astral altíssimo. Na saída, Aluízio Pinto ironizou: - Coitado de Enio! Ele não vai porque Mariflor não aprovou as suas companhias de pescaria. No percurso, fora os motoristas que só deram uns biquinhos, o resto encharcou bonito. Às 8:28, deu para ouvir o primeiro “tizzz”. O som da abertura da primeira latinha. Depois, foi uma orquestra tizz, tizz, titizzz... A cerveja na caixa de gelo estava tinindo e a sede, de matar. A viagem durou o dobro. Tudo quanto é buteco na beira da estrada foi motivo para tomar uma ou duas. Ao chegar na barranca do rio, muita coisa já estava preparada. Dona Dalvina, já tinha varrido o terreiro debaixo das seculares mangueiras, juntada a lenha para o fogão, que não iria apagar até domingo e deixado uns molequinhos no ponto de fritar. Afinal a trupe sempre chegava truviscada e com uma fome bruta. Uns descarregaram as tralhas, Lóis e Aramis montaram o motor de popa, Marcos Pitangui e Vidal, mais precavidos, arrumaram suas barracas e Gê Novais e Getulio Fraga foram procurar velhos e experientes barranqueiros para pescar uns peixinhos, ou melhor, uns peixões, para a pescaria ser um sucesso. O velho anzol de cobre. O trato era acertar com eles os dias de serviço à disposição e garantir a compra de tudo que eles conseguissem pescar. Isto livre, com bebida e comida de graça e à revelia. Agasalhados mais ou menos, cerveja na mão e umas duas cangibrinas na cabeça, logo um espoletado soltou um foguete de 12 tiros para alegrar a turma ou para desafiar alguns fidumas que poderiam estar pescando perto dali. Taratá, tá-tá, tum! Num demorou nadica de nada e a resposta veio do outro lado distante do rio: tá-rá-tá-tum! Pedrinho logo gritou: - A guerra vai ser boa! Senta fogo aí, Curió, acaba com estes fidumaséguas. - Quem são eles? - Devem ser cruzeirenses. Daí, começou: uma arriada na pinga e um pipoco: Tum! Uma cerveja aberta, outro tirambaço: Tum! Prova a tequila, um repipôco: Tum-tum-tum! Mas, os pescadores da outra margem, rio abaixo, reagiam. Tu, turum, tum! Batalha dura. Foi indo, foi indo, a trupe já está toda embalada, nível etílico nas alturas, papo enrolado e risadas soltas, destrameladas. Ildeu, mais entretido na fazeção da comida, alertou: - Ô, gente, é melhor debrear nos foguetes, porque senão eles irão acabar logo, logo. Não vai dar pra amanhã e ainda tem muita pescaria. Os contras, os fidumas, parecem que estão bem municiados. Não tem pipôco que eles não retrucam. O bando não deu ouvidos ao conselho. O tirambaço correu solto a noite toda. No outro dia, pelo meio da manhã, Fernando Etienne, mais responsável, sugeriu: - Ô, os meninos, é melhor soltar um foguete a cada 4 cervejas. O estoque está baixando rápido demais. E assim foi. Aberta a quarta ou quinta cerveja, olha o tirambaço. Tum- tum- tum! De pronto, vinha a resposta: Tum-tum! Os fidumaséguas estavam bem abastecidos. O troco era instantâneo. Os foguetes não deram pro começo da noite. E os contras conseguiram dar o ultimo tiro. Derradeiro e definitivo. Derrota fragorosa. No porre que estavam, acabar a munição foi uma decepção. Uma verdadeira humilhação. Haviam perdido uma batalha foguetória nas barrancas do Rio São Francisco. A primeira. Só havia um jeito de sanar aquele vexame: Ligar pra Enio, lá da Vila Florentina. -Alô, Enio, dê seu jeito, arranque daí, hoje, pegue todo o dinheiro que conseguir e compre tudo de foguetes, rojões, bombas, o escambau a quatro. Estamos perdendo a guerra e feio! - Mas... - Não tem mas, nem menos. É questão de honra. - Saia daí agora, entope o carro de munição e venha rápido, ligeiro. Se precisar de dinheiro, passa no escritório da empresa e pegue o que for necessário. Estamos esperando com o fósforo aceso. Senão o vexame vai ser horroroso. Já tem companheiro chorando de vergonha. Nós temos ainda a sexta, o sábado e o domingo para acabar com esses carnes de pescoço. Venha logo! Não deu outra. Enio só avisou que de noite não tinha como comprar foguetes, mas que tomaria providências. No outro dia cedinho, catou a grana disponível e entupiu o seu DKW até o teto. Saiu de casa com o xingo e o desprezo da mulher e seguiu estrada afora para salvar os amigos. Nem teve coragem de fumar dentro do carro, com medo de ir pros ares. Chegou no acampamento por volta do meio-dia. De longe já veio buzinando, pra animar o bando de manguaceiros. Com aquela munição toda, não tinha como perder a guerra. Ao freiar, os amigos borrachos saquearam o carro, nem cumprimentaram o pobre do Enio. Cada um abriu uma porta do Vemaguete e pegou uma caixa de foguete, ou um rojão. Foi aquele tiroteio, parecia o dia D, tiro que nunca viram igual. Tá-rá-tá-tá-tá!. Tum-rum-tum-tum-tum! Pôu-tá-tá! Passado um segundo de silêncio, olha o revide: Tum-tum-tum – tá-tá! Aí, Curió, no maior porrete, clamou: Tá vendo, Enio, os fidumaséguas estão cheio de munição. Mas agora eles vão ver o que é bom pra tosse. Mais outra saraivada: Tum-tum-tum! Tum tum! E o rebate, imediato: Tum! Tum! -Puta qui pariu, num tem foguete que estes excomungados não revidam! Aí, Enio, sóbrio, gritou: - Pára, Pára, Pára! A turma quietou e Enio disparou: - É deste jeito, no pileque que cês tão, esta guerra vocês não ganham nunca, seus bestas. Cês não tão vendo que é o eco. O revide é o eco dos foguetes, tropa de bebuns! O troco é o eco, cambada! Obs: Turma de pescadores: Seu Ênio, Murilo e Ronaldo Maciel, Pedrinho da Antártica, Edmilson Lessa, Wilsinho Curió, Lóis, Aramis, Marquim Ribeiro, José Aluizio e Lucas Pinto, Vidal, Fernando Etiene, Cel. Zeder, Edgar e Ernane Pereira, Marcos Pitangui, Gê Novais, Getulio Fraga. Chefes de cozinha: Durva, Gedeon e Ildeu. |
Por Ucho Ribeiro - 29/7/2013 15:04:18 |
TUTUCA Tutuca chegou em Francisco Dumont no sábado, antes do Domingo de Ramos. Pretendia passar toda a Semana Santa na casa do seu amigo Camilo, o único médico da cidade. Mas deu com os burros nàgua, o doutor havia viajado para um congresso e esticado o feriado numa praia baiana. Casa trancada, empregada desencontrada, sem as chaves, sem onde empoleirar, o jeito foi hospedar na pensão do Seu Rosa e Dona Teresa. Como estava completamente duro, as diárias, as refeições e o invernado gole foram pendurados. A bem da verdade, o crédito foi concedido por sua amizade com o renomado médico. Enquanto esperava o retorno do Dr. Camilo para quitar suas contas, Tutuca valeu-se da sua simpatia e embromação. Era bom em desculpas e lorotas, quando regadas a muita cerveja e pinga curraleira. Todo “mêlete” tem o dom da simpatia. Com o passar dos dias, Seu Rosa, incitado por Dona Teresa, sugeriu que o hóspede fizesse um acerto, pois qualquer dinheiro ajudaria pagar os fornecedores, principalmente o distribuidor da Brahma. Tutuca, engasgado, desculpou-se alegando estar desprevenido naquele momento, embora estivesse no aguardo de uma ordem de pagamento. Todavia, por precaução e com medo do Dr. Camilo demorar, debreou na cerveja, mas não aliviou na aguardente. Acordava amarrotado, arrumava o cabelinho que não via água há muito tempo e com poucas palavras ia direto para o bar da pensão. Tomava apenas um café preto, refugava o pão, o leite e a margarina. No esquentar da manhã, os recém-conhecidos iam chegando e empoleirando, formando o escrete do gole, até que o mais corajoso ou o mais trêmulo solicitava a primeira, uma pequenininha para esquentar a tripa ou para curar o resfriado. Os compartes, solidários, o acompanhavam. Daí em diante, a roda só aumentava. O pudor etílico era relevado, o riso afrouxava e a vozearia retumbava. O tema de sempre era a vida alheia, os velhos causos e o anedotário repetido. Um alegrião esfuziante. Bêbados, já se tratavam pelos apelidos, na maior intimidade: Pé de Cana, Fogo Eterno, Manguaça, Buteco, Dose Dupla, Copo Furado... O almoço era trocado por esporádicos tira-gostos para segurar a onda. Sério mesmo era o gole fechado, o dia inteirinho. Se algum pedia algum belisca, vinha logo a gozação: “começão feroz, cachaça necas.” Ao final da tarde, os bebuns, sorrateiros, com medo das patroas, iam escapulindo de volta para suas casas. Tutuca, já sem companhia, jantava pouquinho e se arrastava para quarto. Apagava antes da novela. Dia seguinte, de volta à remoída rotina, gole em cima de gole, causos e piadas requentadas, gargalhadas estridentes e a conta da pensão e do bar cada vez mais alta. No torpor, a turma desconhecia trabalho, obrigações e ignorava por completo os preparativos para a procissão do “Senhor Morto”. Dona Teresa, coordenadora há anos do figurino da procissão, zelava, lavava e passava as roupas de todas as personagens: da tanga de Jesus Cristo às suntuosas vestes de Pôncio Pilatos. Entretido e dedicado ao gole, Tutuca também não percebeu que a cidade silenciosa se vestia, se transformava. Ruas pintadas, janelas ornamentadas e rendadas, cruzes e santos cobertos de alfaias roxas, cavalos desarreados, tudo e todos devotados ao desfile do Santíssimo. Na sexta-feira, Dona Teresa acordou espevitada, tinha que distribuir as roupas engomadas aos compenetrados atores. A cada entrega, alertava sobre o horário impreterível da largada, às 3 horas da tarde, na porta da Matriz. Iam subir até o posto de gasolina e desceriam a rua paralela até a casa de Sócrates Dumont, de onde retornariam à praça da igreja. Infelizmente, Dona Teresa foi informada, de manhã, que o padeiro não poderia mais ser o São José, pois tinha viajado na véspera, às pressas, para São Paulo, devido à doença da patroa. Deus Misericordioso, quem será o substituto, o pai de Jesus? Todos os católicos conhecidos já estavam escalados e paramentados. Pedir a um crente para ser santo, nem pensar. Cruz Credo! Tesconjuro! Ao passar pelo boteco, encontrou a solução: Iria intimar o Tutuca, amigo do Dr. Camilo, para fazer o papel. - Mas, Dona Teresa, eu? Nunca fiz nem pai de noiva em quadrilha, quanto mais ser logo o São José? - Tem que ser você, Tutuca. Não tem outro. Você só precisa parar de beber até a hora da procissão. Promete? Tutuca, no curé, parou, pensou no mico que teria de pagar, mas como negar alguma coisa à Dona Teresa? Estava na sua pensão há uma semana, bebendo, comendo e dormindo, sem um tostão para pagar a conta. E se ela o acochasse na cobrança? O jeito era capitular. - Tá bom, Dona Teresa, a senhora me avise na hora. - Olha, menino, procissão é coisa séria e o seu papel é dos mais importantes e destacados. Bom mesmo é você afastar da bebida. Deus castiga! Tutuca continuou no bar, calado, figurante, sem muita potoca. Escondeu o copo na prateleira do balcão e passou a tomar suas talagadas na moita. Taludas, mas espaçadas, para não dar na vista. Ás duas e meia, a dona da pensão, apressada, avisou-o: - Sua vestimenta está passada e engomada em cima da sua cama. Tá na hora de vesti-la. Daqui a pouquinho passo lá no quarto pra checar se está tudo direitinho. Tutuca se levantou do banco, tonteou, segurou no balcão, firmou as pernas, tomou o resto do copo e saiu apalpando o corredor até o seu quarto. Lá chegando, deparou com aquele vestidão franciscano, esticado na cama, um cinto de corda e uma sandália trançada, à romana. De porrete, sentou, pensou em desistir e a moleza o fez deitar para um cochilo. Não passou minutos, Dona Teresa já chegou dando choque: - Tutuca, Tutuca, levanta, veste logo a túnica, a procissão já tá para sair: um, dois e já! Não teve jeito, levantou, tirou a roupa, ficou de cueca, vestiu com dificuldade aquele manto marrom e logo entrou Dona Teresa para dar-lhe o arremate. - Quieto, deixa eu dar o laço no seu cinto. - Firma o pé para eu amarrar suas sandálias. Tutuca só soluçava, hic-hic, não estava se agüentando em pé. Boca seca, precisava tomar mais uma. Nem que fosse uma pequetita. Dona Teresa, aprumando-o, o pôs para fora do quarto e na saída arrancou-lhe os óculos e o relógio, dizendo: - Naquele tempo, não usavam estes trens, não! Se já estava tudo anuviado com a bebida, imagina agora sem óculos. Tutuca estava perdidinho da silva. Trôpego e cego. Foi guiado, a passos lentos, da pensão, que ficava numa esquina, até a quadra diagonal, mais acima, onde a Matriz sobressaia. Chegando lá, escorou na porta da Igreja e, se não fosse o medo que tinha de Dona Teresa, teria escorregado até sentar na escadaria. Ás 3 horas em ponto, sinos tocados, tilintados, estava a cidade inteira dividida pelos dois meio-fios da rua. Na ala da frente, São José balangandã, num porre só. “Quando Jesus passar, quando Jesus passar, quando Jesus passar, quero estar no meu lugar.” No meio daquela cantoria e rezação, Tutuca balançava, galeava pro meio da rua e um menino o puxava de volta pro canto do meio-fio. Tutuca, puto, dava um coque na criança. Tropeçava de novo, o menino o aprumava. Outro coque e mais um pé na bunda do guri. E aí foi aquela rinha, um trupicão, uma puxada na saia, um tapa na cabeça da criança. O menino chorava, mas não largava, punha São José na linha. E recebia outro tabefe. Rompido apenas um quarteirão, Dona Teresa, vestida de Ana, mãe de Nossa Senhora, largou sua posição e deu um basta naquela briga. - Pelo amor de Deus, Tutuca, deixe de implicância, não faz isso com o menino, não. Ele é Jesus Cristim e tem de andar do ladinho do pai dele, São José! |
Por Ucho Ribeiro - 15/7/2013 09:02:16 |
MINGUTA Minguta era o porteiro da Cooperativa. Tomava conta do portão de entrada dos carros de leite que vinham matinalmente das fazendas. Prosa boa, respeitoso, uniformizado, bota brilhando, chapelão na cabeça. Pra todo mundo soltava um sorriso e um “Bom Dia, Patrão”, com sua voz grave. De manhãzinha, os caminhões e as caminhonetes entravam, iam direto à rampa onde os galões de leite eram descarregados. O pessoal dirigia-se ao portão para saber das novas e para comer o delicioso pastel que Minguta trazia de casa pra vender. Rapidinho o pastel acabava. Não dava para quem queria. Luizão Maia era um que, por fazer rota pegando leite de outras fazendas, só chegava atrasado. Neca de pastel. Todo dia a mesma história: - Cê guardou meu pastel, Minguta? - Como que guardo, Seu Luiz, o povo num deixa. Aí, o Luiz implorou: - Minguta, vê se traz mais, homem! Faz mais um pouco. Eu venho jejuado, aguando por um pastel, chego aqui e nada. - Ô, Seu Luiz, pode deixar, amanhã eu prometo trazer o suficiente que vai dar procê. Dito e feito. Ao voltar do serviço, avisou a patroa pra fazer mais pasteis, bem mais. Ela, ao ver o tamanho da empreitada, resmungou baixo, pois teria que fazer mais massa, voltar ao açougue à procura de mais carne, da mesma qualidade que ela sempre encomendava, socar mais tempero, moer a carne, abrir a massa, fechar os pastéis, acordar ainda mais cedo para fritar os malditos, pois às 5 horas em ponto Minguta pegava no trampo. Resultado, com tantos resmungos e pragas, a mulher não dormiu, nem deixou o marido dormir direito. Minguta amanheceu grogue, encruado com a rezinga da patroa. Seguiu sonolento para os afazeres, carregando aquela cesta pesada, entupida de pastel, para matar o desejo e o apetite do menino Maia. Lá pelas tantas, sol já quente, uns dos últimos a chegar foi o Luiz e já foi logo cobrando: - E o meu pastel, Minguta, trouxe? _ Ó Seu Luiz, trazer até que eu trouxe, e foi muito, mas num tem pastel que dá pra este povo não. Parece que eles estavam amarrados, mortos de fome. Posso trazer cem, duzentos pastéis, que eles comem tudo, tudim. Teve até briga. Não sobrou um. Sabe duma coisa, Seu Luiz, eu vou voltar a trazer só os meus vinte, e pronto! |
Por Ucho Ribeiro - 9/7/2013 10:11:00 |
É PARA LÁ QUE EU VOU... Sossego eu conheci no Rio Preto. Atoice atroz. Papo pro ar. Sem ter pra onde ir nem o que fazer. Bestar pelas ruas, apreciar casas, fachadas, visitar igrejas, jiboiar em águas nítidas, aquentar sol, subir ladeiras, descer o rio, desvendar becos, conversar com um, beber com outro. Admirar a paciente ferragem de uma cavalgadura. Contemplar o zelo e o gosto do seleiro ao tecer uma cabeçada. Dar ouvidos ao trino trinar dos passarinhos. Dobrar esquinas por borboletas. Seguir cachorro sem rumo. Quietar horas na venda, num banco, vendo a arte do vender e do não vender. Assuntar prosa no buteco do Girino, a beira do rio. - Pega uma cadeira pro moço, aí, menino! - Cê que é de Montes Claros, né? - Sou! - É, cada dia chega mais um por aqui. - Vem muita gente? - Ô se vem, cê precisa ver é no carnaval. É um furdunço só. Fica lotado. - E onde fica este povo todo? - Espalhado por aí. Uns ficam nas casa dos parentes, outros abarracados na praia. Moço, cê não vai acreditar, no carnaval deste ano, no domingo, eu vendi quatorze cafés com leite. “Qua-tor-ze!” É gente demais... Contive-me na certeza que ali era um lugar pra voltar. Nem celular pegava. |
Por Ucho Ribeiro - 25/6/2013 13:10:44 |
DEODORINA Quando menino morria de medo de assombrações, mula sem cabeça, mãe d’água, curupira, lobisomem. Tinha até medo de virar um deles, já que sou descendente do famigerado Bicho da Carneira lá de Pedra Azul. Na Fazenda Ipueira, sem luz elétrica, as conversas, à beira do fogo antes de dormir, davam calafrios: alma penada, vampiros, fantasmas, espíritos malignos. Atemorizados, ouvíamos até o zurro da Mula Sem Cabeça. Hoje me pergunto: como ouvir o zurro se ela não tinha cabeça? Mas que zurrava, zurrava, pois eu ouvia e tremia nas calças. Cagaço maior era quando os mais velhos ameaçavam nos entregar para Sá Deodora. Bastava desobedecer em qualquer coisa, aprontar alguma, que logo vinha ameaça: - Só chamando Deodora para dar um jeito n`ocês. Sá Deodora era um mulherão de metro e oitenta, forte, taluda, braços grossos, mãos grandes e ásperas. Vestia saia até as canelas, lenço na cabeça, camisas sobrepostas em trapos. De pouca ou nenhuma conversa. Monossilábica. Vivia descalça, com os calcanhares rachados. Cobra sem peçonha esmagava a cabeça com o dedão do pé. Pegava qualquer serviço de homem: fazer cerca, roçar pasto, destocar roça, e não aceitava receber como mulher, o que era usual na época. Na lida, não amontoava com os outros, fazia sua tarefa apartada, talvez para mostrar o rendimento do seu serviço e comia sua marmita arredada. Retomava primeiro que os outros e era a ultima a largar o trabalho. Sua casa ficava no oposto das demais, numa grota, onde corria a ipueira ao fundo. Havia um folclore: se algum menino enxerido fosse vê-la tomar banho à noitinha, ela capava o moleque. Embora reservada, era prestativa. Apresentava-se para qualquer serviço. Era muito demandada para benzeções, rezas e simpatias. Curava quebrantos, mal olhados, espinhelas caídas e ventos virados. Uma vez, a mulher do vaqueiro estava parindo e o nascimento complicou, as parteiras, sem mais saber o que fazer, clamaram a presença de Sá Deodora. Ligeiro ela chegou arregaçando as mangas, piou os meninos, os fuxicos, mandou arredar os curiosos, lavou as mãos, benzeu-se e entrou casa a dentro em direção à parturiente. De lá, depois de um tempo, gritou rouca: - Tá encravado, mas com ajuda do minino Jesus Cristim, vamo dá um jeito. Ôces, muié, puxam uma reza para Nossa Senhora do Parto. Os home pra não ficá com cara de besta destelham a casa e abram as cancelas pra dar passagem pra criança nascer! Dito e feito, cancelas destrameladas, escancaradas e o telhado já pelo meio destelhado, naquela ladainha de “Virgem Santíssima, virgem antes do parto, virgem no parto e virgem depois do parto tal foi a obra do Espírito Santo que gerou em Vosso ventre o Esplendor do mundo ”, deu para ouvir o grito do moleque nascido. Sá Deodora nem esperou direito os agradecimentos, o Deus lhe pague, lavou os braços e as mãos ensanguentados, mandou dar canja para a parida, os peitos para a criança e sumiu no escuro do quintal. Cresci com medo de Deodora, mas, rapaz, o terror diminuiu, embora o respeito tenha continuado. Já na universidade, nas férias do meio do ano, festa de São Pedro, eu voltei, depois de muito tempo, à fazenda. Cheguei de tardinha, boca seca, açodado, comecei logo a tomar umas e outras à espera da habitual quadrilha e do animado forró. Quadrilha da roça mesmo, sem falsas fantasias e toscas maquiagens. Um sanfoneiro disposto e um animador porreta animam qualquer festa. E lá tinha dois dos bons. Sinfrônio punha os oito foles para gemer até soluçar e os gritos do popular Borreira endoidavam o povo: - Animação, gente, Anavam, Anarriê, Ó o pai da noiva, É mentira! Riliava com todo mundo, menos com Sá Deodora, que ficava apartada, sentada num toco, num canto mais escuro. Quieta, mas com o pesão batendo no ritmo da música. Finada a quadrilha, começou o acalorado forró. Todo mundo no terreiro. Poeirão no ar. Vendo aquela cena, aquele alegrião todo e só Deodora sem dançar, imaginei a vida inteira daquela mulher, só na labuta, sem homem, sem filhos, sem diversão e contentamento. Tomei mais umas duas, assumi coragem e falei para os que estavam do meu lado: - Vou chamar Sá Deodora para dançar! Assustados, dispararam, uníssonos: - Cê tá é doido? De estalo, sem vacilar, atravessei o vivaz aranzel. Parei à frente de Deodora e desfechei: - Vamo dançar, Sá? Ela parou, pensou, deu tempo para eu achar que ia levar uma taba, olhou dentro dos meus olhos e respondeu: - Vamo! Caminhamos para um canto com menos alvoroço, juntei ela devagar, lembrei-me do que tia Marlene tinha ensinado, quando menino, que mulher não gosta de dançar com homem com mão frouxa, firmei então aquele mulherão e caímos no forró. Não tinha intervalo de uma música para outra. A toada era direta. E lá íamos nós cada vez mais ousados, até que numa hora eu juntei a Sá Deodora com ânimo e percebi um negócio estranho. Colei a coxa e vi o trem armado. - Viche Maria! Assustado, recuei e falei: - Deodora? Ela firmou minha mão, apertou meu ombro e ruminou grosso: - Quieto, menino, vamo dançar que isto é meu “delema”. |
Por Ucho Ribeiro - 18/6/2013 11:11:38 |
O OVO DA SERPENTE O povo está nas ruas protestando. O movimento tem tomado corpo e está violento. A Rede Globo já não tem como omitir, fingir que nada está acontecendo. De ontem para hoje, os protestos estão estampados em todas as suas edições jornalísticas. A agitação tende a piorar. A população apóia os protestos, mas condena os quebra-quebras. O governo e as polícias não sabem como controlar todos estes tumultos e rebuliços. É perceptível que a maior parte da mobilização é feita pelas redes sociais. Uns aderem espontaneamente, outros por convite, mas cada um tem o seu motivo, sua indignação e motivação. A paciência do povo chegou ao limite. A população está nas ruas contra os políticos. Contra a impunidade. Contra a desfaçatez. Não é o aumento da passagem de ônibus, não são os abusivos gastos com a Copa. O povo está com saco cheio é com a politicagem. Com a roubalheira. Com a mentira deslavada. Está irritado com as promessas de campanha não cumpridas. Com a demagogia. Não são os miseráveis que estão protestando contra o custo de vida, são pessoas da classe média que não toleram mais tanta dissimulação e falta de vergonha. Os ataques e os protestos são contra as casas legislativas, contra os palácios dos executivos. Onde se empoleira grande parte das aves de rapinas. Triste é ver os políticos entocados, com os rabos entre as pernas, borrando as calças. Sem coragem de mostrar as caras e de defenderem-se. O protesto é um direito e algumas vezes um dever, mas temos que tomar muito cuidado, pois os vândalos, os traficantes, os demagogos, os oportunistas e os que querem ver o circo pegar fogo estão a espreita para tomar a frente das manifestações. |
Por Ucho Ribeiro - 11/6/2013 11:07:15 |
