Paulo Narciso
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Por Paulo Narciso - 14/5/2022 14:40:28 |
Despediu-se hoje, em Belo Horizonte, o desembargador Álvares Cabral. Fomos colegas na Faculdade de Direito da Universidade Católica de Minas Gerais, o embrião, o ponto de partida da PUC de hoje, onde atuei como assessor de imprensa do reitor dom Serafim Fernandes, ainda universitário. E nos tempos altos do jornal Estado de Minas (1970/1979), na época o quinto maior diário do Brasil. Nossa turma, formada em 1975, teve como professores uma dezena de presidentes do Tribunal de Justiça e um presidente do STF, o ministro Carlos Mário da Silva Veloso, também paraninfo. O lendário advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto esteve na formatura, para pessoalmente entregar ao não menos lendário Tristão de Athayde a medalha com o seu nome, instituída por sugestão da turma para homenagear anualmente - em nome da Universidade - os mais notáveis defensores pátrios dos Direitos Humanos daqueles dias, mas com conotação bem diversa da de agora. Hoje, Álvares Cabral despediu-se. A sua turma deu ao Judiciário de Minas outro destacado juiz - Rogério Fernal. Assim como Cabral, que foi juiz em Espinosa, Fernal atuou no Norte de Minas - em Coração de Jesus. Naqueles dias, repito, em que a atual PUC Minas comemorava os 25 anos de sua Faculdade de Direito, era nossa caloura uma aluna do ano imediatamente anterior, e que também chegou à presidência do STF - Cármen Lúcia. (Ela não sabe, mas um seu antepassado, bispo, inspirou o nome do meu pai, Lúcio). Álvares Cabral, alto, forte, sempre presente, vinha do seio de uma família de desembargadores e estava desde sempre decidido a chegar ao tribunal. Chegou, e pretendia lá permanecer por mais tempo - até ser surpreendido por enfermidade que o internou desde o ano passado. Hoje partiu. Partiu, evolou-se na antevéspera da Lua de iluminação de Buda, muito antes do que projetavam os seus sonhos caprichosamente esculpidos e acalentados, galgados enfim. Será sempre lembrado pela figura amena e atenciosa com os colegas, de nobre comportamento, prestativo, jovial e disposto, gentil numa palavra. Fará muita falta na fotografia que ora revejo, e guardo. Não a deixará jamais, e seu nome seguirá na agenda, ao alcance, sempre. Desembargador Álvares Cabral da Silva. Universidade Católica, BH, 1975. |
Por Paulo Narciso - 24/10/2021 06:46:11 |
Foi sepultado em Montes Claros, por volta das 15h deste sábado, o corpo do líder empresarial mineiro Lúcio Benquerer. Lúcio, nascido em Grão Mogol, sempre foi extremamente ligado a Montes Claros. Economista e líder empresarial em BH, onde foi presidente da Associação Comercial de Minas, esteve perto de disputar a prefeitura da capital, convidado por mais de um partido político - fato conhecido por poucos. Será lembrado como importante nome de Minas nos últimos 50 anos, até se recolher à sua cidade natal, onde notabilizou-se pela construção do presépio natural Mãos de Deus. Os últimos quase 2 anos, passou-os internado na Santa Casa de Montes Claros, depois do diagnóstico de problemas de fundo neurológico. Partiu aos 83 anos. A par de ser destacado nome das montanhas mineiras, a Lúcio ainda será prestado o reconhecimento de ser - (de ser sempre) - o defensor perpétuo dos interesses da região norte, desde quando se tornou um dos primeiros filhos a formar-se em economia, pelos anos 60. Por tempos, foi também o representante dos sócios minoritários da Petrobras. Sua vida, exemplar, exibirá para sempre o selo da correção, da gentileza incomum, e dos objetivos superiores - até os momentos finais e conclusivos. De Lúcio ainda se dirá que o nosso destino comum transitou por suas mãos, honradas e diligentes. (Foi um dos 6 fundadores da primeira rádio FM de Montes Claros - a Rádio 98FM Montes Claros, já agora aos 40 anos). Ontem, por fim, na singela e tocante cerimônia de despedida, no meio da tarde pós-tempestade, recordou-se frase de poeta persa, que nos adverte de que o tambor da morte nunca cessa. Contudo, para Lúcio Marcos Benquerer, o tambor tocou diferente. Ouviram, os que puderam ouvir, na tarde calma e leve, depois do vendaval. |