CIPRIANO Cipriano já estava gasto. Era só pigarro. O enfisema tomando conta. Um paieiro atrás do outro, fora o rapé cafungado o dia inteiro. Morava na roça. Passou a vida entretido nos currais e em catiras. Gostava de fazenda, bois, vacas. E de mulas, éguas, cavalos. Muito mais de mulher. Só via gente nas rodas de folia ou quando se desentocava da sede da fazenda atrás de um rabo de saia. Sabedor de sua valentia, do seu estopim curto, raramente saia da fazenda. Evitava tumulto, confusão. Se bebia, qualquer faísca o atiçava, ficava feroz, sanhudo, tomava partido e entregava a boiada para entrar no rolo. Na cidade ia pouco. Pouquíssimo. Uma vez ou outra, ano sim, outro não. Numa dessas vezes, por pretexto de velório, veio a Montes Claros, numa Semana Santa. Era para ser vapt vupt, velar o corpo, enterrar o dito cujo e... pé na estrada de volta. Mas imprevistos ocorreram. Perdeu o carro do leite e ficou impedido de viajar, teve que pousar, a contragosto, na casa dos parentes, na Praça Coronel Ribeiro. A sobrinha, fazendo sala, vendo da varanda uma fila imensa, perguntou: - Tio, o Senhor gosta de cinema? Cipriano, desconfiado, tirou uma baforada e respondeu: - Gosto! D´casca um pra mim! A sobrinha, rindo com discrição, explicou: - Né de comer não, Tio! Tá vendo esta fila imensa aí fora é pra assistir ao filme que está passando no cinema. O Senhor deve ir. Aposto que vai gostar. Insistiu tanto que levou o velho até a bilheteria para comprar os ingressos. Já estava na hora da sessão. Entraram. Como era Semana Santa, a fita em cartaz era “Paixão e Vida de Cristo”. O mesmo filme era passado todo ano e o povo o via como uma obrigação religiosa. Terminada a sessão, Cipriano saiu exultante, maravilhado. Passou a noite falando do que tinha visto, do acontecido. Demorou dormir, estava exaltado. Na manhã seguinte, domingo, acordou cedo, tomou café e ficou ciscando, inquieto. Esperava a sessão de cinema matutina. Logo que abriu a bilheteria às 10 horas, foi o primeiro a comprar o ingresso. Entrou, sentou e ficou à espera do filme. Dez e meia em ponto a fita começou. Passados uns 20 minutos, olha o Cipriano saindo do cinema de volta para casa dos parentes. Nervoso, resmungando. Puto. A sobrinha, sem entender, perguntou: - Que foi, Tio, não gostou de rever o filme? Cipriano, então, disparou: Sabe aquele cabeludinho, aquele barbudinho de ontem, que levou uma sova danada? Que sofreu uma covardia horrorosa? Que bateram, espancaram e pregaram uma coroa de espinho em sua cabeça, sabe? Pois é, cê num acredita, tava ele lá hoje de novo todo siligristido, montado no mesmo jegue, entrando novamente naquela cidadezinha, rindo e balançando os raminhos. Ora, eu fui lá foi pra ver a desforra, pra assistir ele vingar todas as maldades e covardias de ontem. Achei que seus companheiros iam sangrar o bofe de uma meia dúzia para dar uma lição naquela corja. Mas não, tava lá o cabeludim de novo, feliz da vida, balançando raminho, com cara de atoleimado. Aposto que vai tomar outra surra daquela pra deixar de ser besta! |
Por Ucho Ribeiro - 22/5/2013 10:09:32 |
Creio que esta foto foi tirada em um dos casarões da baixada, lá no fundo da Matriz. Onde exatamente? Quando foi batida a chapa? O time da noite estava quase completo: Dico Zuba, Mário Ribeiro, Dácio Cabeludo, Diu Colares, ...., Ruy Braga, Afrânio Temponi, João Galo, ...., ...., Zé Priquitim e Lúcio Bemquerer. Faltam 3, quem são eles? Quem está vivo, vivíssimo, além de Lucio Bemquerer? |
Por Ucho Ribeiro - 9/4/2013 10:02:27 |
Adão e Eva Quando menino eu não entendia algumas coisas. Uma delas era Adão e Eva. Se no início apenas existiam os dois e só depois surgiram Caim e Abel, como é que eles procriaram? Uma vez que Caim matou Abel, restaram pai, filho e Eva, a única fêmea, para que a espécie humana se multiplicasse. Ou Eva teve outros filhos e filhas com Adão, o que nunca foi dito, ou Caim teve que procriar com sua própria mãe, caso contrário a raça humana teria sido extinta. Acasalamentos incestuosos entre irmãos e entre mãe e filho eram e são até hoje abomináveis, inaceitáveis e geneticamente inconvenientes. Eu, criança, não tive a audácia de expressar minhas incertezas aos irmãos do Colégio São José temendo ser um herege. Desconfiava que tal questionamento me condenaria a escrever algumas mil linhas de “Jamais devo questionar os mistérios e a verdade das palavras de Deus”, fora as outras centenas de “Pai Nossos” que eu teria de rezar ajoelhado na capela, como castigo por tamanha blasfêmia. Resultado, deduzi com os meus botões que Darwin é que estava certo e, desde então, aceitei tacitamente a explicação da Teoria Evolucionista. Só mais tarde, viajando em mitologias, li que no Jardim do Éden já existia outra mulher, Lilith, e que ela já estava presente antes mesmo de Eva aparecer. Dizem que por não aceitar submeter-se a Adão foi expulsa do paraíso e transformada em serpente a fim de representar o papel de demônio tentador. Ademais, o Livro do Gênesis enuncia que o primeiro casal teve numerosos filhos. Bem, mas isto são outras histórias. Passaram-se anos, já adulto assisti minha sogra, católica praticante e fervorosa, dar a meu filho uma “Bíblia para Crianças”, toda ilustrada, no intuito de catequizar desde cedo o seu neto. Meu filho Otávio, então com 8 anos, adorou debruçar-se sobre aqueles desenhos e figuras bem explicativos sobre as sagradas escrituras. Passou horas viajando e matutando naquele livrão. Dois dias depois de ter recebido o presente, sua Vó Wanda, ao encontrá-lo, perguntou: “Tavo, meu querido, gostou do livro?” Ele, de supetão, respondeu: “Vovó, gostei, já li tudinho”. Na verdade, ele estava dizendo que “viu” os desenhos e as ilustrações nos mínimos detalhes e não que “leu” toda a Bíblia. “E você entendeu tudo, meu amor?” Otávio, parou, pensou e disse: “Tudinho, tudinho, não, Vovó! O que eu não entendi mesmo foi porque Adão e Eva tinham umbigo?” Ao que dona Wanda respondeu: “Todo mundo tem umbigo meu bem, olha aqui, eu tenho, você tem, sua mãe tem...” Intrigado, Otávio retrucou: “Mas o umbigo não é a cicatriz do cordão umbilical?” |
Por Ucho Ribeiro - 1/4/2013 11:51:44 |
Minha Dr. Santos 2ª parte - Da D. Pedro II a Padre Augusto O miolo do mundo era a Dr. Santos. A cidade acontecia naqueles poucos quarteirões que ligavam as praças Coronel Ribeiro a Dr. Carlos. Tudo: negócios, empréstimos, fuxicos, catiras, elogios e desacatos, sucedia e arrematava naquele corredor de lojas, casas, consultórios, bares, pensões, botecos e mercado. Havia até dois jornais que pulavam miúdo para registrar todo o burburinho que efervescia naquela veia urbana e em suas adjacências. Os passeios sempre foram estreitos para o trança-trança. Como existia pouco movimento de carros, as pessoas utilizavam também a rua pavimentada com paralelepípedos para transitar num tumultuado e calmo ir e vir. Era o umbigo do mundo. De lá, escapando por ruas e becos podia-se encontrar estradas que se esticavam até as distantes Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador. A esquina da D. Pedro II era das mais badaladas. Um fervedouro. Lembro-me das algazarras nas matinês de domingo no Cine Fátima. Ficávamos na fila do ingresso ou transitando, espiando, assuntando. Quando parados, escorávamos um pé nas paredes que ladeavam os passeios, fingindo ser gente grande, maço de minister no bolso, à espera da paquera, da sorte de um flerte relâmpago com a menina dos nossos sonhos. A rapaziada mais nova, de olho na portaria do cinema, trocava revistinhas e gibis, à espreita de um vacilo do comissário. O mais ferrenho era o Gaguinho. Inflexível, barrava sem dó a medrosa molecada, amontoada, a cuspir, a se contorcer, despistando e tomando coragem para enfrentar aqueles três degraus intransponíveis à sala escura. Lá dentro, o útero seguro de diversão garantida – aventuras, romances e sonhos. Eram imagens e sons que nos deliciavam e nos transportavam para além do nosso arraial. Recordo de Marão, radiante, ao conferir o gordo borderô e falando para o nosso tio e contador Otávio Silveira: “Titavo, Titavo, cinema é o melhor negócio do mundo! A gente vende sombra, fantasias, à vista. À vistinha! Dinheiro na frente. E as pessoas saem do cinema, felizes da vida, prenhes de emoções. Só levam sentimentos e imagens na memória. Se não gostarem da fita, falam mal do diretor e dos atores. Não têm a quem reclamar.” Abaixo da Sorveteria e Lanchonete “A Cubana”, descendo a Dr. Santos, no mesmo passeio esquerdo, se apresentava a JB Lançamentos, onde João Batista - Lelas - todo arrumadinho, de passos curtos, lançava moda. Calça boca de sino, cinto com medalhão na altura do umbigo, camisa de manga dobrada, sapato com bico quadrado e sola alta. Na capa. Os preços da roupa, o olho da cara. Proibitivos. Os pais, munhecas, só soltavam o dinheiro do cinema para os filhos. Entre os passantes e circulantes desocupados deparávamos com personagens diversos, como Manoel Quatrocentos. Este não era doido nem tolo, ele que nos fazia de bobo com as suas ferradas. Pequeno, pernas curtas, ombro largo, carregava um inseparável machado. Fazia alguns serviços de lenhador nos quintais das casas. Usava sempre calça e camisa de mangas compridas, coloridas, sempre limpas. Se déssemos assunto, bravatava com desdém que conheceu e se enamorou nas antigas com Sophia Loren, Brigitte Bardot e Grace Kelly. Era lento no andar, mas ligeiro no falar e infalível no bote. Certa vez, junto com outros curiosos, estava eu debaixo da marquise das Lojas Macedo, a assistir a fixação de uma placa de propaganda, quando chegou manso e sorridente o Mané Quatrocentos. De repente, esquivou-se dando um pulo para trás como se a placa estivesse caindo. Ao darmos também um salto de banda, acompanhando o seu reflexo, disparou o seu famoso e certeiro “olalaica!”. Fomos fisgados mais uma vez. A loja de Waldir Macedo(1) era a Ricardo Eletro daqueles tempos, comercializava de tudo, bicicletas, radiolas, discos, ferros de passar, o escambau a quatro. Interessante é que a venda era feita sem pressa, educada e respeitosamente, um negócio de compadres. Não se usava cheques, nem cartões de crédito, tudo era anotado no caderninho do fiado. Em seguida, havia a Casa Eli, sapataria espelhada, moderna, do elegante e há muito pernambucano Zumba, casado com Nívea. A loja era gerenciada pelo educado e zeloso Brivaldo, que conhecia pelo nome todos os clientes, os seus gostos e preferências. No final de uma longa escada, o apartamento onde moravam as meninas ditas como as mais bonitas de Montes Claros: Rita, Eliana e Janice(2). Coladinho no prédio da sapataria era a residência de Levindo Dias e Nenzinha(3), que foi comprada de Antônio de Oliveira Fraga. Na minha lembrança, salvo engano, a casa tinha um muro baixo, com elementos vazados, como uns vazinhos furados, que protegiam um pequeno jardim com grama e algumas roseiras. Junto havia o escritório de advocacia de Arnaldo Benício Dias Ataíde e do saudoso Afonso Brant Maia. Pelas memórias enevoadas, por ali também havia uma casa amarela de Davis. Nos dois cômodos da frente estava o seu escritório de contabilidade e nos demais, ao fundo, as dependências da sua casa. Talvez, em tempos distintos, este lugar tenha sido também o mesmo local de trabalho dos conceituados advogados. Tenho também recordações que registram o consultório dentário do Dr. Sebastião Moreira, casado com a paisagista Josefina Mendonça(4). Marcante era o equipado Foto Pinto, de José Figueiredo Pinto(5), especialista nos álbuns de casamento e de família. Um verdadeiro estúdio. Exímio maquiador fotográfico, com as mãos e seus lápis afiadíssimos corrigia as feiúras do povo. Era o photoshop da época. Onde andará o valioso arquivo de fotografias e negativos do Seu Pinto, registro da nossa longínqua Montes Claros que apaga a cada dia das nossas memórias? Talvez, o ex-combatente Izar, que comprou o Foto Pinto e o manteve no mesmo lugar por algum tempo tenha este arquivo. O pessoal do Instituto Histórico de Montes Claros deveria fazer uma pesquisa para localizar essas fotos. Outro fotografo das antigas, bom de foco e detentor de um belo e copioso arquivo é o José Gonçalves de Oliveira, o famoso Zé Cabecete. Ele teve loja na rua Simeão Ribeiro e por muito tempo na rua Dom Pedro II, em frente ao Hotel Monterey. Pesquisadores de plantão, Seu José é pai da bela Luzia Magna e de Fabio Marçal, fotógrafo oficial da prefeitura. Portanto, saiam em busca deles e de suas relíquias fotográficas. Tampouco se esqueçam de pesquisar os arquivos do Foto Facela, que alguns dizem ter funcionado por algum tempo no prédio de Zumba na Dr. Santos. Acima do Foto Pinto, no segundo andar do prédio, era o NAE – Núcleo de Assistência Empresarial, que tinha como diretor Fábio Borém Pimenta. Luiz Tadeu Leite, radialista, recém-formado em direito, cheio de ideais e sonhos, era o apressado e articulado relações públicas(6). No verão de 1975, durante as férias, fui estagiário daquele acalorado escritório de economia e planejamento. Ficava a ler projetos e estudos econômicos da região e de Montes Claros. Vivíamos o milagre econômico e a época das verbas fáceis da Sudene. Mas eu gostava mesmo era da hora do café da tarde, pão quentinho da Padaria Santo Antônio, manteiguinha Alvorada, leite, café, muitas vezes queijo e a prosa animada, salpicada de política e futebol. Alguns amigos me alertaram da existência, naquele passeio esquerdo, da Farmácia Real, do famoso e agitado Zé Costa(7). Rememoro, ademais, da Casa Coelho, de fachada azul, especializada em móveis, de Gabriel Cohen, que tinha o Vicente Rocha como gerente. Viva igualmente na minha memória era a Jóias Palladium, onde uma moça muito bonita, me fazia passar devagar pelo passeio e dar uma olhadela rápida e acanhada, a fim de filar alguma formosura. Ela causava inveja às jóias. Salvador, pai de Hebert Pezão, chegou a trabalhar lá. A loja ficava bem em frente ao Jornal de Montes Claros. Passeio abaixo estava a padaria Santo Antônio, da família Souto, produtora da gostosura do pão alemão. Lá, comi meu primeiro pudim, depois de uma visita ao Jornal de Montes Claros. Folclórico era a figura de Adão Padeiro na sua charrete ou em sua bicicleta cargueira. Saia pela cidade, de casa em casa, a buzinar e a entregar o famoso pão ainda quentinho. A meninada encolerizava-o ao gritar: - “Viií Adão”. Grudado à padaria, havia um beco fino de uns 10 ou mais metros, com paredes descascadas, reboco à mostra, dando passagem para um pequeno largo, com piso de brita, onde funcionava uma fabriqueta de carimbos e uma gráfica já meio ultrapassada, que produzia basicamente volantes e panfletos. Creio que lá, antes, ficava o depósito de lenha que alimentava os fornos da panificadora. Barulhenta era a Loja Americana, de Dizinho Bessa, casado com Anilda, professora de português do Colégio Agrícola(8). Vendia de tudo, vitrolas, radiolas, rádios, discos fogões e geladeiras. Na esquina, no final do quarteirão, chegando à Padre Augusto, pousava o prédio do Banco de Minas Gerais - BMG. No segundo andar, residia o gerente João Damásio e sua família. Posteriormente, uma nova agência do Banco Real, antigo Banco da Lavoura, instalou-se naquele ponto, com toda a sua trupe(9). De lá, temos causos prá mais de metro, só falta o José Aluízio Pinto por no papel. Findo o quarteirão, do outro lado da rua, espelhava outro Banco, o Comércio e Indústria, do gerente Armando Costa. Eu conhecia mesmo era a família do sub-gerente, Calixto, casado com Tiana, pais de Estefânia e do encapetado Bardo. Todos, juntamente com o menino Zezinho, habitavam o apartamento localizado no segundo andar. À noite, a curta escadaria do banco, de uns cinco degraus, se enchia de moleques pré-adolescentes. Ficávamos a jogar conversa fora, a fumar, mascar chicletes, arreliar uns aos outros e a tramar algum mal feito. Os mais velhos da gang eram Nei e Breno Aranha. Este já era dark àquela época. Os mais novos, Rayu Christoff e Bardo, não menos traquinos e imaginativos. Subindo de volta a rua, o próximo imóvel, onde hoje há um portão de ferro, era a Agência Chevrolet, de Lourenço Santana(10), que residia no apartamento no piso de cima. Ao fundo da revendedora havia uma enorme oficina com saída para a Padre Augusto(11). Onde atualmente está a Caixa Econômica Federal fora uma área ocupada por uma vila, um cartório e o Jornal de Montes Claros. Passeio arriba, se estabelecia a vila onde moravam Alberto Laborne Vale, pai de Cléa Márcia, casada com Haroldo Filpi, e Altamiro Guimarães, pai de Alba, casada com Humberto Souza Lima. A família Vale era dona do cartório. Parece-me que lá também funcionou uma antiga copiadora. Bem, mas o que me vem mais forte à lembrança é “O Jornal Monsclaro di hooooje” que era aconchegado à vila. O jornal era um pouco recuado e a vila se prolongava. Lembro-me de uma vez que eu, menino, estava com Marão a comprar o jornal quentinho, recém rodado, quando ele mostrou-me o canto de Tuia e mais abaixo a projeção da vila num lusco-fusco cenário da lua cheia fazendo companhia à torre da Catedral. Sem entender sua admiração e demora, perguntei: “O que é, Pai?” Ele disse: “Poesia, meu filho!” A entrada do jornal não dava para a Dr. Santos, era lateral. Antes havia o escritório de advocacia de Orestes Barbosa(12). Lembro-me dele toldado pela perfumada fumaça do seu cachimbo. Sinto o doce cheiro achocolatado. A recepção do jornal era uma sala com pintura envelhecida, piso de tacos surrados, uma mesinha, poucas cadeiras, máquina de escrever de teclas gastas. Não me recordo de quadros nem de ninguém especificamente, a não ser do meu sempre sério padrinho Oswaldo Antunes. A redação e a gráfica ficavam do lado oposto. Trago na memória o barulho das máquinas e da montagem dos textos feita com o ajuntamento dos ferrinhos de chumbo organizados em dezenas de caixas quadradas de letrinhas. Ouço o sonoro barulho deles, quando agrupados ou descartados pelo homem que vestia as palavras. O curioso é que ele, Meira, escrevia as frases de trás pra frente. Ao lado do jornal, num recuado, fora do alpendre, ficava uma casinha de madeira cheia de tralhas, papéis e panos. Tuia morava ali. Segundo André Antunes, filho do dono e meu colega do São José, os funcionários do jornal enchiam as paredes de madeira de fotos de mulheres bonitas em poses sensuais para época – páginas retiradas das revistas Manchete e Cruzeiro. Uma curiosidade e mistério para nós meninos. Tuia baseava-se ali mesmo no Jornal, mas às vezes andava pela Dr. Santos, lento, curvado, mascando fumo, com uma chupeta de bebê pendurada ao pescoço. Comovia-me a história de que ele era um ex-escravo. Se falasse “Tuia é bonzinho” ele sorria, se dissesse “Tuia é feio” ele levantava a bengala como fosse bater em alguém. Quando pequenos, lá em casa, deixamos de chupar bico devido ao infalível argumento de mamãe: “Tuia pegou seu bico, só você indo lá pedir para ele”. E o medo? “O Mais Lido” tratava de assuntos basicamente locais e regionais. Lutava veementemente pelo asfaltamento da estrada para BH, pela melhoria da energia elétrica de nossa cidade, pela industrialização da nossa região. Era um jornal atento, severo, combativo em defesa dos interesses de Montes Claros e do norte de Minas. Sob a maestria de Waldir Sena Batista, foi a escola de grandes jornalistas, que obtiveram êxito e respeito nas redações dos grandes jornais brasileiros. Para vocês terem uma idéia, entre 1960 e 1965, o JMC tinha os seguintes “focas aprendizes”: Robson Costa, Berguinho Spíndola, Flávio e Nilo Pinto, Lazinho Pimenta e Paulinho Narciso. Parece um escrete, ou não? Na grata e finda lembrança, resta a imagem de inocentes meninos a gritarem pelas ruas o eterno “Monsclaro di hooooje.” Acima do Jornal, do mesmo lado, onde é hoje a My House, havia um sobrado, um pequeno palacete para a época, a casa de Alpheu Gonçalves de Quadros e de Helena Prates(13). Dr. Alpheu, entre eleições e nomeações, foi três vezes escolhido prefeito de nossa terra, em 1942, 1947 e 1955. Depois, foi vice-prefeito de Toninho Rebello entre 1967 a 1970. No mesmo passeio, subindo, havia a garagem de GG que fazia parte do grande terreno da casa de Fabiano Peres, conhecido por Cica Peres(14). Este imóvel foi subdividido em diversas lojas. Tinha o folclórico e carnavalesco Geraldino Coelho que trouxe a primeira boutique para a cidade. Depois, a Ótica Lessa do magrelo e falante Edmilson e a Loja de Walcy Macedo, pai de Fernando Peito de Aço, que vendia bicicletas. Mais acima a Andréa Calçados de Ruy Pinto, culto e bom de papo. Leitor diário do Jornal do Brasil e atualizadíssimo com o que ocorria em Montes Claros e no mundo. Ruy faz uma imensa falta, principalmente nos papos do Café Galo. Finalmente, a casa de esquina na Dom Pedro II, de Juca Froés, casado com Conceição Lima, irmã de Gregória de Seu Dé. Seu Juca é pai de Marina, que casou com Wandaik Wanderley. Meus amigos, triste é passar pelo centro de Montes Claros e perceber que a nossa Rua Dr. Santos existe apenas nas nossas efêmeras e finadas memórias. Ao cabo, minha gratidão às assistentes e essenciais memórias de André Antunes, Bartola, Carlão Meira, Haroldo Tourinho, Fabio Marçal, Luiza Magna, José Gonçalves de Oliveira, Nilo Pinto, Robson de Quadros Figueiredo e Tadeu Leite. (1) Pai de Waldizinho, Fernando, Flaucy, Flávio, Fábio, Gera, Cláudio e Áurea. (2) Zezinho, Toninho e Dão, meninos, completavam a família. (3) Pais de Arnaldo, Soninha, Chicão, Aldinha, Geralda e César (Bulei). (4) Pais de Darlan, Olavo, Aline, Adriano e Robledo, todos residentes na Avenida Francisco Sá. (5) Casado com Kita Sá, pai da colunista social Márcia Sá e de Fernando Kita. (6) Os outros dedicados funcionários do NAE eram: Armênio Veloso, Rocha, Jorge Ferreira, Gilson Coimbra, Carlos Alberto Maia e Adão. (7) Casado com Dona Bernadete, pai de Luiz Fernando Costa, de Jara, Soraia e Kátia. (8) Pais de Waldir, Patrícia e Margareth Bessa. (9) Funcionários do Banco Real: Boyzinho, Bichara, José Aluízio Pinto, José Marques Caldeira, José Messias Castro Brito, Odair Dangelis, Dario Avelino Pereira, Alvimar e Cesário Rocha. (10) Casado com Zelita, pai de Osmane (Binha) e Lamberto Oliveira Santana. (11) O chefe da oficina era Dida; Pedro Aragão, o gerente da casa de peças e Barlolomeu Lincoln, o popular Bartola, era o office boy. (12) Casado com Iede e pai de Ruy, Toninho e Maria Helena. (13) Pais de Sônia e Suzana Quadros. (14) Casado com Helena Froés, pai de Fabiano, Omar, Sônia, Teresinha de Bento Campos e outros. |
Por Ucho Ribeiro - 6/3/2013 10:25:20 |
Depois de amanhã é o Dia Internacional das Mulheres - Dia apropriado para desvelar o machismo montesclarense. Até hoje, entra câmara, sai câmara, elegem-se novos vereadores e nenhum propõe a mudança dos nomes de dois logradouros de Montes Claros: Viúva Coronel Francisco Ribeiro e Viúva Paculdino. Uma rua no centro, ao lado do Banco do Brasil e uma avenida no Jaraguá II. Trata-se de homenagens a duas dignas e honradas senhoras. A viúva do Coronel Francisco Ribeiro chamava-se Dona Luísa Magalhães Ribeiro e foi a principal doadora e fundadora do Orfanato Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. A viúva Paculdino chamava-se Dona Esther Alkmim Ferreira Paculdino e pertencia a uma das mais ilustres famílias de Bocaíuva. Entretanto, a perpetuação dos atuais nomes estampa a nossa abominável e vergonhosa macheza. Reitero o pedido para que algum vereador ou vereadora apresente um projeto na câmara para a substituição dos nomes dos maridos pelos destas virtuosas e merecedoras mulheres. A propósito, dois lindos nomes: Luísa e Esther. |
Por Ucho Ribeiro - 18/2/2013 11:07:25 |
Dias desses, conversando com um senhor sobre coisas da vida, fiquei encantado com tantas vivências e conhecimentos. Insensato, acabei perguntando: - Quantos anos o senhor tem? De pronto, respondeu: - Uns dez anos! - Dez anos? Arguí. Ele, então, retrucou: - Sim dez. Eu já tive 65, muito bem vividos, curtidos, findados. Agora, provavelmente só terei mais dez. Dez com saúde, tesão e disposição para vida. Pretendo vivê-los intensamente. O resto, o restolho, se vier, se eu tiver, será arrastado, suportável. Um perrengue. Tosse e dor. E eu, quantos anos tenho? |
Por Ucho Ribeiro - 6/2/2013 09:42:15 |
Minha Dr. Santos 1ª Parte – Da D. João Pimenta a D. Pedro II. Nas brumas dos meus mais profundos relembramentos, recordo difusamente de uma bolinha percorrendo um pequeno aclive de um alpendre. Minha visão esconsa se delineava pela posição da minha cara postada no arejado e liso chão. Com o arco do meu braço, eu lançava uma bolinha de gude pelo cimento queimado e a assistia percorrer uma ligeira curva até retornar mansa à outra mão. O movimento repetido, silencioso, ecoa-me, até hoje, quietude e segurança. Posso até confundi-lo com um sonho longínquo, mas sempre foi a minha primeira lembrança. Depois, misturadamente, lembro-me de tantas outras infantes coisas, gentes, lugares, cantos. Mas fora do seio familiar, o que ficou forte foi a casa da minha avó. Lá tinha morangos nos canteiros, histórias, um pé de manga ubá e forno de biscoito. Encantos e desejos dos netos. Viva é a lembrança da minha mão, balizada pela da vovó, a alinhavar as primeiras letras com o bico de confeiteiro. O biscoito espremido desenhava palavras, nomes, coisas. Mágica e ofício da Mestra Fininha. Na casa da Vovó, o acesso permitido à rua se limitava ao resumido passeio da Dom João Pimenta até a barbearia de Osmar, Bigode e Caxangá, que ocupava o cômodo geminado na esquina com a Rua Dr. Santos. O outro era o consultório do meu pai. Na verdade, duas salas, uma de espera, bastante simples, e a outra de consulta com móveis espartanos. Na parede uma cópia da clássica pintura de Samuel Luke Fildes, que registrava uma criança doente assistida por um médico e o desespero da mãe, debruçada sobre a mesa, consolada pelo pai. Das janelas, da mureta do jardim e pelo baixo portão de Dona Fininha, eu via a subida das pias senhoras com terço à procura de missa e a descida do Sr. Eupídeo da Rocha, de chapéu, todo circunspecto, com Irene de longa saia rosa, a segui-lo. De quando em vez, Tuia passava curvado com o bastão e seu bico enrolado, e resmungava baixinho: “Tuia é bonzinho, Tuia é bonzinho”. Volta e meia, surgia o fardado Leonel, imenso, reluzente, com sua boneca e banda despejando alegria pela rua. Fazia reclames das Casas Futurista e Pernambucanas num megafone de lata. Lembro-me daquela montanha vermelha e azul, com um turbante florido na cabeça, peitos enormes, desmedidos brincos de argolas, rodopiando os braços mambembes ao som da banda de João Tintureiro. Ao chegar perto da gente, se curvava, baixando sua gigantesca cabeça, e se contorcia de novo num trezentos e sessenta. Eu não sabia se corria, chorava ou aplaudia. Ficava extasiado, estarrecido. Aquela bonecona imensa tinha os pezinhos pequenos, desproporcionais, metidos num conga surrado. Na barriga dela, na altura do umbigo, entre os botões da blusa, havia uma telinha preta, que, hoje sei, era por onde o dono do conga espiava. A barbearia era movimentada. Tinha 3 portas, uma para Dom João Pimenta e as outras duas para a Dr. Santos, sendo que uma delas permanecia meio fechada, com a parte de baixo fixa e a banda de cima escancarada. Havia cadeiras, um banco com jornais e revistas e um outro para engraxate. Na parede, destacavam-se os espelhos em frente às poltronas dos barbeiros e dois pequenos quadros. Um da Transamazônica, com a imensidão verde riscada por uma estrada alaranjada e o outro, em contraste, exibia uma paisagem campestre européia com montanhas nevadas no horizonte. O som ambiente, além do vozerio dos clientes, provinha do amolar das navalhas “Corneta” e “Solinger” no afiador manufaturado de raiz de tamboril. A barbearia me inseriu no mundo. Sentado nas suas cadeiras, à procura dos semanais desenhos do Amigo da Onça na revista O Cruzeiro, ficava atento aos fuxicos e burburinhos de Moc. Nas longas esperas dos repetidos cortes do meu minúsculo topete alemão, assistia e ouvia a cidade passar e conversar, ao aroma de água Velva. Assuntava palestras e bravatas de gente grande, comerciantes e fazendeiros, via o passar discreto do povo simples e a euforia de Maria Babona, Requeijão, João Doido, Galinheiro e Requebra-Que-Eu-Te-Dô-Um-Doce. Betão Ronca-Ferro e Lena Doida vieram depois. Na minha vez, Bigode, para lhe dar altura para o corte, empoleirava-me na tábua que colocava no apoio dos braços da cadeira de barbeiro, e eu, do alto, de camarote, assistia o desfilar das pessoas, feirantes e populares e dos poucos carros que desciam a Dr. Santos. Privilegiadamente, dali, testemunhei as tropas carregadas, descendo para o antigo mercado municipal, os feirantes cobertos de fieiras de galinhas e os carrinhos de mão com hortaliças. Vi e ouvi as carroças de leite da cooperativa tocarem o insistente sino a convocar os compradores de leite com os seus alvos litros e vasilhas, presenciei o troca-troca dos cartazes dos cinemas, a chatura dos cambistas de loteria e as cornetadas dos vendedores de quebra-queixo. Mais crescido, sentado sem a tábua, observei a chegada das primeiras kombis lotação e o asfaltamento dos paralelepípedos. Senti, então, pela primeira vez, o cheiro forte do piche preto. Abaixo da barbearia, logo depois do consultório de meu pai, havia “O Guarani”, onde se vendiam as vitaminas de abacate, de mamão e os pastéis de Vadiolando. Em frente, a pensão e o armazém do seu pai, onde viviam também, Cori e Dedé, todos de Itapetinga. Segundo Marão, Vadim, jeitoso, gostava de uma catira – comprava e vendia tudo, de revólveres a bezerros. A morada seguinte era de Jason Teixeira, onde nasceram Lucília e Adriano, depois vendida para o Crisantino Borém. Lá, vi crescer uma ninhada de louros e ruivos meninos e meninas, todos sob o carinho de Dona Celme, depois sob o afago e a tutela de Tetese. No mesmo passeio, descendo, morava Seu Dé e Dona Gregória, pais de Nonô, Hélio, Jason, Didi e Tone, donos da Casa 5 Irmãos, e de Terezinha, Zoca, Geralda e Dezinho. Todos finados. Quem não se recorda da bem cuidada baratinha Volks do Seu Didi? O lar subsequente era de Seu Meira, esposo de Dona Terezinha, progenitores de Carlão, Lú, Regina e do açodado Ernani. Foi ele o primeiro menino que vi casar. Na minha infantilidade e inexperiência, rezei por Nane e para sua família recém constituída, pois não sabia que conselhos dar para aquele desatino, aquela modernidade. O domicílio fazia muro com a grande residência de João Valle Maurício. Esta tinha janelões altos, abertos para a rua mais movimentada da cidade. Lá, talvez pelo meu pequeno tamanho, o pé direito era imenso, colossal. Da ampla sala saía um corredor que distribuía quartos e cômodos. As paredes eram cobertas por quadros e apetrechos antigos, históricos. Tudo muito limpo e brilhoso, cristais e mil objetos que nós, meninos, não podíamos encostar, nem tocar. O jardim lateral da casa, com roseiras coradas e brancas, dava passagem para o quintal que tinha uma espaçosa pista de patins, local de exibição dos jovens na tentativa de impressionar as mocinhas de Dona Milene: Mânia, Nairzinha e Vitória. Liliane não existia ou era pituxinha. Ali aconteciam o melhor São João e as mais fartas festas. Colada na moradia de Dr. Maurício, se instalou por um tempo o Diário de Montes Claros, dos honrados, sérios e comprometidos jornalistas Décio Gonçalves de Queiroz e Julio Melo Franco, que mais tarde pulou para o outro passeio da Dr. Santos. Com a mudança da gráfica o ponto ficou um bom tempo fechado, mas depois foi instalada ali a pensão da Dona Sônia. A habitação seguinte era do Loyola, médico, professor, pai de Roberto, Eunice e Maria Helena. Fefeu e Jane nasceram bem depois. Neste mesmo passeio, o esplendor da mansão de Domingos Braga estalava, ainda mais com o Cadilac Vermelho, rabo de peixe, na garagem. O homem era famoso, tinha até revolver todinho de ouro. Pelos fuxicos que ouvi nos anteontens, o palácio teria sido comprado à vista por Luís de Paula. Quase chegando na Dom Pedro II, recordo tristemente da Prontoclínica São Lucas, onde, em 71, rezamos imploradamente para que Telmo Machado não morresse. Foi a minha primeira sentida morte. Dói até hoje. Ao lado da Prontoclínica, na esquina, estava a farta, variada e moderna “A Cubana”, ponto da rapaziada fumar cigarros Minister, Capri e tomar Cuba Libre. Vendia até as raras e caríssimas maçãs niqueladas embrulhadas em papeis purpúreos, cheirosos, que só nos eram oferecidas quando estávamos doentes e sem apetite. No andar de cima do edifício moravam os Deusdarás e o casal Edílson Brandão e Aparecida, pais dos pequeninos Junior, Evana, Simone, Raquel e Elbinha. Quina oposta, em uma construção mais alta, com pequena escada na entrada, residiam Dona Joaninha Colares e seus filhos: Geraldo, Teresinha, Rosarinha, Cassimiro, João Ricardo, Ray e Fernandinho. Acima, no mesmo passeio, viviam Lezinho Lafetá, mulher, filhos e filhas. Do lado, havia um corredor utilizado para esvaziar as sessões do seu Cine Fátima. Mais tarde, veio a ser um fliperama e na sobreloja uma boate. Em seguida, uma casa da Tia de Ernani Meira, que depois foi de Carlos Leite e Felicidade Patrocínio. Parelho, havia um domicílio que foi antiga habitação de Moreira César e depois de Luis de Paula. Posteriormente, escritório da FUNM e, mais recentemente, depósito/escritório do mesmo Luis. Grudado era o ponto para onde o Diário saltara. Não podia me esquecer também da Pensão de Dona Docha, residência de Janete, Ivonete e Clara e, posteriormente de Dona Zélia Peres, mãe de Gilson Capeta (hoje, Gilson de Jesus), da anja Railda e de Robertinho. Ao fundo, com um corredor de entrada, um galpão abrigava o Supermercado da Cobal e a Gráfica Orion de Laerte e Mauziur, irmãos de Nice David. Os mais antigos dizem que o salão que abrigava o supermercado fora antes o restaurante Mangueira, palco de várias festas promovidas pelo colunista Lazinho Pimenta, como suas noites do Suéter. Não me esqueço da Pensão de Dona Duca Guimarães, mãe de Edith, Judith e de Zenith dentista. Mais tarde, a pensão transformou-se no Prontocor, fundado por Mauricinho. Logo após, passeio acima, um corredor profundo com duas residências dos filhos de Levi Peres; coladinho ao corredor havia a pensão Montes Claros, do Seu Son, pai de Glória e de João Beatles. Arriba, a Vidraçaria Carioca de Rosenthal, pai de Dawidson Caldeira e, passo adiante, a Lavanderia Estrela, de Luis. Pronto. Salvo alguma falha da memória, retorno-me ao já mencionado ponto de Vadim, encerrando as casas da rua Dr. Santos naquele quarteirão. Não me recordo de trança-trança de carros e motos. Só me lembro é de uma Montes Claros calma, sossegada, de um povo sem pressa, com todo tempo do mundo para um dedo de prosa. Que saudade! Infância cada um tem uma. Estas recordações fazem parte da minha. Bem, eu não poderia deixar de agradecer os bons papos e o auxílio das refinadas memórias de Ernane Meira, Nilo Pinto, Haroldo Tourinho, Roberto Machado, Magna e Fábio Marçal. |
Por Ucho Ribeiro - 23/1/2013 11:01:45 |
Enchente Há uns 20 ou mais anos, em noite de janeiro, uma tromba-dàgua inundou o bairro Todos os Santos. Disseram, à época, que o reservatório do Pai João havia rompido, não aguentara o peso da chuva. A água, ladeira abaixo, atravessou os Bois até pousar no miolo do bairro, formado pelo baixio das ruas dos santos Mateus, Marcos, Antônio, João e Paulo, perpendiculares aos logradouros das santas Bernadete, Lúcia, Maria e Luzia. Ficou tudo encharcado. Uma enorme lagoa urbana. O lendário Dr. João Vale Maurício, morador de esquina da São João com Santa Lúcia, contava que ao acordar de madrugada e descer da cama para ir ao banheiro, assustou-se ao molhar o meio das canelas. Suas sandalinhas boiavam serelepes na piscina em que transformara a sua suíte. Alarmado com o volume e com a constância que a água subia, despertou aos gritos toda a família para baterem em retirada. Nas primeiras horas da manhã, ele, a patroa, as filhas e a cozinheira, de pijama e camisolas, transpuseram o aguaceiro até a garagem a procura de um escape a motor, mas o carro já estava cercado e embebido de água. No desespero para a fuga telefonou para o irmão e pescador Joválcio, que morava dois quarteirões acima, na São Pedro: - Mano, Mano, só você vindo aqui nos acudir. A água já está no meu umbigo. Pelo amor de Deus, pegue seu barco e venha nos socorrer antes que seja tarde. Dr. Joválcio, mais que depressa, com ajuda de vizinhos apijamados, arrastou a carreta com o barco pela rua Santa Lúcia até uns poucos metros depois da São Paulo. A partir dali, tudo era água trêmula e turva. No seco, a beira do recente lago, amontoavam-se moradores assombrados, bem como curiosos admirados com o tamanho charco. O irmão pronto, com a mesma empolgação de quando foi campeão de natação, desceu o barco da carreta, colocou-o na água e ligou o motor de popa. Olhou à sua volta, viu uma senhora despenteada com um bebê de meses nos braços e querendo ajudar perguntou: - Ô dona, a senhora quer ir? A mulher, sem vacilar, assentiu com a cabeça e brucutu dentro do barco. Sentou-se e agasalhou a criança. Dr. Joválcio, todo vaidoso, embicou a embarcação pela Santa Lúcia. No quarteirão abaixo, na esquina da São João, deparou com seu irmãozinho Maurício sacudindo os braços com água pelo peito e a família toda empoleirada nas grades da casa. Joválcio, com pressa, disparou: - Aguenta mais um pouquinho Mano, que só vou despachar esta senhora e já volto! Aí, voltando-se para a mulher, perguntou: - Ô Dona, a senhora vai pra onde? A distinta deu uma pausa, emudeceu e depois destramelou: - Uê, eu pensei que a gente ia era passear. |
Por Ucho Ribeiro - 4/1/2013 16:24:41 |
João Galo, João Alegria. João todo amigo. João que recebia, que adulava, que ria. Que não deixava ninguém de fora. Que dava pão e abrigo. Quintaleiro de toda hora. Que juntava e reunia. Gargalhava alto e se divertia. Generoso, dadivoso com todos ao seu redor. Escapuliu como um passarim a procura do seu bando. Lá em cima, o contentamento está demais. Há fila para abraçá-lo e paciência eterna para ouvir os novos causos da terrinha. João, meu padrinho. |
Por Ucho Ribeiro - 3/1/2013 09:33:44 |
EDUARDO LIMA Goya sempre foi o pioneiro. O atirado. O aventurado. O primeiro a pegar a barca e conclamar todos a fugir da mesmice. Nos sessenta, Colégio São José, era o furacão, a alegria, o catalizador da meninada para o novo, para as mudanças que aconteciam no mundo. Tomava frente do grêmio escolar, mobilizava os alunos, nos chacoalhava com ideias, sonhos e fantasias. Era o organizador e participante-mor das quadrilhas juninas, dos jograis, e peças de teatro. Nunca foi plateia nem coadjuvante, sempre o protagonista. Eterno enamorado da vida e das meninas. Paixão transbordante que encantava e maravilhava todos. Garoto foi para a ZYD7 e comandou um programa de variedades, divertido, múltiplo, com um papo novo, udigrudi, tropicálico. A garotada ficava ligada, atenta aos toques e apliques. Organizava festivais e gincanas. Agitava a cidade. Montes Claros ficou pequena, mudou-se para BH e lá irradiou sua alegria e entusiasmo pelas alterosas. Casou-se, teve filhos, candidatou-se a deputado, casou de novo, teve mais filhos, elegeu para vereador, continuou casando e tendo filhos, foi secretário de esportes, escreveu livros, namorou seguidamente e apaixonadamente procriou mais e mais, sem nunca perder a ternura, a alegria e a disposição para a vida. Por onde andou encantou até se encantar de vez. Ficamos nós a ter saudades... Muita, muita mesmo! Obrigado, Goiabão! Valeu Mermão! Já dizia Rosa: “Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total.” |
Por Ucho Ribeiro - 24/12/2012 08:50:38 |
TREMOR E TEMOR O terremoto nos tornou conhecidos. Agora o Brasil inteiro, quiçá o mundo, sabe que aqui nos cafundós de Montes Claros a terra treme cada dia mais forte. Volta e meia aparecemos no Jornal Nacional: o povo correndo com medo, varandas rachando, desabando e os conterrâneos, os turistas e os viajantes fugindo dos prédios, dormindo nas calçadas e dentro dos carros. Uns se borram, outros fanfarreiam. Todos tem uma história pra contar. Só quem não se manifesta de forma clara e precisa são as autoridades constituídas e os institutos sismológicos nacionais. Até agora nenhum pesquisador, um renomado cientista, um geólogo especialista ou um observatório idôneo, embasado em fatos e pesquisas circunspectas, deu uma explicação cristalina, pontual e exata. Resta-nos o achismo, o chute no escuro, o palpite infeliz. Desde os primeiros tremores, as explicações são as mais diversas: uns dizem que os abalos sísmicos são devido a uma falha geológica situada entre o Bairro Vila Atlântica e a Serra do Mel; outros acusam as detonações realizadas pelas pedreiras; vários afiançam que são acomodações naturais de camadas no subsolo a centenas de metros de profundidade; uns poucos, mais esotéricos, defendem as válvulas de ressonância do globo terrestre; e alguns técnicos, com papo de especialistas escolados, culpam a super exploração das águas subterrâneas numa zona cárstica, bem como a pressão hidrodinâmica com aumento da lixiviação na litosfera e outras pressões. Ultimamente, foram proclamadas até visões apoteóticas de riscos luminosos no céu na hora do derradeiro grande estrondo e tremor. Os reais convocados a dar explicações são unânimes em apenas duas assertivas: os tremores irão continuar e teremos que nos acostumar com eles. Ou seja: se virem! Nós, montesclarences, leigos e mortais, ficamos ao deus-dará a espera do próximo tremor. Na torcida que seja brando e passageiro. Por outro lado, o que estarão pensando os grandes empresários, potenciais investidores? Será que arriscarão seu money numa terra sujeita a abalos sísmicos e a apagões? Alguém empatará seu capital em construções, edificações, barragens, prédios, indústrias numa terra que sacoleja cada dia mais forte e mais frequente? Imagine se algum grupo farmacêutico, químico, petroquímico, laboratorial, terá coragem de montar suas instalações em Montes Claros. Um tremor mais forte pode desbancar prateleiras, causar um apagão e dar prejuízos monumentais. Pode até mesmo atrasar pesquisas que vinham sendo desenvolvidas há anos. E uma nova barragem, uma nova usina na região, será que o empreendedor, público ou privado, não terá que elaborar sofisticadas pesquisas levando em consideração os abalos? Qual serão o preço e a complexidade destas pesquisas? Quanto elas impactarão financeiramente as obras? As promissoras usinas eólicas, então, que necessitam de precisão e firmeza, aguentariam um solavanco? E no futuro, será que os gasodutos, oleodutos, hoje projetados, poderão passar por nossa cidade? Os seus combustíveis poderão ser armazenados aqui em Terremoc? Imaginem uma rachadura na Usina Biodiesel de Montes Claros, localizada pertinho ou bem em cima da falha geológica existente nas proximidades do bairro Santos Reis e da Vila Atlântica. Presentemente, depois da assiduidade dos tremores, a Petrobrás montaria ou ampliaria a sua usina naquele local? As atuais distribuidoras de petróleo (Shell, Esso, Ipiranga, Texaco...) arriscariam armazenar aqui os seus produtos? E a Novo Nordisk, Vallé, Nestlé, com os seus laboratórios e centros de estudos estão tranquilas em ampliar seus parques industriais e de pesquisas em Montes Claros? Decidido investir pesado no norte de Minas com base na demanda do mercado e nas facilidades logísticas da região, um empresário escolheria de estalo a nossa terrinha ou sondaria Janaúba, Bocaiuva, Pirapora para montar o seu empreendimento. Depois de ver as cenas que já passaram na televisão, um pai estaria seguro em aconselhar ou mandar seu filho estudar em Montes Claros? A boca pequena fala-se que a Alpargatas atrasou quatro meses o seu projeto para rever as possíveis consequências dos tremores no seu processo de produção. Quais são as preocupações e providências da nova unidade da Case New Holland? É sabido que há filas nas imobiliárias para devolver, trocar e vender apartamentos. A procura agora é por casa, por imóveis de um só piso. A Prefeitura, as entidades de classes, a Associação Comercial e Industrial, a Câmara de Diretores Lojistas, têm que providenciar urgentemente um estudo técnico, qualificado, fundamentado, idôneo para mostrar e tranquilizar os atuais e pretensos investidores em Montes Claros. Cada vez que a terra treme há um enxotamento de novos investimentos. Cada tremor é um temor. Acordai Montes Claros para que possamos dormir em paz! |
Por Ucho Ribeiro - 10/12/2012 15:23:35 |
Carta em que Darcy Ribeiro, então senador pelo Rio, pede ao amigo Oscar Niemeyer um projeto seu para M. Claros, então governada por seu irmão Mário Ribeiro. O propósito era localizá-lo no Parque Municipal. Rio de Janeiro, 9 de setembro de 1991 Oscar, meu irmão, Sai de Montes Claros há 50 anos, mas meu coração ficou lá pulsando. Quando sonho com eu menino a cidadezinha me ressurge, com o seu frescor de ilha de arvoredo no meio do carrascal Norte-mineiro. As saudades que tenho são saudades de mim, lá, naqueles idos. Montes Claros tinha então umas 3 mil almas e corpos que comiam, todos juntos, nos três dias das festas de agosto. Todos também cantavam lãnguidas serenatas nas noites de lua cheia, no alto dos morrinhos, que era um morrinho à toa, mas de onde se via a cidadeza toda, ali, aos pés, e a imensidão do céu prateado. Hoje, minha cidade se chama MOC e tem quase 300 mil habitantes, coitada. Da última vez que fui lá, fechava os olhos para ver minha Montes Claros, que, agora, só existe no meu peito. Meu irmão está realizando seu maior sonho na vida que era ser prefeito de MOC. E quer prefeitar bonito, deixando alguma coisa bela, que ajude todo aquele povão, sobretudo à criançada, a ter alegria de viver. Precisa ser alguma coisa recreativa, esportiva, que é o que o povo gosta mesmo. Mas deve ser, também, tanto quanto possível, educativa, cultural e até científica, para situar minha gente nesses tempos modernos tão complicados. Mário destinou uma vasta área central (4 hectares) cercada por avenidas, que são as principais vias de acesso da cidade. Ao lado há um lago de 3 hectares e um bosque ainda maior, sobrevivente das queimadas. Pode gastar lá de imediato US$ 1 milhão e outro, logo depois. Com esse parco dinheiro quer fazer mundos e fundos com um projeto Oscárico programado por mim. Ambição é o que não falta àquele meu irmão. Como sonhar não é caro, fiz funcionar minha fábrica de utopias, que se fará quando o tempo der. Tudo se centrará num casarão, de onde se veja o lago, o bosque. O casarão deverá abrigar: - Auditório-teatro para 250 pessoas, com telão para receber imagens através de uma antena parabólica e para projetar discos de videolaser. - Videoteca com arquivo de 250 videocassetes, do cinema mundial e brasileiro e 12 televisões. - Sonoteca com acervo de 500 horas de música computadorizada, acessível através de 60 audiofones. - Centro de teledifusão, como mini-estúdio, ilha de edição e emissora UHF (60 m2). - Biblioteca com sala para 120 leitores e setor autônomo de empréstimos. - Central de informática educativa, de três salas, com dois conjuntos de 15 computadores cada, capazes de atender, simultaneamente, a 60 usuários. - Galeria de arte para exposições temporárias. No futuro se poderia pensar em um museu com acervo próprio. - Fora do casarão, quero um parque infantil para os pais se livrarem dos filhos, por uma hora ou duas, enquanto se divertem ou estudam. Precisamos, também, de uma casa de festa, que a população toda use, nos fins de semana, sobretudo nos dias santos e feriados. Simplesmente, para relaxarem e se divertirem. Neste conjunto quero contar com: - Anfiteatro, arena, concha, acústica para 5 mil pessoas, ao ar livre, onde se revivam as antigas serenatas em todo o seu esplendor e se ouçam concertos ou participe de shows. - Feira de comidas para curtir a culinária da terra - paçoca, carne de sol, surubim, pequi de forma bem popular. - Pista de dança, para a mocidade se esbaldar. Como não custa nada sonhar, e é até gostoso, vamos adiante, pedindo um centro olímpico que ofereça: - Seis quadras esportivas polivalentes (já existentes). - Dois campos de pelada, com vestiários e sanitários entre eles. - Centro olímpico, com as prescritas pistas de correr, pular e suar, em disputas esportivas. O fundamental mesmo deste conjunto é um piscinão, com repuxo d’água e prainha de areia para o povo se alegrar, refrescar e lavar os olhos na beleza das novas gerações que irão surgindo. Nas quadras de secura em que o verão é medonho, a cidade toda se refrescará no piscinão. Tudo isto no meio de um arvoredo de mangueiras, jaqueiras, pitombeiras, abacateiros, coqueiros, cajueiros e cajazeiros, por amor à sombra fresca, às fruta e à passarinhada. Este é o meu sonho. Ambicioso demais, talvez, para as posses da terra. Mas apenas suficiente para atender meu coração. Acho um absurdo pedir isso a você, sem garantia de que seja feito com toda a grandeza que poderá ter. Mas, quem sabe? Uma vez existindo o projeto, talvez consiga, depois, dinheiro para se ir completando essas maravilhas. Quando ouvirem falar disso vão dizer outra vez que caí num outro dos meus sonhos desvairados. Por isso até crêem que meu desejo maior é ser imperador. Ignoram, os inocentes, que não é imperador do Brasil o que quisera ser. É tão só imperador do Divino Espírito Santo, nas festa de agosto, de Montes Claros. Nunca pude ser, quando devia, porque minha mãe, professora, não podia pagar os custos da enorme festança. Agora me vingo, pedindo a você que crie em Montes Clan um espaço aberto, permanente, para todo menino brincar de imperador do Divino. Obrigado, Oscar. Meu abraço Darcy Ribeiro Exmo. Sr. Dr. Oscar Niemeyer |