Por Paulo Narciso - 19/1/2021 05:59:21 |
Sem que quase ninguém saiba, M. Claros sepulta nesta terça-feira o corpo de um dos seus heróis históricos na área da imprensa, que teve dias de glória. Outros, diferentes dias. Morreu ontem, por volta das 16h, Tião Camurça, o célebre impressor de "O Jornal de Montes Claros", desde os anos 60 e até o seu fechamento, no final da década de 80. Era comum, naqueles dias, na cidade de 30, 40 mil habitantes, a pessoa que passasse de madrugada pela rua Dr. Santos, sede do jornal, ouvir o rumor da velha impressora trabalhando ainda de madrugada. Era Tião Camurça, sozinho, imprimindo, folha por folha, a edição do jornal. 3 mil exemplares, há 50 anos. Fato que se repetia nas madrugadas dos dias especiais, como Natal, Páscoa, etc., por décadas seguidas, até que a velha máquina, que imprimia uma folha por vez, silenciasse para sempre, relegada a um canto, a mais de um canto. Literalmente, a notícia que a pequena cidade consumia passava toda ela pelas mãos corretas de Tião Camurça, em longas e solitárias madrugadas, no velho, apagado casarão no centro da cidade, onde hoje ergue-se o prédio da Caixa Econômica Federal, algo insolente. E Tião sempre desempenhou o seu papel com humildade e presteza, com a convicção íntima do que lhe competia fazer em proveito de todos, sem nada pedir de volta. Muito além do folclórico Tião Camurça das ruas, cantor de boleros, boêmio, de enorme coração, intérprete de Noel Rosa, de Emilinha Borba, de Lupicínio Rodrigues, Adoniram Barbosa e Lamartine Babo. Craque, como eles, anônimo, quase sempre solitário, mendigo de atenção. Um Lima Barreto de província, embora nunca fosse visto escrevendo nada, com as mãos, sempre limpas. Não fará mais falta do que já vinha fazendo, há tempos. Um personagem da velha Montes Claros, que não passará. Ainda, uma lembrança. Tião, desde sempre, adorava cantar a imortal música de Nelson Cavaquinho: Sei que amanhã Quando eu morrer Os meus amigos vão dizer Que eu tinha bom coração Alguns até hão de chorar E querer me homenagear Fazendo de ouro um violão Mas depois que o tempo passar Sei que ninguém vai se lembrar Que eu fui embora Por isso é que eu penso assim Se alguém quiser fazer por mim Que faça agora Me dê as flores em vida O carinho, a mão amiga Para aliviar meus ais Depois que eu me chamar saudade Não preciso de vaidade Quero preces e nada mais |
Por Paulo Narciso - 5/11/2020 17:26:25 |
Montes Claros perdeu nesta tarde um dos seus personagens recentes. Aos 82 anos, partiu Mário Rodrigues, conhecido por Marinho. Nascido em Juramento, exatamente nas 7 Passagens, toda a vida esteve ligado ao setor rural (é associado dos mais antigos da Sociedade Rural) e foi representante das Rações Purina, daí também ser chamado de Marinho Purina. Tinha todo o tempo, para todos. De temperamento ameno, cordial e conciliador, colecionou milhares de amigos e era solicitado a toda hora. Discreto, leal, elegante nos princípios, prestativo, eternamente gentil, foi testemunha de acontecimentos importantes na vida da cidade nos últimos 70 anos, e conservou detalhes importantes de muito fatos. Deixa um casal de filhos e o exemplo do cidadão correto, escorreito, constante e fidalgo, imensamente humilde - no que a palavra incorpora de mais alto. A simplicidade na conduta, a escolha pela vida suave, comedida e sábia, o elevam ao patamar dos que melhor souberam viver, entre nós. O bom Marinho partiu como viveu - enorme também na