Por Ucho Ribeiro - 7/12/2012 09:40:19 |
DESDÉM Três projetos arquitetônicos elaborados e doados a Montes Claros pelo genial Oscar Niemeyer foram absurdamente ignorados. Nenhum foi executado. Enquanto várias cidades do mundo lutaram por um projeto de Niemeyer, Montes Claros não levou adiante nenhum dos três que ganhou de presente: o Museu de História Natural, o Centro Integrado de Educação e Formação de Professores e a Capela Ecumênica da Unimontes. O primeiro, o projeto do Museu, foi um pedido de Simeão Ribeiro, que na ocasião era prefeito da cidade. A obra seria na forma de um caracol e contaria a história do Arraial das Formigas, desde a fundação até os dias atuais. Os esboços e as plantas provavelmente estão nos arquivos e acervos da família de Simeão. Já o segundo, o do Centro de Educação, surgiu em 1992, devido a uma súplica de Paulo Ribeiro ao seu tio Darcy para que fizesse gestões ao Niemeyer. A obra arquitetônica seria implantada ao lado do Parque Municipal e destinada à formação e qualificação de professores. Na época, foi orçada em 2 milhões de dólares e contaria com um centro cultural e de convenções, bem como biblioteca, videoteca, multimídias, concha acústica, cinema e teatro. A secretaria de planejamento da prefeitura deve ter cópia. Por fim, o projeto da capela no campus da Unimontes foi um presente e uma homenagem póstuma de Niemeyer a seu amigo Darcy Ribeiro, em fevereiro de 1997. A Unimontes tem/tinha tudo documentado. Recentemente, em 2009, no começo da administração do atual prefeito, Niemeyer foi procurado para realizar e doar outro novo projeto para Montes Claros, mas parece que o grande arquiteto já estava cansado de tanto desdém. Montes Claros lhe deve gratidão. Montes Claros, por sua insensatez, deveria estar de luto oficial por Niemeyer. Que os alunos e professores de arquitetura de nossas faculdades fucem e ressuscitem estes preciosos arquivos em homenagem ao grande mestre Niemeyer. Será que ainda há tempo de repararmos tamanha ingratidão? |
Por Ucho Ribeiro - 14/11/2012 11:40:28 |
QUITES Manhã abrasadora, irrespirável. Umidade desértica. “Monsclaro”, recortada no calor, fritava-se há dias. Éramos uma população de calangos quarando. O povo, sem lugar, trançava pelas ruas a procura de uma sombra, de alguma brisa inexistente. Amontoava-se debaixo de árvores, marquises. Um oásis era o prédio da Receita Federal. Ar condicionado no toco. Funcionários calados, frios no trato, entretidos nos seus serviços. Os contribuintes, embora intimidados com a atmosfera tributária, se sentiam aliviados do calor naquele gélido ambiente e nem se impacientavam com a morosa e arrastada fila. Ruim era retornar ao tormento das ruas. Era época de entrega da declaração do imposto territorial rural – ITR. Eu, meio atento aos serviços, vi um velhinho dirigir-se à mesa da minha colega. Pediu licença para sentar. Sentou-se. Pôs o chapéu no colo e disse: Moça, obrigado por me atender. Eu preciso resolver o meu Incra. Tá muito alto. Olha, pra senhora vê! E estendeu a notificação do imposto. A colega, competente e burocrática, colheu o número da propriedade, digitou no computador, a tela se abriu e surgiram centenas de códigos, letras e números. Ela virou o monitor para a melhor visão do velhinho e explicou: Meu senhor, é isso mesmo, o VTN da sua propriedade rural é elevado, consequentemente a alíquota alcançou um patamar superior. A tributação está correta. E calangou a cabeça como se o atendimento houvesse terminado, já à espera do contribuinte seguinte. O senhor, coitado, sem entender a língua daquela mulher, repetiu: Ô Dona, eu quero é baixar o meu Incra, pra eu poder pagar. A funcionária respirou fundo, reposicionou-se na cadeira, pegou sua caneta, apontou para a tela do computador e remoeu pausado: Meu senhor, veja bem, olha aqui, a sua terra não-tributável é diminuta, não há reserva legal, muito menos área de preservação permanente averbadas. Falta a protocolização do ADA. A área tributável, a alíquota e o tributo estão corretos. Ou o senhor paga ou apresenta impugnação nos termos do Decreto 70.235. O velhote tentou de novo: Minha senhora, é só o Incra. O do meu vizinho, tá baratinho, dá pra pagar; já o meu... nem vendendo a criação toda. Antes que a minha colega voltasse à carga, a interrompi: Pode deixar, eu o atendo. O senhor levantou-se, agradeceu meneando a cabeça e dirigiu-se a minha mesa. Ajeitou no colo o chapéu amarfanhado, círculo de suor na copa, e repetiu: É meu Incra, moço! Tá alto! Eu, então, falei: Peraí, vou dar uma olhada. Entrei no sistema, digitei o seu Nirf - número da sua propriedade rural - e vagarosamente fui fuxicando os detalhes da sua declaração de ITR. Realmente, tudo se apresentava correto e o imposto era aquele mesmo, conforme a minha colega havia lhe informado. Descompromissadamente, perguntei: qual é a área da sua fazenda? Surpreso, o velhinho respondeu: Não é fazenda não, seu moço, é uma gleba de 1 alqueire. Estranho, nos arquivos da Receita a propriedade tinha 484 hectares. Alguma coisa estava errada. “Bingo!” Matei a charada. Um alqueire corresponde a 4,84 hectares. A vírgula havia sido omitida no preenchimento da declaração. Ao invés de lançar 4,84 hectares, foram declarados 484 hectares. E como toda a área era tributável, o valor do ITR tornara-se elevado. Resolvido o problema. Erro de fato, simples retificação. Passados alguns dias, finalzinho do mês, corre-corre doido, filas imensas, colegas de férias, fui convocado para o plantão fiscal vespertino, onde somos consultados, questionados, espremidos, para dar conta e explicar minúcias da copiosa legislação tributária. Cheguei cedo, pois sabia que a tarde seria longa e cansativa. Começou a correria, atende um, atende outro, mais outro e os assuntos se multiplicavam, os mais diversos. O que eu não sabia, pedia um tempo, pesquisava, respondia. Quando não encontrava na legislação nem no Google, solicitava o telefone do contribuinte para explicar-lhe mais tarde. Ia me safando daquele tisuname de perguntas com explicações satisfatórias. Sempre que levantava a cabeça, na esperança de ver a fila diminuída, enxergava um senhor no fundo da sala. Quieto, calmo, sem pressa. Parecia que estava aguardando alguém. Percebi que todos passavam na sua frente e ele, impassível, com o chapéu no colo, cedia sua vez, com a aparente tranquilidade daqueles que vivem mansamente. No cabo do dia, fila findada, encerrado o expediente, dirigi-me ao senhor: Posso ajudá-lo? Ele, calmamente, levantou-se, olhou-me e sorriu econômico: “Bom moço, o senhor já ajudou! Dias atrás, resolveu o meu problema do Incra. Não precisava esperar tanto para falar comigo. Moço, o senhor é muito ocupado. Eu não queria atrapalhar o seu serviço e nossa conversa tinha que ser reservada. Agora tá na hora d’eu ajudar o senhor. Cê não tem raiva de alguém, não? Algum fidumaégua já desrespeitou o senhor, sua senhora ou algum docês? Sem entender, arguí: Por que o senhor está perguntando isso? Porque eu tenho um menino de criação, muito obediente, e se precisar ele fura o peste. Mas se o senhor não gostar de lambança, de sangue, o rapaz sabe mexer com fogo também, e ele apaga rapidim o excomungado. Sem rastro. Fica tudo entre nós mesmo. Serviço limpo. Atemorizado, eu disse: Não, que é isso, pelo amor de Deus. Eu não tenho nenhuma desavença não, esquece isso. O velhinho voltou a sorrir com um sorriso miúdo e arrematou: então tamos quites, né? Olhou no fundo dos meus olhos, baixou ligeiramente a cabeça, homologando nossa conversa, virou-se, e saiu em passo manso, desobrigado. |
Por Ucho Ribeiro - 30/10/2012 20:49:34 |
Eleições 2012 O burburinho se foi, ufa! Parecia que nunca mais teríamos paz. Muito barulho, especulações, acusações e calúnias. A Eleição 2012 ficará registrada como a eleição da mentira, do descrédito nas pesquisas. Estas, se não foram venais, foram extremamente incompetentes, pois erraram grande e repetidamente. Torço para que a futura Lei Eleitoral proíba a divulgação de pesquisas. Quando sérias e honestas, são imprescindíveis no monitoramento interno de uma campanha, mas, quando inidôneas e subornadas, divulgadas à revelia, configuram crime eleitoral, pois confundem a população e alteram o resultado do pleito. Foi o que aconteceu aqui em Montes Claros. Se as pesquisas publicadas no primeiro turno fossem verdadeiras, a dupla candidata no segundo turno certamente seria outra. Humberto Souto, por exemplo, que certa pesquisa dizia ter 9%, obteve 23,97% dos votos. Por pouco não foi para o 2º turno. Imaginem quantos votos deixou de levar devido às pesquisas que o colocaram como o menos votado, sem possibilidades de ir para a nova etapa da eleição... Pergunto: os institutos de pesquisas serão responsabilizados ou responderão pelo erro ou pela farsa? Em julho, no início do páreo, os azarões eram Ruy Muniz e Paulo Guedes. A barbada era Jairo Ataíde. Paulo Guedes, a princípio, era um franco atirador, nada tinha a perder. Conseguiu, com a sua candidatura, a oportunidade de colocar os pés e o corpo dentro da maior cidade do Norte de Minas e, mais, divulgou sua imagem maciçamente durante quarenta ou mais dias para 2 milhões de eleitores no norte de Minas - público telespectador da TV Grande Minas. Ao final, foi extremamente bem sucedido, tinha 1% dos votos no começo do pleito e terminou com 43,85%, totalizando 82.478 votos. Um êxito jamais imaginado, nem por ele, nem por seus assessores, e muito menos pelos analistas políticos. Hoje, consolidou-se como uma das maiores lideranças do PT mineiro. Na cúpula da sua campanha faltou a alma de um montesclarense (sem hífen). No seu discurso faltou a fala para o não eleitor do PT e para os eleitores de Humberto e Jairo. Inocentemente, repetiu no 2º turno, em tempos de julgamento do mensalão, a ladainha do primeiro: “Dilma e Lula, Lula e Dilma”. Ruy não foi aceito como vice de Jairo Ataíde e nem de Athos Avelino. Encurralado, mas determinado, saiu corajosamente candidato por um partido nanico, sem tempo de televisão. Ao aliar-se ao PMDB do prefeito conseguiu, à duras penas, meia dúzia de salvadores minutos para os seus programas no rádio e na televisão, o bem mais precioso numa eleição. Tal aliança, entretanto, o fez carregar um pacote completo: além do tempo de televisão, levou a tarja de candidato da situação, a rejeição do prefeito, o desgaste da administração e a situação falimentar da prefeitura. Ah,ia me esquecendo de Zé Vicente e sua gente! Ruy, escorregadio, hábil e ágil, esquivou-se do desgaste do prefeito, mas não do seu exército caninamente fiel. Com o seu carisma e talvez com a promessa de garantir o emprego de todos, cativou e mobilizou os milhares de contratados para sua campanha. O futuro nos dirá a que preço. As repartições estiveram vazias, os funcionários, mesmo com os seus salários atrasados, foram para as ruas defender ardorosamente o leite de seus filhos para os próximos quatro anos. Em contrapartida, a militância vermelha de outras cidades ocupava a assustada Montes Claros. Ruy, manso, de guarda baixa, aguentou a pancadaria do PT e só prometeu e se comprometeu a transformar nossa Moczinha no paraíso terrestre. Imaginem o céu que será a nossa cidade toda asfaltada, com a saúde, a educação e a segurança nota 10. Haverá de chover milagres para inundar de verbas o sofrido e pobre cofre da prefeitura. De qualquer forma, Ruy Muniz foi um visionário e obstinado candidato, demonstrou um enorme talento para tourear tantas adversidades e agressividades. O outro, não menos vitorioso, foi Tadeu Leite. Com a saúde fragilizada, cansado, a prefeitura em frangalhos, sem crédito e invadida pela polícia, foi trabalhando pelas bordas, calado, com seu exército cativo de donas marias e seus josés, deu uma aula de como ter e transferir votos. No jogo político, foi brilhante, garantiu sobrevivência para Tadeuzinho e a sua blindagem por Ruy Muniz. Que todos, sem ressentimentos e em favor da nossa Montes Claros, acatem a voz das urnas! |
Por Ucho Ribeiro - 3/9/2012 11:14:35 |
Qual será o destino do seu voto? No dia 7 de outubro haverá eleição. Iremos às urnas, mas a maioria não sabe em quem vai votar e muito menos quem irá eleger para vereador. Vai votar em sicrano e elegerá beltrano. Tenho notado uma grande desinformação acerca do sistema eleitoral, em especial no que se refere ao sistema proporcional, utilizado nas eleições para vereador. No Brasil, existem dois sistemas eleitorais: o majoritário, aplicado às eleições para os cargos de presidente da república, governador de estado e prefeitos; e o sistema proporcional, utilizado nas eleições para os cargos de deputado federal, deputado estadual e vereador. Nas eleições municipais, em relação ao sistema majoritário, poucas dúvidas persistem para o eleitor: ganha a eleição o candidato a prefeito mais votado. Nos municípios com mais de duzentos mil eleitores, como em Montes Claros, é possível a ocorrência de segundo turno entre os dois candidatos mais votados, caso nenhum candidato alcance, no primeiro turno, votação superior à soma dos votos dados a todos os seus adversários, excetuados aqueles brancos, nulos e as abstenções. Entretanto, os maiores absurdos ocorrem nas chamadas “eleições proporcionais”. Nem sempre o candidato a vereador mais votado é eleito e, não raro, um candidato a vereador pouco votado conquista a vaga parlamentar. Esse sistema proporcional é ardiloso, confuso, e a maioria das pessoas desconhece porque ele nunca foi devidamente explicado nos meios de comunicação, e nem mesmo na publicidade institucional do TSE. Tal desconhecimento é nocivo à democracia porque ele propicia às pessoas votarem contrariamente a seus próprios interesses por não saberem qual será o destino do seu voto. O sistema proporcional não trata os candidatos como indivíduos, mas como representantes de um grupo político. As vagas são conferidas às coligações ou aos partidos mais votados e não aos candidatos. Para melhor entender o funcionamento do sistema eleitoral proporcional, vamos analisar a situação em nossa cidade. No município de Montes Claros existem por volta de 246.000 eleitores. Mas, no dia 7 de outubro, devido à tradicional abstenção, apenas 200.000 pessoas devem comparecer às urnas, sendo que destas, aproximadamente 16 mil votarão branco ou anularão seu voto, totalizando, assim, em torno de 184.000 votos válidos. Como em Montes Claros estarão em disputa 23 vagas para a câmara de vereadores, quem serão os eleitos? Os eleitos serão definidos com base no “coeficiente eleitoral” que é calculado a partir da divisão do número de votos válidos, 184.000, pelo número de vagas em disputa (23 vagas). Assim, o coeficiente eleitoral estimado deverá ser de aproximadamente 8.000 votos. Desta forma, cada partido ou coligação, ao obter o coeficiente de 8.000 votos para vereador, elegerá um candidato. Além disso, pela lei eleitoral, somente irão participar da distribuição das vagas disponíveis os partidos que atingirem pelo menos 1/23 avos dos votos válidos, ou seja, os 8.000 votos previstos. Os partidos ou coligações que não alcançarem este patamar serão excluídos, mesmo que alguns de seus candidatos obtenham, individualmente, uma votação expressiva. Apenas depois que for apurado o número de votos de cada partido ou coligação serão determinados os eleitos entre os candidatos de cada bloco. Somente nessa hora que entra em cena a votação de cada candidato, pois as vagas de cada bloco partidário serão preenchidas pelos candidatos mais votados dentro do seu partido ou da sua coligação. Como as campanhas são personalistas e a maioria das pessoas vota em candidatos, cria-se a ilusão de que o voto não é dado para o partido, e sim para a pessoa. Votar em um vereador específico significa votar no seu partido ou coligação, manifestando uma preferência pelo candidato escolhido. Lembre-se, ao votar num vereador, você primeiro estará votando num partido ou coligação, e depois apontará qual candidato deseja. Na verdade, os dois primeiros números do candidato ao serem digitados define o partido e a digitação dos três números seguintes sugerem apenas o seu desejo em eleger aquele vereador. Por isso, antes de escolher o candidato, é preciso saber se ele faz parte de alguma coligação e conhecer quais são os candidatos mais fortes dentro do bloco partidário, os “cabeças de chave”, pois certamente estes serão os candidatos eleitos com o seu voto. Os donos dos partidos, os sagazes políticos profissionais, ao formarem as suas chapas e coligações têm como foco a perpetuação no poder e a eleição dos seus mais próximos e fiéis correligionários. Eles raramente aceitam a filiação de candidatos com perspectivas de votos superiores aos candidatos do seu grupo político. Assim, ao votar no candidato que desperta sua simpatia, você não pode esquecer que, dentro do sistema proporcional, o seu voto sempre irá para o partido e provavelmente contribuirá para eleição de um velha raposa política, a não ser que esse seu candidato tenha verdadeiras chances de estar entre os mais votados do partido. O pior é votar convicto em um candidato a vereador, por ser ele honesto, trabalhador, incorruptível e seu voto ser somado no balaio de uma legenda e coligação que irá eleger um desonesto profissional da política, um ficha suja. Ou seja, o seu voto bem intencionado servirá para formar o quociente de um partido que tem como prováveis eleitos políticos corruptos. Você vota no melhor das suas intenções, mas o seu voto contribuirá para eleger um tradicional malfeitor da coisa pública. Fique atento ao votar, veja se o seu candidato tem chances, pois senão o seu voto será contado para eleger justamente quem você quer ver longe da política. Abra o olho, no dia 07 de outubro você pode atirar no que viu e acertar no que não viu. |
Por Ucho Ribeiro - 7/5/2012 17:10:42 |
Dia da Caça Sábado, à noitinha, eu saí de casa para ir a um casamento. Meio sem vontade, arrastado pela obrigação social. Ao me deslocar para a igreja, já atrasado, parei mal estacionado na porta de um bar para comprar uma garrafinha de água mineral. Buteco lotado, mesas completas e o balcão cheio de homens sozinhos, desamparados, a mirar o fundo do copo. Cheguei desviando, desculpando-me, e jeitosamente passei quase por cima de um freguês que bebia emborcado no balcão. Chamei o barman. Ocupado, o atendente não me deu atenção. Insisti, falando mais alto: “Ei, chefe, por favor, me atende aqui!” Nisso, o homem do balcão, de costas para mim, virou-se e disse: “Que qui é isso rapaz?” Eu, com jeito, procurando ser delicado, disse: “Desculpe, companheiro, eu só quero comprar uma água mineral!” Aí, o emburrado, com a cara amarrotada e voz trôpega, grunhiu:”Cê sabe com quem que cê tá falando?” Pronto. Que pergunta! Eu, com com pressa, atrasado, impaciente, tendo que responder o irrespondível. Ele voltou à carga, com a voz ainda mais grave: “Cê sabe com quem cê tá falando?” Sem saco, retado, puto, vendo meu sábado ir pras cucuias, acirrei a cabeça e retruquei: “Não, com quem?” Ele deu uma pausa, olhou dentro dos meus olhos, e desembuchou com a cara desabada: “Com o maior pé de chinelo de Montes Claros!” Fiquei pasmo, mudo. Ele, impotente, lacrimoso, reprisou: “Com o maior fudido desta cidade.” Bambeei as pernas, amoleci, passei o braço pelos seus ombros e convoquei-o: ”Ô, meu irmão, vamos sentar ali e tomar uma?” |
Por Ucho Ribeiro - 23/4/2012 10:42:47 |