hora de dizer adeus. Surpreeendido pela doença tenaz, fez a travessia em pouco mais de 1 mês, com a entrega e a solicitude que sempre foram a marca de vida tão alta quanto leve. (O sepultamento está marcado para as 14h desta sexta, com velório a partir das 23h de hoje, na Avenida Joao Luiz de Almeida 354) P.S. 1 - O bom Marinho que cito aqui sempre me levou ao Irmão Marinho, personagem da história dos primeiros dias da era Cristã, cujo corpo, soube recentemente, está depositado numa das centenas de igrejas de Veneza, que ainda pretendo visitar. Vale muito a pena conhecer. A história pode ter inspirado o imenso João Guimarães Rosa a construir o personagem principal de Grande Sertão: Veredas, Diadorim. O autor jamais omitiu suas místicas convicções, e o tempo as reforçou. 2 - Quando nesta sexta fomos levar os despojos ao escrínio da terra, ficou também claro que o cantante Marinho mereceu sua campa a pleno luar, que ele cantou, e amou. Mais: vimos, e ouvimos, que na primeira noite as diurnas cigarras de outubro - recuadas para novembro - deliberaram cantar. (Marinho segue íntimo da natureza, com quem também sempre dialogou). |
Por Paulo Narciso - 10/3/2020 14:05:22 |
A missa de Ressurreição de Zezé Colares, ontem, na Catedral, foi de muita emoção. O Banzé cantou suas músicas, e também as músicas da Igreja. Uma delas rodou por mais tempo por todo o templo, fixando a parte que dizia - "meu cansaço... que a outros descanse..." Contudo, o momento mais tocante foi quando - entre os filhos e netos de Zezé que se pronunciaram - apresentou-se um, pouco conhecido da M. Claros recente. Gregory, norte-americano na faixa dos 60 anos, deu depoimento emocionado, cortado por lágrimas. Disse que, aos 17 anos, estava em M. Claros, aí pelos anos quase 70, dando aulas na Cultura Inglesa, quando foi "adotado" como filho gringo do casal Zezé e João Carlos. Os laços da afeição profunda nunca se desfizeram. Intensificaram-se. Há poucos meses, ele mais uma vez veio visitar a mãe brasileira. Chorou muito, ao vê-la resignada a dormir. Na segunda-feira 2, ao saber que Zezé havia partido, depois da prolongada enfermidade, tomou o primeiro avião de Ohio, na região gelada dos grandes lagos dos EUA, e veio correndo, juntar-se "aos meus irmãos, cunhadas e sobrinhos". - Graças a Deus que ela fez parte da minha vida, e continua, com meus irmãos, cunhadas e sobrinhos - resumiu na fala tocante, interrompida pelas lágrimas, que então eram de muitos. Ao final, abraçado e consolado, juntou: - Vocês não sabem o que é chorar num voo de 8 horas, chorar sem parar! (Acima as anotações de Gregory para driblar as lágrimas no púlpito da Catedral, no ofício de Ressurreição de Zezé Colares, ontem, em Montes Claros) |
Por Paulo Narciso - 8/3/2020 11:38:25 |
Sexta-feira 16/8/2019 16:53:46 Uma vez mais, a Festa de Agosto - repetida ano a ano há quase ou mais de 200 anos pelas ruas centrais de Montes Claros - reserva surpresas. Uma voltou a ocorrer, hoje. Quando a banda da PM, implantada nos anos 50 pelo benemérito sargento Nadir, quando a banda passava pela Rua Camilo Prates, encerrando o cortejo do Reinado de São Benedito, seus membros receberam ordem de estacar, parar. O cortejo seguia. A banda parou no meio do quarteirão. Os músicos voltaram-se todos para um baixo muro de pedras, escuras. E passaram a tocar, sem aviso, a música que é o Hino da Nação Montesclarina, felizmente hino não oficial, a modinha Amo-te Muito. Poucos dispunham de informação para avaliar o momento, de emoção. Na casa de muro baixo, de pedras escuras, vindas de Grão Mogol, ali há cerca de 5 anos sua moradora resiste aos sintomas da doença da idade - o Alzheimer. Chama-se Zezé Colares, tem 89 anos, 5 filhos. É mecenas de Montes Claros. Migrou da agenda de socialite, das colunas sociais, para a benemerência cultural. A maior parte do tempo dorme, como uma bela adormecida. Serenamente, como nas histórias, estórias. Ontem, ainda ontem, foi levada para a varanda por onde passou o Reinado de Nossa Senhora, do Rosário. Nesta mesma festa, há mais de 80 anos, a menina Zezé, aos 4 anos, foi a rainha, na década de 30. Era tão difícil conseguir a vaga de Rei ou de Rainha de um dos desfiles que a escolha só podia ser feita por sorteio, entre tantos pretendentes. E um tio materno dela, solteiro, havia sido o sorteado. Então, Zezé e seu irmão Dio Colares foram os soberanos, imperadores do Divino. No começo desta tarde, a banda da PM então voltou-se para a casa de muro baixo e pedras escuras, e tocou o Amo-te Muito. Por merecidos motivos, interpretando o sentimento da cidade. Além de despertada cedo para os valores e princípios da cultura do sertão, Zezé, como foi dito, avançou da agenda social para a benemerência cultural, aí pelos anos 70. Fundou o Banzé e, com ele, levou centenas e centenas de jovens a visitar o mundo, percorrendo festivais em países da Europa e das Américas, arrancando aplausos para a alegria incomum que aquele corpo de jovens exibia por toda parte. Lembro-me bem: há 30 anos, numa cidade de altos penhascos sobre o mar da Normandia francesa, um produtor da TV despencou-se da torre de filmagem e aproximou-se de Zezé, aflito: - Senhora, por favor me explique: de onde esses seus jovens armazenam tanta alegria, impossível de ser vista, neste nível, no meu país, a França? Zezé ainda trouxe grupos de muitos países a visitar Montes Claros. E o intercâmbio, jovens de lá e de cá, reunidos pela cultura, pela arte, pela música, pela dança, produziu frutos. Enquanto a banda hoje tocava o Amo-te Muito, esta história de transmigração passou como num filme, no muro baixo de pedras escuras, na tarde ensolarada dos catopês. *** Domingo 8/3/2020 11:38:25 PS. Devo acrescentar. Somos primos. A mãe de Zezé é Narciso Soares, irmã do meu pai. Gente retirada, do arrebol, os 2: o do Levante e o Crepuscular. Existimos desde sempre do outro lado da ponte da Vila Brasília, uma plantação de uvas, videiras, e de sonhos, e onde no princípio do século passado uma família vinda de Diamantina para a cidade de 3 mil habitantes produzia vinhos finos, para missas, com uvas pisadas em grandes tonéis. Como nos filmes bíblicos. Eu ainda peguei o pisoteio, eu me lembro. Zezé teve vida de princesa, linda, educada nos melhores colégios, casamento com príncipe - o nunca igualado gentil homem chamado João Carlos Pena de Araújo Moreira, tão de todos nós. Por tempos, a vida social de M. Claros passava por ela. O Brasil tinha Carmen Mayrink Veiga. Nós, sempre teremos Zezé. Ela - com o empurrão de dona Marina - migrou para o mecenato. Foi pelo mundo cantar Montes Claros. E a modinha Amo-te Muito falava por nós, mais que tudo. Também vi, ouvi. Sua retirada agora, longamente cultivada numa cama de bela adormecida, é a parte conclusiva deste filme. Nos últimos anos, onde passo a maior parte do tempo é ensinado que o universo, de Uno, é um só e único giro, pois nada é particular e próprio. Também é revelado, de boca a ouvido: quando o discípulo está pronto, o mestre aparece... Rumi, poeta persa do século 13, o mesmo século de Francisco de Assis (e do Mestre Eckhart), o poeta Rumi nunca se cansou de ensinar, de repetir, de ciciar, como ainda agora: "Na verdade, somos uma só alma, tu e eu. Nos mostramos e nos escondemos tu em mim, eu em ti. Eis aqui o sentido profundo de minha relação contigo, Porque não existe, entre tu e eu, nem eu, nem tu." Portanto, inútil procurar por Zezé onde depositamos o seu corpo na torrencial chuva de segunda-feira, na penumbra que é só, e sempre será, o começo da eterna madrugada. Pois tudo gira. Amanhã (às 19, 30, na Catedral), cantaremos para Zezé o ofício da Ressurreição. Os albores, arrebóis. Levantes e Crepúsculos. Começos, recomeços. |