Plico Diabo, o Cujo, a Besta, Demo, Satanás, Capeta, o Cabrobó, Capiroto, Rincha-Mãe, o Muito-Beiços, o Rasga-em-Baixo, Faca-fria, o Fancho-Bode, o Cão, o Azinhavre, Aquele, Belzebu, o Arrenegado, o Bode-Preto, o Tinhoso, o Sujo, o Que-Diga, o Que-Era, O Que-É. Desde menino, estes eram os personagens que povoavam e marionetavam a cabeça de Plico. Medo igual tinha do inferno, local de ofício dos Belzebus. Seu penso, seus sonhos eram um tumultuado cenário de trevas. Mesmo nos cochilos de dia sobressaltava-se com pesadelos demoníacos. Devaneios. Via-se atirado em abismáticas grotas, profundíssimas, amarrado, peado, surrado, na fila do inexorável caldeirão fumegante. Imaginava-se em putrefatos lamaçais, em desespero, aos gritos, em contínuas sovas, numa agonia de afogado. Tudo sob os efeitos sonoros dos guinchos, rugidos, mugidos e gargalhadas do Coisa-Ruim. Plico via o demo a 3 por 2. Dia sim, outro também. Segundo Patrícia, a terapeuta reichiniana, a causa psicogênica fora o seu parto a fórceps, quando ficara horas entalado, gemido, cagado e esprimido. Daí o seu temor a claridades estalantes e o seu pavor dequalquer coisa que o oprimisse. Afinal, fora árdua e demorada a travessia da escura e protetora toca materna para o barulhento e fosforescente mundo exterior. Talvez daí o motivo de ele repudiar médicos, enfermeiros e hospitais. Desde garoto, a capetada já o atazanava. Nunca esqueceu do frio assobio da régua da sua professora a zunir ao pé de seus ouvidos e o sonoro relincho da Besta: "Presta atenção, peste!". Pior era o professor de português, cara e óculos de Jânio Quadros, a explicar "este, esse, isto, isso...". Aquele só podia ser pactuante, um pactário do Maligno. E aquele interrogador, inquisidor, travestido de padre, a fuxicar, a xeretar sua vida: Onde foi? Como? Com quem? Sozinho? Acompanhado? Foi bom? Cruz credo!... Vá bisbilhotar assim lá nos quintos do inferno! Mas o pior mesmo era o fiduma daquele prático metido a dentista que, com certeza, era o capeta em figura de gente a judiar dos meninos. Recorda que era arrastado aos prantos para aquela sala de tortura. Naqueles tempos, usava-se uma máquina tosca, a pedal, com brocas que giravam movidas por correias. Utilizavam-se até tiras de couro para prender a garotada nas cadeiras. Plico tinha náuseas ao lembrar daquela sala desbotada, descascada e daquele mastodonte sobre ele debruçado, com os olhos vidrados. A pouca anestesia vinha de um galãozinho que exalava um anestésico metido a besta, com almíscar de éter. A cada aplicação do gás no paciente, o Coisa-Má tomava uma prise maior e ficava de porre com a fala arrastada: "Paare de isstrebuuuchar, meniiino, ainda tenho unss vinnte para tratarr hooje". Ao arrancar um dente com o boticão, a baba chegava a escorrer do canto da sua boca. Quando rapazinho, seu pai, percebendo que Plico não gostava de cabresto nem de arreio e muito menos de escola, o colocou como contínuo num banco. Foi o aperto da arruela. Plico se sentiu arrochado, atarraxado. Além da forca da gravata, tinha sapatos a engraxar, uniforme a engomar, cabelo a cortar, camisa para dentro, horários e mais horários, apitos e sirenes, memorandos e regimentos. Era o cu-da-mãe joana. Ave Maria! Quem podia aguentar aquele quartel? De quartel, bastava o inferno que fora o Tiro de Guerra daquele capitão, ou melhor, Capetão-mor, que o torturava desde às 5 da manhã, com marchas, contra-marchas, abdominais, flexões ... um-dois, três-quatro, quatro-três, dois-um... direita-esquerda, esquerda-direita... farda de lona verde, bate-bute acochado, o diabo a quatro, tudo na falsa conta da mãe-pátria. Dali, já havia escapulido, tornara-se desertor convicto. Nunca mais estaria sob a rédea de qualquer regulamento. Nem de inverno Plico gostava, só pela horrível sonoridade do nome. Na fuga dos diversos infernos da sua vida, uns existentes, outros imaginados, Plico foi aprendendo a evadir-se das dificuldades e ofícios. Era-lhe impossível estudar sob a tutela daquela legião de satanases e um tormento maior trabalhar com todos aqueles patrões e chefes impertinentes, pontuais e caretas. Urgh! Raios que os partam! Plico passou a ter medo de ter a coragem de achar que o Demo não existia. E se ele realmente tomasse conta de tudo? Ou já tinha tomado? Sonhava que fosse decretado, em lei, no papel, sacramentado e vaticanizado: "Que não tem Diabo nenhum. Não existe o Demo. Ponto final". Pronto, acabou! Xispa, seu Satanão! Em desespero, no breu, já havia até desafiado o Das Trevas: chamara por ele, esperou por ele, berrou: "Vem Bode Velho, seu Urucubaca de Trem Ruim. Seu Temba, Seu Drão, Diabim de meia tigela. Seu fidumaégua! Coorno!" Esperou, espreitou mais um pouco, suntou, e nada. Gritou de novo: "Cadê ôce, seu covarde, Cachorro Lazarento, Tendeiro, Morcegão, seu Encardido? Mas o bicho não apareceu. Passada a bravura, a estabanagem, amofinou e rezou o Credo, se borrando de medo. Para esquecer tantos demônios, frouxar, relaxar a vida, só mesmo caindo nos gorós. Quando enchia a lata, o povoado mundo dos capetas desaparecia. Tudo ficava mais gozado, mais desapertado, mais relaxado, sem regras. Duro era parar de beber. De saideira em saideira passava a noite e muitas vezes o dia num porre só. Terminava sempre escornado na sarjeta, na velha e agoniosa ressaca. Filme queimado, de cabo a rabo, Plico foi à fazenda de um amigo dar uma descansada, uma repensada na vida, fugir daquele inferno que era a cidade grande. Na roça, tudo ia bem, ninguém enchia o saco e o gole estava controlado. Até que, numa noite de lua, entornou uma cachaça fenomenal. Bebeu a noite toda, pegou um pau federal. Xingou o Dê, o Debo, o Demo e o Demônio. No clarear, truviscado, saiu tropeçando, oitopernando, catando apoio, urinado nas calças, com soluços e vômitos. Claudicante, seguiu uma cerca, segurando nos arames, se apoiando nos postes, se arranhando, se rasgando, balangandano, continuando. Foi pareado à cerca até encontrar uma outra, lá no meio da manga, onde tinha um tanque para dar de beber a uma vacada erada, escura, chifruda, guzerá. Parou, aprumou-se na muretinha baixa do bebedouro de cimento, tentou beber a água que saía de uma boiazinha no canto, mas não dava conta, pois tinha que se curvar demais. Decidiu, então, entrar no bebedouro, porque assim, de joelhos dentro dàgua, dava para beber no esguichinho da bóia. Só que, no pau que estava, Plico decidiu deitar no bebedouro, de barriga para cima, com a cabeça escorada na paredinha e refrescar - precisava melhorar do porrete. Era cedo, a água estava friinha, serenada, boa demais! As horas foram passando, o dia esquentando, o meio-dia chegando, a água do bebedouro foi mornando, quase fervendo, e Plico começou a sonhar que estava no meio de uma caldeirada luciférica. Delirava, sacudia-se, remexia-se naquela panelada fumegante, mas não acordava. Era mais um pesadelo bruto, daqueles. De tanto espernear acabou despertando e se viu cercado por um mundaréu de beiços, ventas e chifres, todos imensos, pretos, embocados no caldeirão efervescente. Pronto, foi o suficiente, surtou mesmo, e de joelhos e dedos em cruz danou a gritar; "Xô Satanás, sai Belzebu, afaste-se Lúcifer, arreda Trem Ruim, some Chifrudo! Saltou do tanque, disparou no meio das vacas e desapareceu mato a dentro. Tiveram que juntar uns vaqueiros para campear o pobre do Plico e, ao encontrá-lo, perceberam que o delírio não tinha abrandado. A solução foi levá-lo à cidade, procurar um médico amigo e interná-lo no hospital, para uma sonífera e apaziguada desintoxicação. Como o paciente ainda estava agitado, o Dr. Ruy prescreveu um sedativo leve, um soro glicosado e recomendou-lhe repouso. Plico ficou, então, incomunicável num apartamento do hospital, deitado, ligado a aparelhos, com mangueiras e sondas, que em seus pesadelos e delírios eram as peias do Demo. Abandonado ali, sozinho, com uma ressaca transatlântica, sentiu-se nas trevas. Aquele mal estar, aquelas cordas apertando, a boca seca, o calor supitando, a vontade louca de fumar, o desesperaram e o fizeram levantar da cama na tentativa de fugir do inferno. Mas foi detido pela mangueira do soro ligada a seu braço e pela porta trancada do quarto. Tonto, zepêra, meio grogue, deparou com o quadro de aviso afixado na porta. Ao ler o escrito deu um grito de pavor e disparou: - Puta quiu pariu, eu tô é fudido mesmo! Tô no "inferno" e aqui ainda tem regulamento! Era o “Regulamento Interno" do hospital. |
Por Ucho Ribeiro - 21/3/2012 10:20:42 |
TERESINA No início da década de oitenta fui convidado por Haroldo Tourinho Filho para trabalhar em Brasília, no Ministério da Educação. A Merenda Escolar passava por uma enorme mudança. O novo presidente do órgão, Dr. Teixeira, entusiasmado, queria abolir os alimentos industrializados, as misturas lácteas achocolatadas, ou melhor, decidiu substituí-los por arroz, feijão, verduras e carne. Resolveu dar uma refeição decente, de gente, às crianças. Nos meses vindouros as escolas passariam a receber, via Cobal, os alimentos propostos e as cantineiras teriam que preparar pêefinhos substanciosos à meninada. Para explicar aos secretários estaduais de educação as radicais alterações que estavam por vir na merenda, minha chefe Léa Cutz Galdenzi e eu fomos despachados para o Nordeste. Estávamos convictos e alinhados na certeza daquelas transformações. A idéia era dar na escola a comida que as crianças não tinham em casa. Nosso primeiro pouso foi em Teresina, no Piauí. Ao descermos do avião, achei que o mundo estava derretendo. Mesmo acostumado com o calor de Monsclaro, aquilo era insuportável, um forno! Cheguei a pensar que a quentura que estávamos sentindo era devido à proximidade da turbina do avião. Não era possível aquele inferno. O horizonte no final da pista tremia como nos desertos. Tirei logo o paletó e afrouxei a gravata. Vi a colega Léa sacolejando a saia para enxotar o calor que subia do asfalto. Suando, caminhamos apressados em direção à sala de desembarque do aeroporto em busca de um ar condicionado. No baforento tumulto de pegar as malas, não percebemos que o sistema de som do aeroporto repetia: ”A Senhora Galdenzi e o Senhor Ribeiro estão sendo aguardados na sala Vip”. Estranhamos aquele convite, afinal não éramos nenhuma autoridade. Mas no Nordeste as coisas são diferentes: funcionários oriundos da capital da república ou estão trazendo verbas ou estão fiscalizando a aplicação delas, motivos pelos quais devem ser bem tratados e paparicados. Para nos adular e ciceronear, apresentou-se um assessor do Secretário de Educação. Uma verdadeira figura: cabelo ao estilo de Zé Bonitinho, paletó listrado, gravata curta e larga, amarelo furta-cor. Chegou todo splish splash: Heloo, boy! Heloo, girl! Foi distribuindo o seu cartãozinho e proclamando se chamar Braulino, “o Teresinense da Gota Serena”, e não parou mais de debulhar os maiores elogios ao Secretário e suas obras. Chegou até a declamar versos bajulativos. Pela voz impostada, trovejada, rouca, e pelos louvores ao patrão, entendi que ele tinha um programa no rádio e um bico na secretaria de educação. O soldo que recebia era para babar o ovo do chefe no trabalho e fora dele. Como chegamos cedo para o encontro, Braulino nos sugeriu dar uma voltinha por Teresina e tomarmos uma “fresca” na beira do rio. Num fusquinha todo branco, furreco, fomos passear. O calado motorista arranhava as marchas, enquanto o Braulino, curvado para trás, arranhava o português, com todos os seus “menas”, para elogiar as maravilhas da sua cidade. Ao passarmos pelo bairro Jockey Club, ele foi logo dizendo: Aqui moram os empresários e os industriais do Piauí. Aí, eu perguntei: Empresários e industriais de quê? Ele, de pronto, retrucou: Ora, de empresas e indústrias! Quase dei uma gargalhada, mas segurei. Léa, por sua vez, fez que tossiu, fingiu ter engasgado com alguma coisa. Nos olhamos e vimos que ia ser divertido. Demos a maior corda ao radialista da gota serena. Ele nos contou todas as maravilhas de Teresina, falou do Rio Poty, do Parnaíba, das suas fantásticas pontes e das exclusividades da cidade. Tudo o maior e o melhor do Brasil. Era o Juca Prates de lá. Como tínhamos ainda um tempinho, ele nos levou a uma movimentada e moderna sorveteria com produtos dos mais variados sabores. A Léa Galdenzi, gaúcha, judia e passageira de primeira viagem ao Nordeste, não conhecia quase nenhuma daquelas infinitas frutas nordestinas. Ao perguntarmos o que é que tinha, o balconista disparou um rosário destramelado de nomes num sotaque arretado: Mangaba,Baru,Cagaita, Araticum, Gabiroba,Bacuri, Cupuaçu,Jatobá, Araçá,Jenipapo, Umbu,Sapoti, Caju,Macaúba,Manga, Pitanga, Murici, Pinha,Maracujá, Açaí... Aí, eu falei – pára, pára, pára...já tá bom, me dá um de Mangaba. Léa, por sua vez, naquele universo desconhecido de sabores, aceitou a sugestão do atendente. Encantada com o sabor sugerido, com o perfume e o paladar daquela fruta, mostrou-nos a delícia que estava experimentando e perguntou: O que é mesmo? Aí, o diligente assessor da gota serena respondeu orgulhoso e pausadamente: “Pi-co-lé”. |
Por Ucho Ribeiro - 8/12/2011 12:12:20 |
Ao tomar conhecimento da Lei de Acesso a Informações Públicas, Lei nº 12.527, sancionada pela presidente Dilma Rousseff, no último dia 18 de novembro, entrei em contato com o Arquivo Nacional do Ministério da Justiça, a fim de saber quais eram as informações que os órgãos de inteligência (SNI, Polícia Federal, Dops) tinham do meu pai, Mário Ribeiro da Silveira. Afinal, ele havia sido preso na ditadura e teve os direitos políticos suspensos, nos termos do AI-5, em 1969. Para minha admiração, quatro dias após a minha consulta, a Coordenadora-Geral do Arquivo Nacional no Distrito Federal enviou-me correspondência com os “resumos” dos documentos existentes no Acervo do SNI, nos quais meu pai é citado. Estou atualmente a selecionar o material para requerer as cópias dos dossiês existentes nos conjuntos documentais do regime militar que fazem referência a Mario Ribeiro da Silveira. Surpresa maior foi receber um telefonema do nosso alcaide, informando ter tido acesso a arquivos do SNI, outrora confidenciais, que registravam as atividades dos membros do Comitê Brasileiro pela Anistia/Montes Claros/MG. Relatou-me que nos documentos há referências a vários montesclarences, inclusive a Marão. Gentilmente encaminhou à minha família cópia dos registros que torno público no site www.monteclaros.com |
Por Ucho Ribeiro - 15/8/2011 09:35:22 |
ASTÚCIA Fatos recentes revelaram o surgimento de uma nova aliança política em Montes Claros. O prefeito e o deputado Arlen Santiago evidenciaram que fizeram um acordo político visando a eleição municipal de 2012. Afinal, secretarias e altos cargos foram repassados e ocupados pelos partidários do deputado petebista. Uma jogada astuciosa no tabuleiro eleitoral. O prefeito saiu das cordas, ou como dizia antigamente: “saiu do coré”. Tudo indicava que Tadeu Leite tinha todo o desprezo do governador e caminhava para ser o adversário visceral do Palácio da Liberdade na próxima eleição. Agora, Tadeu, com a aliança com o deputado, ao qual cedeu os anéis para não perder os dedos, pode ter o empresário Paulo César Santiago como vice-prefeito. Dobradinha que coloca o governador numa situação difícil e delicada: como apoiar a candidatura de Jairo Athayde, de Gil Pereira ou a de qualquer outro aliado político se na chapa de Tadeu está o irmão do correligionário Arlen Santiago, o deputado mais votado na região, com prestígio e trânsito no Palácio? E mais, não será sagacidade política do alcaide atiçar os ferrenhos adversários Jairo e Arlen a digladiarem na rinha da próxima eleição, enquanto alveja raia tranquila para sua reeleição, ou até mesmo para o seu filho Tadeuzinho? Bem, o jogo teve início. Outras ardilosas jogadas advindas dos mais diversos flancos ainda acontecerão até o pleito eleitoral, porém o xeque-mate só saberemos nas urnas. |
Por Ucho Ribeiro - 18/7/2011 13:04:18 |
Urucubaca Ucho Ribeiro O sonho da família era ir à praia, conhecer o tão falado mar de água salgada e as inquietas ondas. Ano após ano, desde as núpcias, a desejada viagem foi sempre adiada por falta de dinheiro, por compromissos e imprevistos. Mas agora não, as férias iam acontecer na praia. Uma semana de papo pro ar, na brisa do mar. Waltim, balconista de uma loja de peças, conseguiu alugar uma casa em Alcobaça, no sul da Bahia, e dobrar o sogro para emprestar o nojo do seu Monza que vivia estacionado na garagem. Só precisavam levar a feira e as roupas de cama. O orçamento estava à continha, no risco, mas Suely, a mulher, inventou um punhado de frescuras de ultima hora - cabeleireiro, bronzeador, maiô, toalha, sandália, o escambau aquático – que fez a grana minguar e restar apenas o dinheirinho para a gasolina de ida e volta e olhe lá. Foi um upa para Waltin defender umas caixinhas de cerveja Nova Skin, duas garrafas de pinga de Salinas, três dúzias de pequi e uma mantinha de carne de sol. Partiram no domingo, bem cedinho, cercados de um invejoso amontoado de vizinhos e parentes. O sogro, morto de remorso por ter emprestado o Monza, não parava de repetir aos ouvidos moucos do genro: ”Walter, vá devagar, tome cuidado com os buracos, esconda o carro da maresia, confira os pneus, não passe de 100...” Suely, gloriosa no banco da frente, de lenço, óculos escuros, depilada e hidratada, batia a mão em despedida para os ficantes. Atrás, a alegria estampada dos filhos Walterly e Suewalter era acompanhada do sorriso da velha e eterna empregada Dalvina. A viagem, tirando os vômitos do caçula e o empacamento do toca-fita, transcorreu beleza. Chegaram no finalzinho da tarde. Deu para descer a bagagem do carro e correr para ver o mar e o seu horizonte niveladinho. Os meninos estavam para explodir de felicidade. Não sabiam o que fazer com tanta novidade. O corre-corre em fuga do vai-e-vem das espumas, a cata das incontáveis conchinhas, a star estrela do mar, os caranguejos andando de lado, tatuís furando buraquinhos na areia molhada, a fresca brisa, o entardecer, o mergulho das gaivotas, o castelinho de areia, a jangada retornando do mar. Suely, vendo aquilo tudo, sonhado, esperado, verdadeiro, temperado com gostinho de sal, emocionou-se, mareou os olhos, segurou a mão do marido e disse “Te amo, Bem!”. Waltin frouxou as pernas. Fora as queimaduras da longa exposição ao sol nos primeiros dias e a inevitável caganeira causada pelo tempero baiano, a semana foi supimpa. Acordar tarde, andar na praia, participar da baba baiana, cervejinha, comidinha de Dalvina no capricho, cochilo à tarde. Atoice maior nunca viram. Fizeram uma amizade com um casal vizinho, de pescadores, e armaram o carteado. Toda noite, para o jogo de buraco, levavam um pedacinho de carne de sol, uma pinguinha de Salinas e eram retribuídos com moquecas de caranguejo, camarão e outros frutos do mar. O céu. Dormiam cedo, namoravam, juras de amor, tesão solar. Treinavam para fazer uma menininha, a Surlene. Pena que passou rápido demais. Quando acordaram, já era sábado, dia de voltar para o batidão. Suely, então, enlaçada no Waltim, propôs: “Ô Môzinho, podíamos era sair amanhã bem cedinho, antes da chegada da outra família que alugou a casa.” Waltin, na sua praticidade, topou: ” Mas nós temos que deixar tudo prontinho, casa limpa e malas arrumadas. Melhor é dormir com as roupas que vamos viajar. Dalvina vai preparar o café e nos acordar às 5 horas da manhã, no escuro.” Pronto, tudo foi acertado e cumprido tim-tim por tim-tim até a hora de dormir. Pena que despertaram no domingo as oito da matina, no susto, com o sol na cara. Assustados, percorreram a casa aos gritos, procurando Dalvina. Quando entraram no quarto da empregada, ó ela lá, na cama, esticada, com os olhos revirados. Mortinha da silva. E agora, o que fazer? Tinham que deixar a casa, a outra família já estava prestes a chegar para ocupá-la. Não restava um tostão furado, além do dinheiro para a gasolina e para o pequeno lanche na viagem. Se avisassem a polícia, ia ser um rolo sem fim. Teriam que chamar o IML, comunicar a família da morta, solicitar e esperar a autópsia, o embalsamento do corpo, assumir as despesas da funerária e da vinda do ou dos representantes da numerosa família de Dalvina e trasladar o caixão para Minas. Agora pense, como resolver isto tudo na Bahia, num domingo e sem um tostão? O que fazer? Era urucubaca demais. Nisso Suely, pensou alto: “Ô gente, só se rezarmos para São Judas ressuscitar Dalvina?” Foi a deixa para Waltim arrematar o problema: “Sabe duma, Dalvina vai morrer é chegando em Monsclaro! Nós vamos colocá-la no porta-malas do Monza e, perto do Brejo das Almas, a gente põe ela sentadinha no banco de trás.” Os quatro, com muita dificuldade, dobraram a pobre da Dalvina e a puseram no bagageiro, calçada por travesseiros. As malas vieram nos colos e entre os meninos. Nem se despediram dos vizinhos do jogo de buraco. Pé na estrada, pois não sabiam que hora a velha tinha morrido e ela podia até feder. No caminho, foram treinando o que falar com a família da falecida: “Olha, ela acordou de manhã, tomou os seus remedinhos de pressão e vinha boa-boa, calada e rezando com o terço na mão. Duma hora pra outra, já chegando aqui, deu um soluço, um gemido e morreu igual a um passarinho. O jeito foi acabar de chegar.” A viagem foi só silêncio, cagaço e a torcida para tudo terminar logo. Parada, só em Salinas, já tudo previamente acertado: ”Abastecer, urinar, lanchar rapidinho e voltar para o carro. Se Deus ajudar, em duas horas estaremos em Montes Claros, salvos!” Tudo correu como combinado. Carro abastecido, xixi feito e pão com linguiça no bucho. Não tiveram dinheiro para o refrigerante. Ao saírem da lanchonete, cadê o Monza? Olharam para um lado e para o outro, nada! Rodaram o estacionamento todo do posto e nada! Perguntaram aos frentistas: nada! Perguntaram ao borracheiro: nada! E agora? Duros e a pé, como explicar a Dalvina morta no porta-malas e o carro roubado? Das tão sonhadas férias, restaram, para o casal Waltim e Suely, um processo de ocultação de cadáver, o desprezo e a descrença dos familiares de Dalvina, o eterno ódio do sogro pela perda do nojo do Monza e a rapa do tacho, a baianinha Surlene. |
Por Ucho Ribeiro - 11/7/2011 09:36:12 |
MULHER DAMA Ucho Ribeiro Nandinho só queria saber de bola. Já acordava catando as figurinhas da copa para na escola trocar e jogar bafo. No recreio, batia uma bolinha no pátio e comentava com os colegas os jogos que ouvira no rádio. Era um ufa para fazer o dever de casa, pois o sentido estava todo na pelada, no campinho de terra, ali pertinho. Só caia na real quando a cozinheira Joana berrava: “Nando, tá na hora da janta!”. Pois não é que um dia, no final da tarde, Seu Procópio, o pai, foi buscá-lo no campinho? Nando estranhou aquilo, mas, obediente, o seguiu até a casa para tomar banho e vestir uma roupa. O pai mandou-o trocar a calça curta por uma comprida de homem, com corrião. Não ousou perguntar ao velho aonde iam. Foi, mudo, espiando o trajeto. O carro tomou o destino do Alto São João. Bem depois da linha, virou à direita e depois à esquerda, para o bairro Esplanada. Desembocou numa rua mal falada e Nandinho pensou, imaculado: “É por esses lados que tem uma casa de muié dama da zona.” E não é que o carro parou bem em frente à famigerada casa? Foi um susto. O pior é que Seu Procópio disse: “É aqui que minino vira homem. Desapeie!” Abriu o portão e conduziu o garoto cabisbaixo pelo braço. A entrada, um patiozinho cimentado, tinha umas mesas vazias e umas mulheres sorridentes de camisolas. O som tocava “O Bom Rapaz” de Wanderley Cardoso e uma moça novinha, descalça, com vestidinho curto e a calcinha aparecendo, encerava o cimento vermelho. Cantava e ria: “Parece que eu sabia, que hoje era o dia, de tudo terminar...” O menino achou que era para ele, mas não retribuiu o sorriso. Nisso, a cafetina, que atendia a única mesa ocupada, apareceu, toda gentil, cumprimentou Seu Procópio e ao pegar no queixo do menino perguntou: “É este o garoto, o rapaz, que falaste? Se puxar o senhor vai dar muito trabalho pras meninas!”. “É, é este o galinho que vai entrar na rinha!”, respondeu o velho. A senhora mais idosa saiu à cata das moças, batendo nas portas. Reuniu umas cinco mulheres, todas quase despidas, umas despenteadas, outras meio arrumadas, uma até segurava um aparelho gilete de raspar as pernas. Duas eram morenas, uma mais escura, menos alta, e a outra mais pra gorda. As outras três variavam de tamanho, peso e cabelo. Tinha uma bem seca com rolinho na cabeça; uma outra, bitela em tudo, das pernas ao nariz; e a quinta, meio leque-treque, escorada na parede, fumava. Atrasada, chegou mais uma, loura, de vestido escarlate, que deve ter demorado para arrumar-se. O pai, então, determinou: “Escolhe uma aí, Fernando, menos a de vermelho, esta tem dono”. Nandinho, perdido com tanta novidade e falta de experiência, ficou numa dúvida danada. Nem queria aquilo! Mas como não querer na frente do Pai? Tinha que escolher, mas escolher o quê, meu Deus, como, quem? O velho olhava, levantava a sobrancelha, cobrando a escolha. O menino suava frio e não sabia o que fazer. Até que disparou: “Aquela!” Escolheu a Bitela, pelo menos podia explicar depois o porquê: era a mais grandona. A dona do bordel, então, tomou a frente e disse: ”Menina, leva o rapaz e capricha. Tira dele o melhor, sem pressa, viu?” A moça se apresentou: “Me chame de Claudete, Dete.” E foi levando o Nandinho para o abatedouro. Na voz de Nelson Gonçalves, a vitrola prenunciava: “E tudo à meia-luz. Para brindar o amor. À meia-luz dos beijos. À meia-luz nos dois. E tudo à meia-luz. Crepúsculo interior. São suaves os desejos. À meia-luz do amor”. O menino entrou no quarto de meia parede, sem forro, ouvindo seu Pai contar potocas para as desescolhidas e para um amigo recém chegado. Nando, perdido e meio, tirou os sapatos e se encolheu no fundo da cama. Ficou com o queixo nos joelhos, abraçando as pernas. Enquanto esperava o que Claudete iria fazer, viu as paredes cobertas de cartazes da Contigo: Jerry Adriani, Odair José, Evaldo Braga, Ronivon. No chão, ao lado da cama, havia uma bacia, uma jarra, papel higiênico, uma toalha pendurada na cabeceira e, numa velha mesa, uma casinha que dava teto a uma imagem minúscula de Nossa Senhora Aparecida. No mais, apenas uma folhinha da Casa Amaral, um gato de porcelana e um armário caindo aos pedaços. No espelho descascado, Nando se viu acocorado, triste, acuado. Dete olhou para ele com um sorriso malicioso e apagou a luz. Nandinho, com as mãos geladas, ainda assistiu, no fusco da claridade vinda do outro cômodo, a moça tirar a roupa em ritmo burocrático. Na pouca luz, assustou-se com a escuridão que havia entre suas pernas, não imaginava que lá havia tanto cabelo. Mas a sua falta de saber piorava ao ouvir a voz do pai Procópio se avantajar: “No meu tempo, era assim, assado, patatí patatá “. Ai, a Bitelona ajoelhou-se na cama e engatinhou em sua direção, com os úberes soltos, dependurados em banlangandã. Sua sombra projetou na parede uma giganta, uma tarântula, uma vaca de pernas e braços. Nandinho lembrou-se de seu pintinho bico de chaleira e murchou mais ainda. Teve vontade de chorar. A moça percebeu, passou a mão na sua cabeça e ajeitou o seu topete. Tentou acalmá-lo, desenroscá-lo, espichá-lo. Com dificuldade, conseguiu que ele deitasse na cama e foi desabotoando seus botões, primeiro os da camisa, depois os da calça. Por cima da parede, Nando ouvia gargalhadas, a voz rouca do Pai, o cheiro da fumaça do seu Beverly e o lamento de Nelson Gonçalves: “Negue seu amor, o seu carinho. Diga que você já me esqueceu. Pise, machucando com jeitinho...” Despido, teve o primeiro contato com um corpo de mulher. Achou-o frio, a pele era lisa, parecia barriga de jia. Não sabia no que estava pegando. Confundia barriga com bunda, joelho com cotovelo. Assustava-se quando esbarrava nos pêlos crespos. Nada dava certo. Dete queria ajeitá-lo, desembolá-lo, mas o menino não entendia, não sabia donde começar, de que lado, por cima, por baixo? Quando imaginava estar a lamber os peitos de Claudete, estava com a boca em seu cotovelo. A tragédia e os desencontros rolavam ao som da voz paterna e do vinil de Nelson Gonçalves: “Boneca de trapo, pedaço da vida, que vive perdida no mundo a rolar. Farrapo de gente, que inconsciente peca só por prazer; vive para pecar...” Nando teve arrepios, excitações, lampejos de ereção, mas tudo esmorecia quando caia em si, ouvia a voz do pai e percebia onde estava e o que estava fazendo. Tinha mulher demais na cama, onde tocava tinha corpo, perna, braço, pé, peito, barriga, cabelo, bunda. Demorava identificar cada parte. Nandinho não conseguia juntar aquele quebra-cabeça de membros e formar uma rapariga. Rodopiaram na cama algumas vezes e não conseguiram encaixar sua chocha ferramenta. A Bitela chegou a ficar imóvel umas duas vezes, na tentativa de ajudá-lo, de acalmá-lo, mas nada adiantava. Subiu em cima, ficou por baixo, de ladinho, de bruços, cachorrinho, mas neca. O jeito foi desistir. Dete levantou-se, vestiu-se, depois ajudou-o a se vestir, a amarrar o sapato, mas não saiu do quarto sem antes dar um beijo carinhoso em sua testa. Ao fundo, o menino ouviu Evaldo Braga no seu lamento: “Sinto a cruz que carrego bastante pesada. Já não existe esperança no amor que morreu...” Saíram do quarto juntos, ela abraçando a criança envergonhada, que olhava para o chão. Seu Procópio, dono do pedaço, abraçado com a dama de vermelho, ao vê-los perguntou: “E aí, como foi o desempenho do moleque? Deu pro gasto?” Dete, profissional de muitos carnavais, pontuou: ”Quem é o senhor, Seu Procópio, o menino é fogo no boné do guarda. Quase me mata, me chuchou todinha. Vixe Maria! Parece potro bravo. Este tem que ser amansado é aos pouquinhos. Só faltou relinchar!” O Velho ficou cheio, todo-todo, serviu o primeiro copo de cerveja para Nando, acertou a conta, gratificou Bitela e a cafetina generosamente e com um olhar se despediu da sua rapariga. Voltaram em silêncio para casa. Nandinho foi direto para o seu quarto, trancou a porta e só aí tomou pé do ocorrido. Aos poucos foi lembrando dos detalhes, dos floreios e foi revivendo tudo na palma da mão. “E aquela hora que eu quebrei ela de banda? E aquele beijo demorado, molhado? Melhor foi quando eu a pus de quatro... ai, ai. Acha que mexer com Nandinho é brincadeira?” |
Por Ucho Ribeiro - 4/7/2011 09:21:54 |
TRÉGUA O Coronel andava tranquilo, desarmado, sem desassossegos, sem acreditar que chegara enfim o tempo de paz. Já estava cansado de não ter medo, de ser forte, empacar. A trégua firmada na Páscoa, continuava de pé, os limites das terras demarcados, as desavenças reparadas, o vizinho até convidou ele e a patroa para o São João. Disse inclusive que a Casa Grande estava de portas abertas. Queria mesmo ir a festa para não parecer desfeita e para satisfazer as netas que estavam num vãoVô, vãoVô de atazanar, mas o acordo ainda estava novo, lactente, e a prudência tinha que ser administrada a pires de leite. Qualquer risco-trisco, qualquer faísca no pavio da cachaça podia assanhar a jagunçada e aí tudo ia pro beleléu. Eram muitos anos de desavenças e desacatos, finalmente mornados. Aquela temperança precisava continuar. Tempo de recomeço. O melhor era mandar as mil desculpas e, como presente, o que tinha de melhor para uma festa junina, o trio triângulo-sanfona-zabumba, comandado pelo seu sanfoneiro de confiança, Tião Pé de Bode dos Oito Baixos. Este tinha nome e sobrenome no forró, ia agradar, deixar saudades e débito de gratidão. Foi o que aconteceu, tudo correu nos trinques. A trégua seguia direitim da porteira pra fora, mas no quintal, aquela jagunçada toda, à toa, ciscando terreiro, estava incomodando e muito. Era homem demais, bigode demais, rodeando e espiando. A patroa e as meninas ficavam acanhadas, embaraçadas, para fazer suas necessidades, quando tinham que usar o banheiro fora da casa, muitas vezes de camisolas, sujeitas aos olhares compridos daqueles marmanjos zoiudos. A cabrada toda sem ter o que fazer, sem ter para onde ir, sem serviço para executar, afinal só havia mesmo o marasmo da paz para cumprir. Já tinham limpado as orelhas dos animais, escovado os pelos, ensebado as selas, os arreios, lubrificado as carabinas, amolado as peixeiras, cosido os trapos de roupas, só não findavam os berros e as apostas do jogo interminável do truco. Foi indo, foi indo, até que o Coronel, ou era Capitão, resolveu acabar com aquele trança-trança, aquele furdunço no quintal e dar uma ocupação para o bando todo, nem que fosse numa parte do dia. De manhã cedo, decidido, bateu para o comercinho e pediu socorro ao Padre Guinaldo. Contou a situação difícil que estava passando, a impossibilidade de desfazer dos homens, a inabilidade deles de mexer com roça e campear gado, o compromisso que tinha com cada um e até o receio, cruz-credo, do tempo de conflito com o vizinho voltar. O vigário acalmou o Homem, explicou seu plano e pediu para reunir a tropa no dia seguinte de manhã. Dito e feito. De manhãzinha o Padre chegou, o Coronel bateu umas palmas, deu uns gritos e a jagunçada se reuniu toda, serelepe, disposta. Mandou os homi tirar os chapéus em respeito, tossiu e emendou grave: “Ó pessoal, cês tão muito à toa, esta situação de atoice ainda vai continuar sabe lá Deus quanto tempo e eu vou ter que ocupar ocês com alguma coisa. Conversei com Padre Guinaldo e resolvemos qu`ocês vão diquirí leitura. Isto mesmo, di-qui-rí lei-tu-ra. Já arrumei caderno, lápis, giz e um quadro negro. A partir de amanhã quero ocês tudo aqui, sem faltar nenhum e de café tomado!”. À frente da cabrada macha, tomou a palavra o Andalécio, de diversos serviços bem prestados e sacramentados: “Coroné, Coroné, prá que isso, pra quê nóis vaí diquirí leitura numa altura dessa da vida? Que serventia vai tê essa dificulidade toda?” Foi aquele branco. Nem o Coronel nem o padre respondeu de pronto. Os jagunços começaram olhar uns pros outros naquela sem razão, naquela sem precisão, uns até levantaram os ombros sem entender, até que o Coronel tomou um gole de pensamento e arrematou: - Imagine, Andalécio, volta a guerra, eu escrevo um bilhete procês: “ Matar o cumpadre Pedro!” Cês num sabe lê e matam o cumpadre João... “Ó ocês tudo criminoso!” |
Por Ucho Ribeiro - 27/6/2011 15:39:41 |
Serra do Bento Soares Spix e Martius, naturistas alemães, em viagem pelo Brasil (*) a procura de espécies de nossa flora e fauna, chegaram em Formigas (antiga Montes Claros) exatamente no dia 12 de julho de 1818. No relato, ao aproximarem do nosso povoado, vindos da região de Itacambira, enxergaram de estampa a nossa famigerada serra, hoje chamada de Serra do Mel, do Melo e da Sapucaia. Naquela época, era apenas Serra de Bento Soares. Vejam a narração: “A 12 de julho, avistamos à nossa frente uma parte da Serra de Bento Soares, e, ao anoitecer, chegamos ao Arraial de Formigas, situado numa vargem ao pé desta serra baixa. Os habitantes deste pequeno povoado, constituído de algumas filas de cabanas baixas, todas de barro, são, como filhos do sertão, mal afamados como brigões e por seu banditismo, e não pareciam possuir a bela virtude da hospitalidade dos seus vizinhos: demo-nos por felizes, ao achar abrigo sob a coberta do mercado, até que o amável vigário nos convidasse para a sua casa. Formigas negocia com os produtos do sertão: gado e cavalos, couros crus de boi, de veados, estes últimos curtidos grosseiramente, toicinho, porém, sobretudo salitre, extraído em grande quantidade das cavernas calcárias próximas. Estas grutas também eram de grande interesse para nós, porque deviam conter ossada de enormes animais desconhecidos, dos quais já muitas vezes nos haviam falado no sertão. No distrito de Formigas existem várias cavernas de salitre: a Lapa do Rio Lagoinha, a Lapa do Miréllis no Ribeirão Pacuí, da qual se extraíram 4.000 arrobas de salitre; as lapas do Cedro, Buriti, Boqueirão, etc. A mais importante, porém, entre todas, pareceu-nos a Lapa Grande, porque nela foram encontradas as tais ossadas de animais primitivos.(...) Foi aqui (na Lapa Grande), sobre um dos degraus de cima, que um dos nossos guias achou, há sete anos, uma costela de seis pés de comprimento e outros restos de ossadas de um animal primitivo. Cavamos na argila fina, que reveste esta região da caverna com uma camada de 4 a 8 polegadas, e foi grande a nossa alegria, ao acharmos, não ossos grandes, é verdade, mas alguns fragmentos, que nos deram a certeza de se tratar dos restos de um Megalonix, sobretudo achamos vértebras, metacarpos e últimas falanges. (...) Partimos de Formigas a 17 de julho, e tomamos, em direção noroeste, o caminho de Contendas (...)” Reiterando a mensagem nº 46.063, de 13/05/2009, volto a informar que o francês Auguste De Saint-Hilaire, quando em andanças pelo sertão mineiro, em 1817, um ano antes da viagem da dupla de naturistas alemães, desejou que geólogos pesquisassem as cavernas desta região a procura de ossadas de animais pré-históricos. Atentem para o sensato pedido de Saint-Hilaire, realizado há quase duzentos anos atrás, em seu livro Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais (**), e para respectiva nota de rodapé nº 486, na qual cita a passagem dos sábios viajantes Spix e Martius pela Lapa Grande. Transcritas, in verbis: “Seria para desejar que algum geólogo visitasse com cuidado as grotas do deserto. Encontraria aí provavelmente ossos fósseis, pois que me deram em Vila do Fanado um dente de mastodonte, que está atualmente no Museu de Paris, e me disseram ter sido encontrado em um terreno salitrado do sertão (...)” Nota nº 486 do naturista francês: “ Depois que esse capitulo foi redigido vi, pelo livro dos Srs. Spix e Martius, que eles realizaram o voto que eu exprimira. Os (futuros) geólogos provavelmente não lerão sem interesse a descrição que esses sábios deram da caverna vizinha de Formigas que chamaram de Lapa Grande, e onde encontraram ossadas de tapires, coatis, onças e Megalonyx (***).” Aí, pergunto: Conterrâneos meus, temos ou não temos que ir mais devagar com o andor ao analisar e aprovar a urbanização e os empreendimentos nos nossos valiosos sítios históricos e arqueológicos e até mesmo ambientais? (*) SPIX E MARTIUS; Viagem Pelo Brasil; Editora Itatiaia; São Paulo; Editora da Universidade de São Paulo,1981; paginas 79 e 80. (**) SAINT- HILAIRE, Augusto de; Viagem pelas Províncias de Rio de Janeiro e Minas Gerais; Editora Vila Rica, Belo Horizonte; 2000; página 312. (***) O Megalonyx, cujo nome significa " Garra gigante ", era uma preguiça gigantesca que viveu há 12 mil anos atrás durante o Pleistoceno e era do tamanho de um boi. |
Por Ucho Ribeiro - 20/6/2011 08:21:33 |
Fogo Morto Ucho Ribeiro Seu Argemiro dos Anjos, fazendeiro, erado, família criada, vivia viuvo e triste. Sem a patroa, ficou macambúzio, perdeu o cacoete para a vida. Não tinha onde ir, acuou. Não era destro para modernidades. Ficava ali na varanda da fazenda, jururu, fumando e cuspindo. O único amigo, o vaqueiro Isidoro, como um cão fiel, permanecia ao lado, preocupado. Mais não tinham o que conversar. Esgotaram o assunto há muito. Restaram olhares, gestos econômicos, monossílabos. Todos inteligíveis. O levantar das sobrancelhas era entendido, traduzido num átimo pelo parceiro. Com o tempo, Isidoro atinou que a única solução para o amigo era uma mulher nova para sacudir aquela poeira amontoada no patrão. Pensou: bode velho, capim novo. Precisava de uma moça, de um caramelo para adoçar a boca do amigo. Tinha que motivá-lo a viver melhor o naco final da vida. Por sorte, sua sobrinha, Elzinha, recém chegada de São Paulo, separada, carente de emprego, foi contratada para cozinhar e arrumar a casa da fazenda. Mulher nova, mas feita, vivida, inteira. Nos primeiros dias, ela deu um sacolejo na casa, abriu todas as janelas, pôs as roupas e os móveis para quarar, ariou as panelas, vasculhou as teias de aranha, passou vassoura em tudo. Isto na maior alegria, risonha e saltitante. A jovialidade somada aos adulos, cafezinho quente, sorrisos e comidinha supimpa, foram animando o Seu Argemiro. Com o tempo, aquele rufa-rufa pra lá e pra cá foi a conta para o fazendeiro começar a ciscar o terreiro, empinar a crista, zelar em roupas, banhos e passar até perfume. Da cidade trouxe, aos poucos, televisão, um som novo e sempre um agrado para Elzinha. O amigo Isidoro, que soprou a brasa, agora ficava de longe, na espreita, torcendo. Não deu outra, com seis meses Elzinha virou esposa do Seu Argemiro. Festão, alegrião e uma viagem para as Águas Quentes de Goiás. Argemiro tesudo, animado, nos primeiros dias até que acompanhou a saliência de Elzinha. Mas aqueles banhos quentes e o bate-bola a toda hora estavam demais. As pernas afrouxaram, a pressão despencou, o jeito foi pedir arrêglo: “ Elza, meu bem, você me desculpe, mas eu preciso de um descanso. Vá às compras, pega aí o dinheiro que precisar.” No retorno, Elza encontrou o Argemiro escornado, roncando pesado. Dormindo continuou até o amanhecer. Café tomado, de volta para o quarto, Elzinha já passou a soprar o cangote do velho. Vai daqui, vai dali, olha os dois embolados de novo nos lençóis. A noiva buliçosa apresentou umas novidades, umas variedades. Seu Argemiro animou e entrou em cancha. No decorrer da peleja, Elzinha foi empurrando carinhosamente a cabeça do marido corpo abaixo, seios... umbigo e depois mais para baixo ainda. O velho delicadamente resistia e ela firmava sua cabeça, até que Seu Argemiro refugou de vez e disse envergonhado: “Elzinha, meu anjo, me perdoe, eu faço qualquer coisa procê, mas o problema é que meu istômogo é fraquim, fraquim!” A lua de mel encerrou mais cedo, sob a desculpa da necessidade de resolver umas pendengas urgentes. Voltaram direto para a fazenda. Lá, talvez gemada, catuaba, ovo de codorna e a tal da novidade do viagra dessem um jeito no fogo de Elzinha. Mas que nada, o vapt vupt continuava direto e reto. O homem já estava trôpego, embolando as pernas. Seu Argemiro, para fugir do campo de batalha, passou a ficar mais no curral, nos pastos, ir para a cidade com desculpas de negócios, mas ao chegar em casa tinha que conferir. No desespero, procurou seu médico amigo, Dr. Maurício, e desabafou: ”Compadre, compadre, eu estou num calvário sem fim. Elzinha está me matando. Ela não se contenta com coisa alguma. O pior é que se eu afastar demais, corro o risco de chifre. Ai, Meu Deus! Imagine, chifre nesta idade! Estou tomando viagra igual se come pipoca. Você acredita, que ontem, ela me laçou de manhã, depois do almoço quis de novo e eu, com medo de mais uma investida, fui deitar no lusco-fusco da noite, sem bala na carabina. Veja bem o constrangimento, eu sem sono, deitado, de olhos fechados, fingindo de morto e ela a rodear a cama à espreita de um vacilo para me por na rinha. Para o meu azar, um fidumaégua dum mosquito posou na minha boca e ficou todo serelepe, zunindo as asinhas, ora nos meus lábios, ora na entrada do meu nariz. Zummmm. Aquele desespero todo sem eu poder fazer nada. Ave Maria! Estou numa situação de dar dó. Imagine, um homem que não pode matar nem um mosquito! Me ajude, compadre! Pelo amor de Deus!” Dr. Maurício, vendo o desespero do companheiro, mandou recado para Elzinha vir à cidade consultar – fazer um check up. Afinal, os parentes dela eram todos chagásicos e a maioria tinha morrido antes dos quarenta anos. Na semana, veio Elza acompanhada do Seu Argemiro. Consulta demorada, exame de tudo quanto é jeito, eletro, eco, esteira e a cara do médico cada vez mais preocupada. Chamou a secretária, pediu para cancelar umas consultas da tarde para poder dar atenção aquele caso raro, sujeito a todos os cuidados. Ao final alertou: “Dona Elza, a senhora tem um problema hereditário! O coração de vocês é uma bombinha fraca, delicada, qualquer esforço desliga os fios e bau-bau. A senhora não pode fazer força, agitar, carregar peso, tomar susto. Qualquer movimento brusco é um perigo, pode ser fatal. Os exames estão dizendo que seu coraçãozinho está por um triz. Até mesmo as obrigações do casal, da mulher, devem ser relevadas, pois a senhora corre um sério risco de vida. E o senhor, Seu Argemiro, faça-me o favor de não provocar a Dona Elza. Ela tem que passar longe de sexo, porque senão ela morre. Ouviu? Mor-re! Estou receitando um remediozinho para Dona Elza tomar todos os dias, para o calor passar e ela ter uma vida mais mansa, mais sossegada.” De volta para a fazenda, foi aquele muxoxo. Quartos separados, janelas fechadas, casa largada, rádio mudo. A alegria de outrora bateu asas. Os dias passavam, Elzinha olhava com olhar pidão e o marido Argemiro só alertava: “Elza, Elza, lembra do doutor! É para o seu bem, meu amor!” Passados mais uns dias, tarde da noite, o Argemiro escutou os passos da patroa à beira do quarto. Pra lá e pra cá. Até que ela bateu na porta. Toc! Toc! Argemiro então, perguntou: “ Quê que cê quer, Elzinha?” E ela: “Eu quero morrer!” |
Por Ucho Ribeiro - 13/6/2011 15:35:16 |
Viagem com Marão “Vambora! Vambora! Tá ficando de noite, gente!” Era assim, aos gritos e buzinando, que Marão, meu pai, chegava em casa, convocando a trupe toda para viajar. Podia ser para o Pentáurea, para a Jaíba, Rio ou Uruguai. Só viajava com o carro entulhado. Quando decidia fazer alguma viagem, levava todo mundo, parentes e aderentes. Nunca o vi preocupado se havia lugar, ou não, no carro para os convidados ou convocados. Sempre chegava com pressa: “Vambora, Vambora! Todo mundo fazendo xixi agora, para não pararmos à-toa na estrada!” Aí, era um corre-corre danado para catar as tralhas e brucutu dentro do carro. Ele sempre perguntava à mamãe: “Maria, você se lembrou de trazer a minha tesourinha?” Para ele, sua bagagem resumia-se numa tesourinha de unha das mais vagabundas e uma mala james bond fubenta e desbotada, onde guardava sua farmácia e o dinheiro. Hoje, desconfio que minha mãe já deixava uma malinha mais ou menos arrumada para as incertas de Marão. Com roupa nunca se importou. Ao rever as fotografias antigas, dá para vê-lo usando as mesmas camisas por décadas. Gostava mesmo era de ficar pelado, mas aí é uma outra estória. Ele e o motorista iam na frente com mais um ou dois meninos e o resto se amontoava nos bancos de trás da Kombi. O resto era a filharada, amigos, aderentes, convidados e a pobre da Maria Jacy. Uns nos colos dos outros e empilhados no bagageiro, junto com as malas. Antes de partir, não esquecia de catar todas as amostras grátis de remédios que tinha, mais as que pedia aos colegas, para medicar durante a viagem. Aí, dizia para o chofer: “Benjamim, passa na casa de Dona Terezinha para pegarmos uma paçoca e depois no mercado, para comprarmos andu, farinha e carne de sol, pois temos que adular fulano.” O fulano era um dos muitos amigos que iria encontrar. No mercado, era Dotô Mauro. Ao descer do carro o povo frechava. De estalo consultava uns três, mandava outros procurá-lo no consultório, receitava em papel de açougue, distribuía remédios e pomadas, alertando “tem que friccionar bastante, senão não sara”. Dava palpite em tudo que via, rubricava pedacinhos de papel autorizando a meninada assistir de graça a matinê em um dos cinemas que era sócio, gritava “Galooo” quando via um atleticano e comprava tudo num exagero sem fim. Nunca o vi comprar nada unitário, eram sempre dúzias, feixes, sacos, caixas, e quase sempre arrematava: “Quanto você quer por tudo?” Mamãe alertava-o: “Mário, onde nós vamos levar tudo isto?” Ele retrucava: “Óooo, no carro, Jacy!” O que não cabia no porta-malas ou no chão do carro, cabia em cima da gente. Mamãe até hoje não consegue viajar sem colocar uma sacola, uma caixa, no colo, mesmo se o carro estiver vazio. É viciadinha num embrulho. Na viagem, o compra-compra continuava. Marão não podia ver nada à beira da estrada que mandava o carro parar e da janela gritava: “Ô menino, quanto você quer pelo feixe de galinhas? O saco de pequi tá quanto? Você vende o resto da bandeja de quebra-queixo? Se fizer por tanto eu levo tudo!” Repassava o que comprava para os bancos de trás e nós, empoleirados, tínhamos que nos virar para agasalhar as compras. Dava carona para deus e o mundo. Viajávamos amontoados e tagarelando. Adorava polemizar e para tanto cobrava opinião de todos que estavam dentro do carro. Ficava instigando a gente a debater com ele. Muitas vezes defendia uma posição distinta da sua pelo simples prazer de polemizar. Tinha gosto em colocar seus galinhos na rinha, vê-los argumentar. Ora apoiava uns, ora outros. Tínhamos é que ter opinião sobre tudo. Durante o exílio de Tio Darcy, íamos para o Uruguai, nos anos 65 a 68. Papai, além de levar alguns filhos e Vovó Fininha, convidava um casal ou um amigo. Lembro-me de Tio Enio e Tia Marlene, de Sinval Amorim e Tita, da prima Mariazinha e Mânia de Tio Maurício. Na volta de Montevidéu, sempre trazia uns guerrilheiros camuflados no meio da numerosa família. Em 1966, Vovó, Mariazinha, Fred, onze anos, e eu, com dez, tivemos de voltar os 3.000 km de ônibus, porque na nossa Kombi vieram alguns canhotos amigos de Darcy e Brizola. Na ida, era um deus-nos-acuda, Marão carregava uma amostra de tudo que havia no mercado municipal, mais os doces, os biscoitos e as compotas de Vovó Fininha. Lembro-me até de um papagaio falador, chamado “Brasil”, que levamos para o tio matar as saudades. Afora a gente, os convidados, os presentes e as comidas, ele ia dando carona para todo mundo. De Minas ao Uruguai, os caroneiros que entravam no carro eram sabatinados por ele: “Você trabalha, com quê, para quem, cê estudou, quanto ganha, cativo ou livre, cê vota em quem, o que dá dinheiro aqui, como você enrola o seu patrão, você é sindicalizado?” Depois que chupava todas informações do sujeito, trocava o carona. Se o cara não gostasse de conversar, dava um jeito de terminar logo a ponga, “aqui está bom para você, não tá?”, colocava um outro ou uma outra no lugar e continuava a perguntação em portunhol: “A senhorita és donde? Tens marido? Quantos hijos? Tomas pilulas? Trabajas o dia todo fora de su habitacion? Acá as mujeres ganham iguale a los hombres? As escolas son em tiempo integral? Papai era a caricatura dele próprio. Espalhafatoso em público e introspectivo, pensativo, quando sozinho. Uma vez ele me disse: “Filho, muita gente pensa que eu sou doido, faço que sou, pois posso ser do jeito que eu quiser. Eles arranjam as desculpas para mim. Não preciso de ficar me justificando, cheio de dedos. Eu tenho pressa, não tenho paciência para formalidade, hipocrisia, nhém-nhém-nhém e disse-me-disses”. Ao arrancar o carro, Mamãe sempre fazia a chamada: “Pat? Presente! Ucho? Presente! Marquim? Presente! Mônica? Presente!”... Para não se esquecer dos seus filhos pelo caminho, como aconteceu com Fred, deixado na ermo Livramento. Marão sempre reclamava: “Para com esta ladainha, Jacy! Basta contá-los!” Nas paradas, Papai repetia: “Lembrem-se de fazer xixi.” Durante a viagem, se ficássemos apertados, tínhamos de urinar numa garrafa. O difícil era colocar a pingolinha no buraquinho com o carro sacolejando. A mira tinha de ser boa nas estradas de terra, senão respingava nos outros e era uma chiadeira só. Numas das voltas do Uruguai, acompanhados de um simpático casal de guerrilheiros, Fred perguntou ao homem: “Você trouxe sua garrafinha?” Ele olhou para sua parceira, sem entender, e ela ressabiada questionou: “Que garrafinha?” Fred, então, respondeu: “A de fazer xixi, porque Papai não pára não!” Bertha, minha irmã, sempre enjoava e começava a chorar, porque sabia que iria tomar injeção. Marão, com o carro em movimento, abria a maleta james bond, sacava uma ampola de Dramin, preparava a velha seringa e aplicava em Bertinha, aos esperneios. Ela era pequena e tomava a metade da dose para adulto. Papai, então, aplicava em Marcinha o resto que sobrava na seringa. Márcia, coitada, chorava e reclamava “eu não estou enjoada, eu não precisava tomar injeção.” Ele, em sua praticidade e economia, justificava: “Vai desperdiçar? Vai desperdiçar?” Quando parávamos para almoçar, ocupávamos várias mesas. Era aquele barulhão, juntava gente. Na confusão Marão distribuía comida e bebida para todos que aproximavam. Recordo-me de uma vez que um menino engraxava o seu sapato, enquanto Marão almoçava. Dava uma garfada para o menino, outra para ele, uma garfada para o menino, outra para ele. Até que Mamãe ralhou: “Mário, tenha modos!”. Ele de pronto argumentou: “Maria, Maria, e se este menino for Jesus Cristo?” |