Por Paulo Narciso - 30/8/2019 10:04:16 |
30 de agosto. Hoje, M. Claros tem novo encontro com o dever de gratidão. Chega aos 90 anos, jovem, alegre, sempre disposta e alerta, a Irmã Guido, do Colégio Imaculada Conceição, da Congregação do Sagrado Coração de Maria. Embora Guido sugira nome brasileiro, a Irmã Guido é belga. Poucas pessoas em Montes Claros - pouquíssimas - a superam em identificação com a cultura à qual se entregou integralmente ainda por volta dos 20 anos. Deixou a Belgica e veio para o Brasil aí pelos anos 50, ou pouco antes. Jamais teve sotaque, e qualquer interlocutor terá dificuldades em identificar na sua fala escorreita uma belga, alguém que trocou um dos países mais civilizados e atualizados do mundo por uma nação emergente, silvestre flor do sertão ("Sempre Viva") das Américas; ermo, remoto lugar periférico do planeta. Veio da Bélgica, como padres e freiras, na dobra do século XX. A ajuda franca que prestaram à cidade - que à época tinha 20 mil habitantes, ou 3 mil, como nos dias das irmãs Odília, Beata e Canuta - a ajuda que trouxeram sem nada pedir torna a Bélgica nossa segunda irremovível pátria. Muitos de nós amamos a Bélgica como nossa terra genuína, graças aos padres e freiras que a predicação cristã enviou nesta direção. Uma legião deles: Beata, Canuta, Odília, Francisco Morreau, Amando, Estanislau, Pedro, Ciardo, Malvina, Chantal, Irene, Verla, tantos, tantas. (E sempre haverá um nome a ser acrescentado aqui). É preciso lembrar que a alta cultura belga (que acumula 11 prêmios Nobel, e que se opôs vigorosamente a Hitler) junto com padres e freiras nos enviou o que temos de mais precioso e nobre. Vale citar: a escola, o teatro, o jornal e, acima de tudo, princípios e valores; Fé - no que a palavra tem de superior, sem dogmatismos. Pois bem. Hoje, a gratidão de Montes Claros vai se re-unir em torno de Irmã Guido, para retribuição, pálida, comovida, permanente. E onde cabe um pedido: fica, segue conosco pelos próximos 90 anos. ("Senhor, já é tarde. Fica conosco"). Então, nosso olhar, agradecido, deve voar sobre o oceano e pousar em Berlaar, perto de Antuérpia, no minúsculo cemitério canônico que guarda as relíquias de abnegadas almas que se entregaram a nós, numa lista principiada pela Irmã Malvina. Se, como acreditamos, a Vida não cessa, há festa, hoje, no Céu e na Terra. (Na foto, duas das primeiras freiras belgas que chegaram a M. Claros, pouco depois da estreia, do dealbar dos anos 1900) |
Por Paulo Narciso - 16/8/2019 16:53:46 |
Uma vez mais, a Festa de Agosto - repetida ano a ano há quase ou mais de 200 anos pelas ruas centrais de Montes Claros - reserva surpresas. Uma voltou a ocorrer, hoje. Quando a banda da PM, implantada nos anos 50 pelo benemérito sargento Nadir, quando a banda passava pela Rua Camilo Prates, encerrando o cortejo do Reinado de São Benedito, seus membros receberam ordem de estacar, parar. O cortejo seguia. A banda parou no meio do quarteirão. Os músicos voltaram-se todos para um baixo muro de pedras, escuras. E passaram a tocar, sem aviso, a música que é o Hino da Nação Montesclarina, felizmente hino não oficial, a modinha Amo-te Muito. Poucos dispunham de informação para avaliar o momento, de emoção. Na casa de muro baixo, de pedras escuras, vindas de Grão Mogol, ali há cerca de 5 anos sua moradora resiste aos sintomas da doença da idade - o Alzheimer. Chama-se Zezé Colares, tem 89 anos, 5 filhos. É mecenas de Montes Claros. Migrou da agenda de socialite, das colunas sociais, para a benemerência cultural. A maior parte do tempo dorme, como uma bela adormecida. Serenamente, como nas histórias, estórias. Ontem, ainda ontem, foi levada para a varanda por onde passou o Reinado de Nossa Senhora, do Rosário. Nesta mesma