Por Ucho Ribeiro - 5/6/2011 11:09:15 |
Senhor, escutai a nossa prece. Ucho Ribeiro Todo sábado, tínhamos que confessar os mesmos pecados. Antes da confissão, Fred, o mais velho, distribuía os pecadilhos. Dizia: - Marquim, cê fica com “desobedeci mamãe e briguei com meus irmãozinhos”; eu, com “falei coisas feias e pensei bobagens”; e Ucho com “magoei meus coleguinhas e fiz indecência.” Aí, eu chiava: - Cruz credo, de novo não, Fred, sacanagem! Não vou ficar novamente com as indecências! O severo Padre Dudu iria perguntar novamente de dentro daquele confessionário inquisidor: - Você fez indecências sozinho ou acompanhado? E eu, tremendo de medo, pequenino, borrando as calças, vendo as trevas do inferno, iria responder baixinho: - Sozinho! Depois de um humilhante sermão, Padre Dudu nos mandava rezar uma meia dúzia de Ave Marias para incinerar os pecados, que eram recitadas na rapidez de uma locução de uma corrida de cavalo – avmarichedgraçsenhôconvoscbendisovós... Nós, livres daqueles pecados, zeradinhos de tudo, tínhamos de segurar a onda e a santidade até a comunhão do dia seguinte. Teríamos de nos manter ocupados e pios, contentar-nos com brincadeiras e leituras pudicas para não deixar que as nossas cabecinhas virassem oficina do diabo. Muito cuidado, pois existia o vicio do pensamento, que nos pegava na curva ou num descuido. Indecências, cinco contra um e palavrões... nem pensar. A apimentada revistinha Catecismo do Zéfiro tinha que ficar no mais fundo da gaveta. Qualquer vacilo, aiai, não poderíamos comungar na missa do dia seguinte. Eu fazia de tudo para sair logo da igreja ao final da confissão, porque senão começavam as visões das imagens das Santas levantando as saias e piscando os olhos, para me atentar e pecar. Sabia que tentação era coisa do demo, não podia prestar atenção naquela pouca vergonha. Se acontecesse de cometer um pecadinhozinho de nadica de nada, estava ferrado, pois não poderia comungar na missa de domingo e toda a igreja saberia que eu era um pecador. Se comungasse com pecado, aí sim, a tragédia seria completa. Quando o padre colocasse a hóstia na minha boca, uma cachoeira do sangue de Jesus começaria a jorrar. Vexame e vergonha maior não poderiam existir. Imagine você todo tingido de vermelho lá na frente da Igreja, podia despedir-se de todo o mundo e pegar o caminho do inferno. Se pecássemos no sábado, depois de confessar, a estratégia era acordar cedinho no domingo e comer qualquer coisa, fingindo ter esquecido do jejum. Só podíamos comungar em jejum. Mesmo assim era uma tática manjada e a família toda sabia que algum pecadinho você tinha cometido e estava se safando. Na missa de domingo, o povo se juntava calado, lustroso, nos trinques, cada um vestia sua melhor roupa, a domingueira. Ao chegar perto da igreja, parávamos para limpar a poeira do calçado, esfregando o rosto do sapato na perna da calça. Os pais cumprimentavam-se formalmente, sérios e mudos. Os meninos se amontoavam em bolinhos para falar com excitação do faroeste em cartaz, que seria visto logo após a missa. Reunido o povo, sino batido, todos entravam na igreja. O sacerdote se dirigia ao altar enquanto se executava o cântico de entrada, fazia uma genuflexão, beijava o altar e iniciava a missa, de costas para todo mundo: In nomine Patri et Fíli et Spiritus Sancti. E todos, em pé, respondiam: Amen. Logo em seguida vinha o ato penitencial, quando o sacerdote exortava todos para arrepender dos pecados: Conifiteor Deo omnipotenti et vobis ... E todos batiam com a mão no peito ao confessar a culpa: mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Era uma culpa sem fim. Eu não entendia porque o padre celebrava a missa de costas e em latim. Jesus não falava esse idioma. Falava, com certeza, aramaico e possivelmente um pouco de hebraico, línguas da sua região. Depois me explicaram que a igreja se estabeleceu com sede em Roma e o latim era língua do Império Romano, o que permitiu a expansão da igreja por todos os domínios romanos. Pela regra, hoje, a igreja deveria adotar o inglês. Tentaram me explicar também que o celebrante ficava de costas para os fiéis para estar de frente para o sacrário, para Deus. Mas, para mim, a liturgia se reduzia a um espetáculo repetitivo, triste e sonolento. A toda hora recebia um beliscão para sentar, um beliscão para levantar, outro para ajoelhar. Boiava mais que tudo, a cabeça e os sentidos estavam no tiroteio do faroeste. As coisas mais alegrezinhas que tinha na missa eram: Saudai-vos uns aos outros, o sininho que tocava duas ou quatro vezes trilim-trilim e as três cruzinhas na fronte, na boca e no peito, quando o padre dizia: Dominus Vobiscum, e nós, Et com Spiritu tuo. Na época em que acabou o latim, nossa família já frequentava a paróquia do Padre Quirino na Santa Casa. Ir à missa melhorou demais. Já dava para acompanhar o senta e levanta: Oremos, levanta; Irmãos e Irmãs, senta; Senhor tem piedade de nós, abaixa a cabeça; Minha culpa, minha culpa, as batidinhas com a mão no peito; Trilim-trilim, ajoelha; Jesus tomou o cálice em suas mão, trilim-trilim, continua ajoelhado; Felizes os convidados à ceia do Senhor, levanta; Eu não sou digno que entreis em minha morada, ajoelha. Até que chegava no “Ide em paz e o Senhor vos acompanhe.” Deo Gratias! Ad Finite! Agora podíamos ir para o cinema. Missa de novo, só domingo que vem. Urgh! Quando surgiu o “Escutai as nossas preces”, foi o máximo. Os paroquianos passaram a poder dar um pitaco naquele monólogo monótono de só o padre falar, falar, dar broncas e puxar as nossas orelhas. Mamãe uma vez me deu um papelzinho para eu ler na hora das orações espontâneas e eu orgulhosamente li: “Pelo reestabelecimento da saúde de Irmã Dulce e dos enfermos da Santa Casa, rezemos ao Senhor”. E todos repetiram, uníssono: “Senhor, escutai a nossa prece”. Senti-me o máximo. Mas meu orgulho não durou muito, porque Eninho, meu primo menor, que há domingos estava bombando coragem para falar também na hora do “Escutai a nossa prece”, tomou ânimo, entusiasmou –se e resolveu se manifestar também. Ele tinha aprendido umas palavras novas e estava todo encantado com uma palavrona bonita e grande. Logo em seguida à minha prece, ele, altivamente, engatilhou a dele e disparou: “Para que o Padre Quirino e as Irmãs da Santa Casa tenham mais PERSONALIDADE, rezemos ao senhor!” E todos, querendo morrer de rir, responderam baixinho: - Senhor, escutai a nossa prece! |
Por Ucho Ribeiro - 31/5/2011 14:55:34 |
Sobre o óbvio Nenhuma grande novidade acontecerá na próxima eleição municipal de Montes Claros. Para que surja algo novo haveria que despontar uma liderança nova. Até o momento não surgiu ninguém com carisma e liderança para conduzir um processo de renovação na política de Montes Claros. Tampouco há um cidadão ou um grupo de cidadãos com um projeto político-social ambicioso para o porvir desta cidade. Pelo visto, nada de novo no front. Uma candidatura para ser construída deve seguir as determinações e as exigências da lei eleitoral e se pautar em alguma obviedades. Entretanto, quase a totalidade da população, que não se envolve com o processo eleitoral, e até mesmo os políticos novatos desconhecem o protocolo e os procedimentos essenciais à participação na vida pública. Já os os políticos tarimbados, conhecem, legislam e usufruem das regras e das normatizações eleitorais e inclusive das suas entrelinhas. Estrategicamente eles não alardeiam os ritos e os prazos exigidos pela lei eleitoral com o discreto propósito de perpetuarem no poder e de continuarem no domínio de seus partidos. Vamos, então, tornar públicas algumas regras e obviedades eleitorais: Primeira: Só pode ser candidato a prefeito, vice-prefeito, vereador e até presidente da república, quem for filiado em um partido político. Sem filiação não há nova candidatura (art. 11 da Lei 9.504/97). Segunda: O prazo para a filiação às próximas eleições municipais é 01/10/2011 (art. 9 da Lei 9.504/97). Isto mesmo, quem não filiar a uma legenda até o dia 1º de outubro deste ano não pode ser candidato nas próximas eleições municipais de 2012. O tempo é implacável, faltam apenas 4 meses para o prazo final de filiação. Se Lula, o Papa, Pelé ou Padre Henrique quiserem ser prefeito de Montes Claros e não filiarem até a mencionada data, bau-bau, não poderão ser candidatos. Terceira: Não adianta filiar e não ter o domínio do partido. A simples filiação não dá o direito de candidatar-se. A candidatura deverá ser homologada pelo diretório do partido até o dia 30 de junho do ano da realização das eleições (art. 8 da Lei 9.504/97). Assim, se o novo candidato não tiver a maioria dos delegados pode desistir de se lançar a um cargo majoritário. Vai nadar e morrer na praia. Cabe alertar que atualmente os partidos já têm donos. Todos os diretórios municipais já estão ocupados pelos conhecidos políticos de Montes Claros e seus correlegionários. Senão, vejamos: DEM (Jairo Athayde e Ruy Muniz), PSDB (Ana Maria), PMDB (Tadeu Leite), PPS (Humberto Souto e Athos Avelino), PP (Gil Pereira), PTB (Arlen Santiago), PT (Paulo Guedes), PDT (Carlos Pimenta), PV (Antônio Henrique e Ariosvaldo Melo). Restam basicamente os nanicos, que também, em sua maioria, já estão ou estarão controlados pelos experimentados caciques políticos. Donde se conclui que nas condições atuais será difícil um candidato novo conseguir um espaço numa grande legenda para se lançar a eleição majoritária. Os políticos de plantão não darão trincheira, munição e facilidades para um eminente adversário. Volto a afirmar que não basta apenas a pura filiação para surgir uma candidatura nova. O pretenso candidato terá que filiar-se numa legenda juntamente com um exército de companheiros irmanados no compromisso de disputar e ganhar a convenção partidária, para então lançar oficialmente sua candidatura. Parada dificílima. Quarta: Candidato em partido pequeno, sem coligação, não ganha eleição em cidade que tem programa eleitoral na televisão. Candidatura com pouco tempo de televisão não decola. Já dizia Duda Mendonça “as 3 coisas mais importantes numa eleição são: Televisão, Televisão e Televisão". O eficiente uso da web pode ser suplementarmente importante numa candidatura, mas o carro chefe de uma campanha eleitoral ainda será um criativo programa na TV. Sendo assim, se nos próximos quatro meses não surgir um meteoro político, um fenômeno eleitoral, o que é pouco provável, nenhuma grande novidade acontecerá na política de Montes Claros. E tudo estará como dantes no quartel de Abrantes. Trata-se de uma leitura fria e óbvia do cenário político montesclarence. |
Por Ucho Ribeiro - 23/5/2011 11:20:03 |
AULA DE DICÇÃO Éramos oito filhos barulhentos. Cada um mais estridente que o outro. Se um de nós quisesse dar alguma opinião tinha que elevar a voz, senão ninguém escutava, pois todos falavam ao mesmo tempo. Quem não estava acostumado, ao chegar lá em casa, achava que era briga. Eu tinha o apelido de Hermínia, nome da lavadeira, que falava igual à uma taquara rachada. A exceção era Marquim, famoso Zé do Grilo, que não era de muita conversa. Por muito, entrava mudo e saia calado. Gostava mesmo era de ir para o sítio Tira-Teima, ficar com vovô Pacífico à caça de passarinhos, pescar e cuidar dos bichos de estimação. Para diminuir aquela zoeira, esvaziar a casa e ter uns momentinhos de paz, Mamãe decidiu matricular a ninhada quase toda nos mais diversos cursos do recém criado Conservatório Lorenzo Fernandes. Pat, dez anos, foi fazer acordeom; Fred, que tinha nove, foi dedilhar piano; Mônica, com seis, se deu bem, foi lambuzar-se nas tintas do curso de arte. Já eu, oito anos, e Zé do Grilo, sete anos, fomos alistados para estudar DICÇÃO. Os outros, Paulim, Márcia e Berta eram pequenos demais para cursar qualquer coisa. Ficaram com as babás. O triste é que sobrou logo pra mim e Marquim aquela tal de Dicção que não tínhamos a mínima idéia do que seria. Segundo Mamãe, a professora era ótima, perfeita. Tratava-se da renomada educadora e artista, Dona Felicidade Tupinambá, que vivia para o Conservatório e tinha todos os alunos como filhos. O curso com certeza ajudar-me-ia a expressar mais pausado, civilizadamente, sem destramelos e estridência; e a Marquim a falar, desembuchar, pois vivia emudecido, na dele. A notícia foi um xarope, imagine estudar naquele ambiente mais feminino, cheio de frescuras e tric-trics. Queríamos mesmo é ficar soltos, sem horários, na larga, com a meninada no campo do Cassimiro. Fomos arrastados, macambúzios, para o primeiro dia de aula. Parecia que íamos para forca. Um suplício. Ao chegar, Dona Felicidade estava à porta à espera dos alunos, com um grande sorriso. Era alta, e mais alta ainda por causa dos seus saltos de sapato imensos e finos e do seu coque, dourado, empinado, no alto da cabeça. De homens, ou seja, de meninos, só tinha Marquim, eu e um garoto mais novo, de nome José. Este foi para corrigir sua fala rouca, grave e retumbante. Ainda hoje, ouço os seus rururus. O resto da sala era só de meninas, umas doze, todas animadíssimas, fresquíssimas, com vestidos de renda, frufrus, laçinhos nos cabelos, bolsinhas e um desprezo enorme pelo trio troglodita - nós três, Marquim, José e eu. A vergonha que sentíamos e o desprezo das meninas nos fizeram sentar lá atrás, na ultima fila. Sentamos, baixamos a cabeça e não abrimos a boca. As meninas, entretanto, comandadas por Ireninha, repetiam os trava-línguas no compasso das mãos da renomada Dona Feli Tupinambá: O RAA-TO ROO-EU A ROOU-PA ROO-XA DO REEI DE ROO-MA. O PE-LO DO PEI-TO DO PÉ DO PE-DRO É PRE-TO. Como não abriamos a boca, a professora resolveu chamar-nos à frente para desenhar alguma coisa no quadro, no intuito de conseguir a nossa participação na aula. Fui o primeiro a ser convocado. Envergonhado e sob o olhar crítico das meninas, desenhei duas bobaginhas ridículas. Ao terminar, de cabeça baixa, calado permaneci. Então, Dona Feli perguntou-me: - Ucho, que desenho é este? Eu respondi: - É uma casa. E ela de novo me arguiu: - E aqui do lado da casa, o que é? Eu, ainda cabisbaixo, falei: - Uma árvore. Ela, então, me cobriu de elogios, que eu tinha certeza de que eram falsos, ainda mais após assistir à saraivada de caretas da dúzia de meninas que ficavam na frente. Marquim foi o segundo a ser chamado. Mas Zé do Grilo não levantou, só balançou negativamente a cabeça. Empacado ficou. Foi quando a professora convidou José para ir à frente e ele saiu do nosso lado em direção ao quadro, na maior pompa. Todo empinado. Zé pegou o giz e já saiu de cara riscando uma linha horizontal de uma ponta à outra do quadro negro. Em seguida, voltou ao começo da lousa e riscou uma paralela que distava uns trinta centimetros da primeira. Ao final das paralelas, fez uma bola e um corte na ponta. Eu, então, já comecei a estranhar aquilo e a pensar besteira. Veio a culpa de pecar por pensamento e a certeza que teria de confessar ao Padre Dudu, no sábado. Pois não é que o Zé Mendes foi ao outro lado do quadro e fez mais duas bolonas no começo das paralelas? Aí, eu tive a convicção mesmo do que tinha imaginado, pois, pela cara da fessora, ela também teria de confessar ao Padre Dudu. Dona Felicidade Tupinambá, azulada, esverdeada, furta-cor, toda sem rosca, escorou na mesa e perguntou: - José, José, você desenhou um dragão, não foi? Ele, posudo e orgulhoso, disparou com a vozona grossa, retumbante e inocente: “NÃO, ISTO É A RÔLA DO HOMI!” O mundo parou. O silêncio tomou conta de tudo. Ficamos abestalhados, estupefados. Meu Deus do céu, de onde Zé tirou essa sandice mais doida? Depois de uns segundos de espanto e inércia, olhando para o vaidoso e pomposo Zé, Marquim partiu em disparada, a mais de mil, e eu, sem saber o que fazer, saí também, a toda, esbarrando nas cadeiras vazias e tropeçando nele. Pegamos a Rua Coronel Prates desembestados e rumamos para nossa casa no bairro Todos os Santos. Corríamos, corríamos, sem saber o porquê, afinal, não tínhamos nada a ver com a doidice de Zé, mas corríamos. Sinto-me como se estivesse correndo até hoje, sem culpa, mas culpado, pois eu tinha visto e ouvido aquela doidice. Em seguida, veio o medo de Dona Feli contar o ocorrido à Mamãe e nos culpar de ter arquitetado aquilo, pois José só tinha seis anos. Passamos a semana à espera de uma sova daquelas, que nunca veio. Só sei que jamais voltamos à aula de dicção. Ficou o dito pelo não dito. |
Por Ucho Ribeiro - 17/5/2011 14:09:09 |
Irineu Acordei turvo, sem vontades de cidade. Permaneci nos travesseiros, entocado, na tentativa de fugir dos ermos da consciência. Após relutâncias, arrastei-me até o refúgio do banheiro. Opaco, sem ideia, fiz acareações no espelho, contorcendo em embrulhadas caretas. Refugava o asco impregnado das urbes. A custo, esguiei pela casa, desviando da TV e de suas imprestáveis notícias, ensurdeci para os ruídos do rádio da cozinha. Sigilosamente, engoli o café, peguei as chaves, parti timidamente para enfrentar a ofuscante luz do dia. Em busca de sombras, confuso, fui despertado pelos latidos do meu cachorro Angus, convocando-me para um passeio, um devaneio. Entrei no carro. Abri a porta para o parceiro e saí desviando do centro, dos buracos, dos sinais e tráfego. Num ufa! peguei a estrada, escapuli. Montes Claros ficou para trás. Desliguei o ar, abri as janelas para a brisa azul. Céu matutino, temperatura branda, horizonte longínquo, nuvens em bolas e bolos, enfim sossego nas vistas. Apaziguei, baixei a velocidade e senti o vento na cara. Angus, de cabeça para fora, refrigerava sua língua. Easy rider. Relutava em não pensar em nada, mas o trânsito até Bocaiuva me laçava a realidade. Muitos carros, caminhões. Um azucrino. Resolvi, então, safar rumo ao Jequitinhonha. A estrada é outra, vazia, boa para divagar em bobeiras, lembranças, branduras. Pois foi o que aconteceu, remexi o baú das memórias, resgatei carinhos, gestos, delicadezas, reuni perdas e encontros. Borbulhei nos meus caldos. Adociquei meus recordos. O sorriso desabrochou, relaxei, desamarrotei. Olhei para o lado e Angus virou a cabeça, com a cara estalando gratidão. Ao passar por Olhos D`Águas, os meus marearam em cumplicidade. O caminho por instinto era Rio Preto, antiga Sapucaia, Felisberto Caldeira, hoje, São Gonçalo do Rio Preto. Não parei na cidade, fui direto para o mato, para casa de Irineu. Pronto, estava no porto das calmarias. Bom dia para cá, bom dia pra lá, meninos e patroas boas. Cumprimentos formalizados, a conversa então foi tomando os rumos da natureza, das perplexidades. - Ucho, o Jequitibá incorpou, taludou, mas os Ipês num firmaram, tão carecendo dágua. - Molha então, Irineu! - Num dianta água molhada, bom mesmo é as águas da misericórdia. Papo vai, papo vem, espaçado por pitos de cigarros de palha, tomamos a serra pela trilha ao fundo da casa. - E carrapato, Irineu? - Preocupa não, eles só vêm com a friagem, no orvalho. Maio ainda num tá frio pra tanto. Esbaforido, Angus nos seguia dando tibuns nos córregos d`água, refrescando-se. Eu com inveja, mergulhei também e caninamente refrigerei-me. Irineu, só riu. Daí a pouco, assuntando, profetizou: - Olha Ucho, hoje vai morrer um lá pelos lados do Alecrim. -Como você sabe? - Num tá ouvindo o canto do Coan(*) vindo de lá? É batata! No rumo que o Coan canta, nego espicha as pernas. - Ah, não sabia! Subimos mais serra, pulamos córregos, contornamos árvores, atravessamos cheiros de assa-peixe, capim gordura, gabiroba, sapucaia. Os passarins melodiavam toda a subida. E Irineu sanava minhas ignoranças. - Essa água corre o ano inteiro? - Ó Ucho, é seca e verde. Dagora em diante, ela imiúda, míngua, mas num corta. - E estes peixinhos, Irineu? Nessas alturas, como eles vieram parar aqui, bem perto da nascente? - Ô Ucho, peixe é microbi dàgua. Eles vêm é com o arco iris. Pronto, já tava bom. Fisguei o puro encanto. A poesia. Bendito. (*) Coan ou Acauã (herpetotheres cachinans) pertencente à família do gavião, habita o Cerrado, a Caatinga e as florestas úmidas. |
Por Ucho Ribeiro - 11/4/2011 21:17:07 |
(Na foto da direita para esquerda - agachados e sentados: Tio Enio, Costa, Joãozinho, Emerson, Genesco, Marcelo, Ucho, Da Roça, Roy, Demerval, Eustáquio. Em pé: Carlinhos, Deisy, Etienne, Marcelo, Marão, Tola, Pancho, Helio, Claudio, Marcos Brito e Salvador) SEM NEM Hoje o céu abaixou. De joelhos, agachou para resgatar Nem e sua alegria. Tiênio, tio Enio, tio de todos nós, passarim de pedra azul que há muito sentou pouso nos montes claros, foi-se, bateu asas, voou, subiu aos céus. Encantou-se. Ficamos a deus-dará. Sós, com nós no peito. Saudade sem voz, atroz. Sem rumo, prumo, sem canto, cantos - desamparados. Estamos órfãos de singeleza e afeto. Os pássaros desapareceram de cantar, os butecos emudeceram em minutos de silêncio, os peladeiros penduraram suas chuteiras, os pescadores recolheram suas linhas e os amigos se aninharam para suportar a ausência do Nem de todas as horas. É desse jeito! Foi-se o melhor de todos nós. |
Por Ucho Ribeiro - 21/3/2011 17:44:15 |
Consternado recebo a triste noticia do falecimento do Dr. Konstantin.Fica a saudade do médico, do artista e do amigo Konsta que mais parecia um personagem de um romance russo. Um papo bom, diferente. Uma alegria inteligente, com ironia e humor fino.Na juventude, sentávamos nos bares da vida para ouvi-lo contar suas longínquas lembranças da Bulgária, a longa travessia do Oceano Atlântico, a pequinês de nossa Montes Claros na sua infância e a boemia de Belo Horizonte nos anos 50.Irreverente, sempre cobrava indignação e ousadia da nossa juventude.Mestre das cores, do desenho, nosso maior artista fazia charge da vida. Retratava e ironizava o grotesco mundo a partir de suas ateias crenças, de seus amigos e das personalidades do século XX. Vá, Konta, feliz e em paz, encontrar com os seus: Andrey, Marão, Mauricinho, Mozart. Dr. Haroldo e Darcy.Um terno abraço a Dona Yede, a Rayu e a Igor. |
Por Ucho Ribeiro - 1/12/2010 16:22:43 |
Conterrâneos desterrados! Vocês, que a muito, vivem longe da terrinha, vão morrer de inveja, vão ficar "aguano"! Começou a safra do nosso velho e saboroso pequi. O aroma e as cascas já estão por toda parte. O povo está rindo de pança cheia. Ao passar pelo mercado municipal, a caminho do meu trabalho, esbarro no movimento dos carrinhos de mão, transportando e espalhando o fruto amarelo para todos os cantos da cidade. Carregam-no, debulhado, a céu aberto, a exalar cheiros e desejos. Levam o riso solto, o contentamento dos monteclarences. Como dizem alguns: é a "Flor de Zíaco". Até semana passada, só encontrávamos a falsa fruta amarela do longínquo Goiás. Estávamos sujeitos a um pequizinho chocho, sem gosto e sem polpa. Agora não, é cada bitelo, de dar água na boca. Alguns parecem uma manga ubá, da cor da gema caipira. Não precisa nem roer, dá até para morder. Os vendedores os separam pela cor e pelo tamanho e barganham no preço: "melhor não tem, só quando chegar os de Campo Azul". Outros já retrucam, "bom mesmo são os de Ibiaí”. O programa começa já nas compras. Tudo é motivo para tomar uma e mais outra nos preparativos do arroz com pequi. No mercado, ao comprar a carninha de sol, o tomatinho pocan, o coentro verdinho, a pimenta de cheiro, é inevitável o convite de um conhecido para uma talagada da boa. Ora, ninguém é de ferro! Em casa, na hora do almoço, é um cheiro só, o aroma vem também das casas vizinhas, é a alegria que reina ao redor da panela amarela. Alguns de vocês, talvez por estarem a muito tempo fora destas terras norte mineiras, esqueceram a receita do arroz com pequi. Cada família tem a sua, mas de qualquer forma, segue abaixo uma receita supimpa - da alegria e da satisfação. MODO DE PREPARO Primeiro abra uma cerveja. Ponha no copo e prove. Tá gelada? Então, dê um ou mais goles para encarar a empreitada. É serviço sério e você precisa estar atinado. Em seguida, em uma panela, cozinhe por uns dez minutos os pequis, com bastante água e sal a gosto. Lembre-se, os pequis que vão a panela não podem ficar completamente cozido. Bem, mas alguns pequis devem ser preparados, em separado, como tira-gosto, para ser comido com a senhora farinha de Morro Alto. Afinal, somos filhos de Deus e não vamos ficar esperando o arroz está pronto para comer um pequizinho. Passado o primeiro passo, mais um golinho na loira e um didal na pinga. Roa uns pequis, conte umas potocas e vanglorie o seu arroz. Isto fará bem pra você e para o prato. Ele gosta de elogios. Aí, então, corte a costelinha e a carne de sol em pequenos cubos e refogue em outra panela grande com corante (muito pouco porque o pequi vai colorir o arroz), alho, cebola e sal. Tome mais uma cervejinha e dê um trisca na pinguinha. Caiu na raia certa? Ótimo, tome ajuizadamente outra pequetita. Acrescente o arroz e frite sempre mexendo, até começar a pregar no fundo da panela. Aí, cuidado, tome uma rapidinho e despeje o pequi pré-cozido juntamente com sua água na panela do arroz. Prove o sal e acrescente o tomatinho pocan e a pimenta de cheiro. Misture, coloque tampa na panela e pronto. Teremos 15 a 20 minutos para tomar uma e outras, sossegado, enquanto o arroz com pequi cozinha em fogo brando. Quando estiver cozido o arroz, salpique o tempero verde por cima da panela e sirva quente. Pronto, está feita a festa! Sucesso garantido! E aí, aguaram ou não aguaram? Atenção, Atenção! Cuidado com as atividades mais faceiras, pois o bicho, embora restaure as forças geradoras, é remoso e pode dar uma indigestão daquelas. Quem sabe até dá congestão, ai, ai... Caso interessem, segue abaixo a lista dos ingredientes: 4 dúzias de pequi de Campo Azul (dos graudos); 4 copos de arroz; 1 quilo de carne de sol; ½ quilo de costelinha; 1 xícara pequena de óleo de cozinha; 1 cebola grande; 1 cabeça de alho; ½ quilo de tomate pocan (regateiro) – aquele pequeninho, redondinho; 1 colher sopa de corante; Coentro verde em bolinhas; Pimenta de cheiro; Tempero verde picado; Sal; Farinha de Morro Alto; Cerveja a rodo e pinga a revelia. Se eu fosse vocês, e estivesse apartado a tempo, aproveitaria este dezembrozinho chuvoso e daria um pulinho aqui na terrinha para matar a saudade do arroz com pequi. |
Por Ucho Ribeiro - 20/8/2010 16:10:13 |
Meninos e meninas, Agosto me traz a lembrança redemoinhos empoeirados, que bailavam pela cidade. Densas cirandas de ventos que eu pulava dentro, de um pé só, ressabiado, a procura do Saci Pererê e de suas estripulias. Era o mês dos ventos soprantes de araras, papagaios e pipas. Alísios que alçavam minha sureca (arara sem rabiola), vermelhamarela, losangular, saliente e atrevida. Raia que coroava o azul morno dos céus. Os ventos chegavam sorrateiros, sem avisar, soprando devagarzinho, brisazinhas. Com o decorrer dos dias, iam engrossando, tomando corpo, e brotavam os redemoinhos. A meninada não tinha consciência cronológica dos ritos da natureza, agia instintivamente. Ventou, então estava na hora de soltar pipa. Assim, a primeira semana de agosto era gasta no gosto de manufaturar araras e manivelas, de providenciar, no escondido, o pó de vidro e a cola de madeira para o cerol. De arranjar as taliscas de bambu no Pequi de Joani e descolar uns trocados para comprar os papéis de seda coloridos e os carretéis de linha 40 na lojinha do Seu Tamiro, na Travessa Cônego Marcos. A chegada dos ventos levava a criançada para os finais das ruas, para os mangueiros, onde não havia postes de luz, nem os inimigos fios, ladrões dos artefatos de alegria. Ventanias que embicavam pelas ruas soprando catopés e embaralhando suas fitas de cores vivas. Poeira e brancura. Puras. Nós, meninos, só queríamos olhar para os céus e ver nossas araras nas maiores alturas, sublimes, como um gavião reinante à caça de uma presa. Ficávamos de butuca a procura de outra pipa, içada por meninos de outros bairros. Os territórios e domínios da garotada eram demarcados pelos limites das ruas, mas o céu não era de ninguém. Lá em cima, no campo de batalha, valia tudo. Então, se víssemos uma arara empinada o desafio era certo e a conquista era resgatá-la com classe. A manha era dar fortes toques na linha, fazendo a pipa mergulhar lateralmente, em velocidade, até alcançar e laçar em 360º a outra linha descuidada. Fisgada, enlaçada, com ligeireza recolhíamos a presa na manivela e ficávamos no aguardo do envergonhado dono a procura da sua arara derrotada. O orgulho espirrava de satisfação. Aqui pra nós, pretéritos tantos anos, confesso: perdi a maioria das batalhas. Eu gostava mesmo era de “Cabaspará’, que meus primos de Belo Horizonte chamavam de ”Pentes Altas.” Passados os ventos de agosto, a poeira, os catopês, os amarelos e roxos dos ipês, setembro surgia mais quente e trazia chuvas esporádicas. O pó sumia, a terra dura amolecia, os riscos das fincas e as bilóias apareciam. A meninada descalça, sem nem bem saber, esquecia as pipas, e furava o chão macio com o dedão. Estava na hora de desentocar as bolinhas de gude. Dum dia para outro, não havia uma esquina que não tinha um bolo de meninos no “Gute please, todos”. Era assim mesmo, com essa mistura de inglês e português, que iniciava a partida de bolinha. Daí, um o garoto dizia: “bololô na minha, não dou nada e quero tudo”. Nada mais ditatorial. Quem gritasse primeiro esta frase, além de não poder ser alvejado, mesmo “estando no jeito”, tinha direito a todas regalias, mandingas e favorecimentos, tais como: mão quieta, mãos nos peitos, rondas... Cada um tinha sua bolinha sorteira (da sorte), o bolofofo (bolinha grande da cor de café com leite), a esfera minúscula e as “olho de gato” de matar de inveja. E quem não brincou de “Guerau”, que traduzido ao Far West de outrora queria dizer “Get yours hands up”. Bem, meninos e meninas de antigamente, deu saudade, né? Então, mate-a! Neste sábado, dia 21/08, às 20 horas, no Skema Kent, estaremos reunidos para relembrar a nossa infância, quando “Éramos Felizes e Sabíamos”. Apareça lá, e vamos reviver nossa Montes Claros Criança! |
Por Ucho Ribeiro - 1/7/2010 14:52:46 |
MENINICES Sentados na cozinha da nossa casa, Marcinha e eu, garotos, ouvíamos embevecidos a prosa do tempo do onça de nossa avó Eny com a antiga cozinheira Joana. Recordavam conhecidos, distantes a muito: comadres, sinhás, agregados... Joana coava um cafezinho e vigiava os biscoitos no forno. Vovó, aposentada a pouco do Dnocs, balançava a perna, pitava e soltava a fumaça em rodopios. Volta e meia entrelaçava os dedos e rodava os polegares em círculo. Para frente e para trás. Pressa? Nenhuma. A conversa ia maneira, parecia uma pescaria. Silêncio, silêncio, até que uma fisgava na memória um relembramento: “Ih, e Sá Joaquina? Passava roupa que era uma beleza. Tudo engomadinho, limpinho, alvim, alvim... Ouvi falar que uma neta dela, uma dos olhos gateados, amigou com um policial e mudou lá pros lados do batalhão. Mas num tá gostando não, dizem que o homem bate nela.” Papo vai, papo vem, volta e meia pintava um pedinte para receber sua concha de feijão, que meus pais costumavam doar aos necessitados. Na cozinha, ficava um saco de mantimento, no seco e verde, que era distribuído no decorrer dos dias, ordeiramente, sem atropelos. Quando acabava, Benjamin, um empregado amigo, repunha um novo saco ao pé da porta. Os mendicantes chegavam a nossa casa, que não tinha os altos muros de hoje, entravam pela garagem, punham a cara na porta da cozinha, davam um “bôoa”, estendiam seu embornal, ganhavam uma porção de feijão, deixavam um “Deus lhes abençoe” e iam embora providos. Uns, mais íntimos da cozinheira, eram adulados com café, pão e até prato de comida. Retribuíam o donativo com as novas da cidade, o disse-me-disse, um fuxico: “O menino de Leonel Beirão brigou lá nos Morrinhos, teve facada e tudo mais”. Conversa vai, conversa vem, de súbito, surgiu um tipo horrendo, sujo, esfarrapado. A feiúra e o rompante foram tais que nos deram um grande susto. A pequena Marcinha, assombrada, abriu a boca. Num átimo, eu disparei: “tira a máscara, homem, tira a máscara, que ela pára de chorar”. Foi uma gargalhada só. Passado o susto, os risos, as desculpas e a falta de graça, logo que o feioso foi embora, vovó Eny consolou minha mancada contando uma outra de sua filha Maria Jacy, minha mãe, quando menina. Relembrou que outrora os viajantes a cavalo pousavam nas fazendas de conhecidos que ficavam nas ermas travessias. Normalmente, um cavalariano vinha na frente, avisando que fulano ou fulana com mais sicrano e beltrano iriam chegar ao final da tarde e solicitava pouso. O aviso evitava que o proprietário fosse pego desprevenido, dava tempo para lustrar a casa, esticar as roupas de cama, preparar uma comidinha e providenciar água quente para o banho tcheco. Ou melhor, tcheco, tcheco. Pois bem, Vovó avisada da vinda da Sinhá Tiana, deixou escapulir, na frente da filha Jacy, a seguinte observação: “Oh, gente, a comadre Sebastiana é tão boa, tão prendada, mas dá pena a feiúra dela.” Cici, pois, pequetita, ouviu aquilo e ficou esperando a chegada do estrupício. Lá pelas tantas, já entardecendo, foram para porta da fazenda aguardar o cortejo. Chegaram, desapearam. A menina Cici observava tudo, tanta gente nova, o cumprimenteiro geral, e não tirava os olhos da Sinhá Tiana, até que destramelou: “Uê, mãe, a comadre é feia, mas não é tão hor-ro-ro-sa assim como a senhora falô!” |
Por Ucho Ribeiro - 26/6/2010 20:14:46 |
Cansado, fugi hoje pela zona rural para tomar umas e saborear um franguinho, se possível, com abóbora e quiabo. Nem tão distante da cidade, encontrei um boteco com as portas viradas para o nascente, ventilado, debaixo de um frondoso pau-d`óleo. O céu estava azul junho, os cavalos amarrados ao redor e o povo curtindo o solzinho fresco. Entrei, cumprimentei apoucado uns e outros, pedi uma cerveja, encomendei o frango, avisei a falta de pressa e sentei numa mesa de madeira, ao canto. No princípio, fiquei assuntando a pouca conversa que girava sobre temas locais. Na parede do fundo, a copa era transmitida pela TV. O som baixinho. Depois de ter tomado umas duas, desinibi, enturmei e caí aos poucos numa prosa amistosa e descompromissada com os moradores. Lá pelas tantas do segundo tempo, um deles me argüiu: “Oh, moço, esta Coréia e Uruguai são times de São Paulo ou do Rio de Janeiro?”. Senti até alma que estava no lugar certo. |
Por Ucho Ribeiro - 12/6/2010 09:21:06 |
MONTES CLAROS LHE DEVIA PAIXÃO. Ray Colares, que o consagrado Helio Oiticica vaticinou, na década de 70, ser “o grande jovem gênio brasileiro”, ressentia profundamente não ser reconhecido pelos montesclarenses. Lembro-me, no Rio de Janeiro, Baixo Gávea, Ray inconsolável, em pranto, lamentoso por seus conterrâneos não o conhecerem e nem valorizarem seu trabalho. Entre um chopp e uma lamúria, sofejava: “E mês que vem eu vou de trem pra Montes Claros...”. Para logo em seguida, retrucar: “Não tenho nada com isso nem vem falar. Eu não consigo entender sua lógica..”. “Cara, eu não entendo a lógica deles! Querem que eu seja artista e careta? Não dá! O Hélio é que dizia: Seja marginal, seja herói... Bicho, eles acham que eu aspiro é o abismo?” Já com um chopp na mesa, levantava, pedia alto ao garçom outro e mais um uísque. Ao sentar, com os olhos brilhando, jurava que ainda iria pintar o teto de sua imaginável Igreja de Nossa Senhora de Montes Claros, onde dançaria fitado com os catopés e marujos. Pensativo, silenciava por um tempo e questionava: “Será que os riscos dos meus ônibus, dos meus quadros, são inspirados nas fitas dos catopês?” Nisso batucava na mesa o som dos tambores e dava um sorriso de criança. Felicíssimo Colares. Ciclotímico, alternava momentos de depressão e excitação. Cantava “Amo Te Muito” para nossa Moczinha e em auto-reverse se dirigia aos desconhecíveis comensais das mesas ao lado, lamentando que ele não era querido em na sua cidade. “Lá, gente, imagine, eu só sou marginal, não sou artista”. Daí, num susto, abria o JB na mesa do bar e repudiava os elogios do jornal às suas exposições nas galerias Paulo Klabin e Sarramenha no Shopping da Gávea. “Olha, Ucho, o Morais - referindo-se ao crítico Frederico Morais - ao invés de se conter em comentar apenas meus trabalhos, está dizendo que a minha vida é trágica. TRÁGICA? Trágica é a fome! Trágico é operário cair de andaime! Trágico é office boy morrer eletrocutado em trilho de metrô! Minha vida não é trágica porra nenhuma!. Eu não entendo a lógica deles! Ray só queria ser amado, ser reconhecido. Era puro amor... não correspondido. Pois bem, passados 24 anos do encantamento de Ray, enfim Montes Claros, tutorada por Viviane, Feli, Caíco, Fabiola e Andréa, resgatará a dívida de reconhecimento com o homem e o artista Colares. Cem criativos montesclarenses foram convidados e se dispuseram a prestar um tributo ao nosso gênio das artes. Receberam um guarda-chuva, como um substrato, para interferirem artisticamente em homenagem a Ray Colares e sua obra. Os trabalhos de alta qualidade, estão divertidíssimos, bonitos de se ver numa exposição que acontecerá do dia 14 a 20 de junho, no Montes Claros Shopping Center. É bom lembrar que a mostra tem caráter filantrópico. Portanto, nesta segunda feira, dia 14, Ray receberá a maior demonstração de amor da sua cidade Montes Claros. Ele, agora, com certeza, estará encantado e em paz. RAYMUNDO ETERNAMENTE FELICÍSSIMO COLARES. |
Por Ucho Ribeiro - 24/5/2010 17:10:21 |
Existe uma pequena fábula conhecida e transmitida pelos apaixonados por cachorros, que é sobre a fidelidade do cão de Mozart. É a seguinte: Wolfgang Amadeus Mozart, o grande compositor, nasceu em 1756, em Salzburgo, na Áustria. Foi compositor do século XVIII e considerado um dos maiores músicos do mundo. Foi em Paris que suas primeiras obras publicadas apareceram, quando Wolfgang tinha apenas sete anos. Mozart foi reconhecido por reinados de toda Europa. Entretanto, nunca soube lidar com dinheiro. A exploração de sua bondade e genialidade musical logo surgiu por parte de grandes oportunistas. Com poucos anos de casado, começou a ver sua vida desabar. A mulher abandonou-o. A mãe, que adorava, adoeceu gravemente. Mozart, sem dinheiro, vendia composições em troca de remédios para sua genitora, que morreu após alguns meses. Abatido e desesperançoso, Mozart caiu enfermo. O seu fiel cachorro, o único amigo, foi quem ficou ao seu lado até o dia do seu falecimento, em 5 de Dezembro de 1791. Mozart foi enterrado numa vala comum, em Viena. Sua mulher, Constanze Weber, que residia em Paris, ao saber da morte de Mozart, voltou a Viena a fim de visitar o túmulo do marido. Ao chegar, entrou em desespero ao saber que Mozart havia sido enterrado como indigente, sem que lhe dessem nem uma placa com seu nome como lápide. Era dezembro, em pleno inverno europeu, fazia frio e chovia em Viena. Constanze resolveu vasculhar o cemitério à procura de alguma pista que pudesse dizer onde Mozart fora enterrado. Procurando entre os túmulos, viu um pequeno corpo, congelado pelo frio, em cima da terra batida. Chegando perto reconheceu o fiel cachorro de Mozart. Hoje, quem visitar Viena, verá um grande mausoléu, onde está o corpo de Mozart e de seu cachorro. Foi por causa do amor desse animal de estimação que Mozart pode ser achado e removido da vala comum onde fora enterrado. Ele permaneceu com seu dono até depois do final. Morreu junto ao tumulo de seu dono porque, sem ele, não poderia mais viver. |
Por Ucho Ribeiro - 20/8/2009 17:08:05 |
SER CATOPÊ Ucho Ribeiro Desde muito as cores das fitas e os sons das caixas dos Catopês me entorpecem. Quando criança, ao final da aula do Grupo D. João Pimenta, segui atordoado aquele tum-trum-tum estonteante, ouvindo encantado o espocar dos foguetes e o bem-vindo sininho da antiga Igreja do Rosário. Fiquei ali horas, boquiaberto, me deliciando com o enlevo dos movimentos e das saudações ao São Benedito. Estava em transe com tanta glória e encanto quando fui puxado pelas orelhas e esculhambado pelo meu sumiço. Vexado por ter causado preocupações aos mais velhos - e com receio de uma sova - careci de coragem para inquirir o que era aquilo tão alegre e tão comovente. Cresci desejando pular para dentro daquela roda, daquele cordão de contentamento, mas as voltas da vida me afastaram para longe. Do distante só restou saudade dos matizes vivos das fitas arco-íricas e o pesar de não ter-me misturado em meia-luas com os Catopês. Ao voltar à terra, a carranquice e o cotidiano sintonizaram-me às coisas menos importantes. O rito do dia a dia baixou a chama do menino, censurou seu fascínio e desejo catopêico. Vivi durante muito tempo um torpor para as coisas intangíveis, uma impassibilidade às ocorrências habituais, na busca peregrina do amplo acontecimento e da grande mudança. Entretanto, os trancos e arrancos da vida, aos solavancos, me ensinaram que o ritmo tem que ser outro. O segredo está na simplicidade. Temos que perceber que tudo é um milagre e nosso maior poder é a capacidade de sempre agradecer a Deus. É a gratidão. Resolvi, então, afrouxar. Frouxar a vida, as rédeas, os quereres e as rigidezes. Deixar estar. Procurar a humildade, que é a fé na sua expressão mais sublime. Este desaperto do espírito somado aos incitamentos do Paulo Narciso, de Raquel e do meu padrinho Paulo Estevão, foram terminantes para tornar-me um Catopê. Paulo levou-me até Mestre João Faria, e o seu filho, o veterano PA, abençoou minha calorice. Raquel cuidou das minhas alegorias, emoldurando afetuosamente meu cocar com lantejoulas, miçangas e plumas de pavão. Na quarta-feira a noite, estava pronto para altear o mastro de Nossa Senhora do Rosário e misturar o tum-tum-tum do meu coração com o tum-trum-tum das caixas, surdos, tamborins e pandeiros dos Catopês. A emoção transbordava por todo lado, por todos os poros, e mais ainda porque Tavinho, meu filho, sairia também no terno. Iria viver o que não pude viver na minha infância. Ao chegar, Rubim e eu ouvimos o meu Mestre João Faria dizer: “Oh, os meninos, a alma precisa de festa.” E retrupicar : “Onde tem alegria não tem pecado”. Aquelas palavras bateram forte e de forma sagrada. Naquele momento decidi exercitar-me na fé e na alegria. Catopecizar na fé. Lembrar que a fé é o poder mágico. Isto não é uma coisa fácil, exatamente porque é muito simples. Procurei, então, esvaziar-me, deixar espaço para ela entrar. A alegria viria junto. Como veio. Ali, mais uma vez, aprendi que jamais devemos subestimar a simplicidade. Chegou a hora. Concentramo-nos em uma rua quieta e escura. Os Catopês, para mim anônimos e desconhecidos, fizeram uma fogueira para afinar seus instrumentos de batuque. Aproximaram os tamborins e as caixas de folia junto do fogo para esticar o couro e apurar o som. Eu a tudo observava, sem entender bem o sentido das coisas. Receava também não dar conta de acompanhar o ritmo. Virgínia, filha do historiador Hermes de Paula, dissera-me que acreditava que a palavra “Catopê” era um vocábulo africano que significava batuque e eu, pobre de mim, jamais soubera batucar. Partimos. Os dançantes me receberam como um deles e riram do meu desajeito. Ensinaram-me a batida de um toque lento e dois rapidinhos. Tum-trum-tum. Percebi que, além da fé, o riso é a única coisa que levam realmente a sério. Creio que é por isso que eles falam “brincar o Catopê”. Frouxei-me ao ver Tavo ao meu lado, saltitando e batendo seu pandeirinho. A respiração ficou ofegante. Os olhos marearam. A face deixou escapar um sorriso longo e verdadeiro – como todos os sorrisos deveriam ser. Daí em diante, relaxei de vez, mergulhei inteiro nas festas, a gosto, passei a quinta e sexta-feiras; o sábado e o domingo em desatino, em desvario. Voltei à minha menina Montes Claros, senti sua poeira e o seu calor, sua alegria. Experimentei o frescor da noite e o luar. Percebi, a cada passo, o lusco-fusco das luzes entrelaçar nas minhas fitas coloridas; senti o cheiro de manga rosa e do pequi. Ouvi os gritos alegres das crianças; o silêncio quieto das missas de Padre Quirino; vi em passeata as castas beatas irmãs imaculadas; o murmurejar dos mantras das novenas e dos terços. Relembrei o medo dos pecados e as pernas nas soltas camisolas das meretrizes da Rua de Baixo, prostitutas miúdas expulsas de casa pelo descuido no amor. Vesti-me dos redemoinhos poeirentos e voei alto em cor com as pipas e papagaios nos ventos do meio do ano. Senti o gosto dos infinitos biscoitos de Fininha, dos cocos e dos melados dos quebra-queixos de Mazaropi, dos tintos pirulitos em cone enfiados simetricamente na tábua pendurada ao pescoço de Pacífica. Ouvi em oração a sublime lamúria “Dê uma esmola a pobre cega que não pode caminhar...” Dilui-me em gostosos delírios. Andei fitado, colorido, em rodopios pelas antigas ruas de Montes Claros, ao lado da alegria de Leonel e sua boneca; da singeleza e inocência de Tuia e seu bico alvo; dos faniquitos de Requebra que Eu Te Dou Um Doce; da obsessão de João Doido com “Terezinha é minha”; da solidão do nômade Galinheiro e sua enorme tralha em mudança; da beleza e jovialidade de Lena, quando era doida; dos invertidos Olhos Dessa Muquiça e o seu caminhão paramentado; e de Manoel Quatrocentos com Gina Lolobrigida e seus “Ô Lalaica” – toquei minha caixa de folia carinhosamente para cada um deles. Eu os vi e os ouvi, graças ao transe que vivi nestes dias. Viver Catopê não passa despercebido, não deixa ninguém incólume. Ninguém que foi tocado por aquelas tentáculas fitas continua o mesmo. Dentro daquele turbilhão de emoção, percebi que além de fé e alegria, o que havia era solidariedade, generosidade e a mais terna amizade. Só consigo me lembrar dos brilhos dos nossos olhos e da frouxura dos nossos risos. Assim aconteceu comigo. E nada mais posso fazer agora do que agradecer por ter tido tamanha oportunidade de ser Catopê. Ser Catopê é para mim um doce que derrete lentamente na boca e que não se gasta nunca. Cada vez que os meus pés tocaram a calçada da Igrejinha do Rosário, ao lado de onde o sininho saúda a chegada dos Catopês, Marujos e Caboclinhos, e depois de testemunhar pelas ruas de Montes Claros as lágrimas, sorrisos e promessas dos meus conterrâneos, reafirmei o compromisso de devoção ao Divino, para sempre. Para o ano eu voltarei para cumprir nova missão. Viva os presentes. Viva os ausentes. O Catopê não tem fim... Aúi! |