festa, há mais de 80 anos, a menina Zezé, aos 4 anos, foi a rainha, na década de 30. Era tão difícil conseguir a vaga de Rei ou de Rainha de um dos desfiles que a escolha só podia ser feita por sorteio, entre tantos pretendentes. E um tio materno dela, solteiro, havia sido o sorteado. Então, Zezé e seu irmão Dio Colares foram os soberanos, imperadores do Divino. No começo desta tarde, a banda da PM então voltou-se para a casa de muro baixo e pedras escuras, e tocou o Amo-te Muito. Por merecidos motivos, interpretando o sentimento da cidade. Além de ter sido despertada cedo para os valores e princípios da cultura do sertão, Zezé, como foi dito, migrou da agenda social para a benemerência cultural, aí pelos anos 70. Fundou o Banzé e, com ele, levou centenas e centenas de jovens a visitar o mundo, percorrendo festivais em países da Europa e das Américas, extraindo aplausos para a alegria incomum que aquele corpo de jovens exibia por toda parte. Lembro-me bem: há 30 anos, numa cidade de altos penhascos sobre o mar da Normandia francesa, um produtor da TV despencou-se da torre de filmagem e aproximou-se de Zezé, aflito: - Senhora, por favor me explique: de onde esses seus jovens armazenam tanta alegria, impossível de ser vista, neste nível, no meu país, a França? Posteriormente, Zezé trouxe grupos de muitos países a visitar Montes Claros. E, o intercâmbio, jovens de lá e de cá, reunidos pela cultura, pela arte, pela música, pela dança, trouxe múltiplos frutos. Enquanto a banda hoje tocava o Amo-te Muito, esta história de transmigração passou como um filme, no muro baixo de pedras escuras, na tarde ensolarada dos catopês. *** Ainda o desfile de hoje. Lá estavam, uma vez mais, as sobrinhas de Dona Custodinha, o anjo da guarda de Marujos, Catopês e Caboclinhos. Anonimamente, ela segurou a festa pelas décadas de 30, 40, 50. Era a sua família, na casa modesta nos fundos da Matriz, de onde o rumor dos catopês vazava para a cidade além. O detalhe: as sobrinhas acompanharam o desfile hoje em cadeiras de rodas, no meio e entre alas dos adorados catopês da tia, há muito cantando "quem fez foi o Rei da Glória" diretamente no Céu. *** Ainda os Catopês, apelido de um congado muito próprio de Montes Claros: com o crescimento das festas, comerciantes mais atualizados começaram a enfeitar suas lojas com as cores de Marujos, Caboclinhos e, claro, dos Catopês. Para o ano, estudam criar uma promoção em todo o comércio, voltada para a data. Querem contribuir com a festa, aumentando as vendas no período e fortalecendo a economia e o turismo, numa data que volta a ser a preferida dos montes-clarenses ausentes. Nem Doutor Hermes, que impediu o desaparecimento da festa nos anos 60, sonhou tão alto. Entre os catopês deste ano estava o presidente do CDL. |
Por Paulo Narciso - 15/9/2018 20:16:33 |
Derrubaram hoje, a golpes de trator, a única homenagem de M. Claros a um dos seus filhos mais venerados pela recente história mineira. O sábado foi usado para fazer desaparecer a construção que na Rua Hermenegildo Chaves, ao lado da Matriz, sustentava a placa colocada ali para celebrar - na modestíssima viela que tem o seu nome - as comemorações pelo centenário deste excepcional jornalista. Irmão do poeta e seresteiro João Chaves, com ele co-autor de modinhas inapagáveis. Não tiveram o cuidado de retirar a placa de honra, lançada e recolhida entre os escombros de uma construção centenária, sustentada por aroeiras, quase defronte à velha Escola Normal. E onde nasceu a cidade que Monzeca amou. Exatamente atrás da primeira casa do primordial ajuntamento, a do fundador. Monzeca, era este o seu nome de alma. A notícia instantâneamente chegou a grandes amigos e admiradores na imprensa brasileira, que a receberam compungidos. Um deles, para lembrar um, chamou-se Rubem Braga. O maior cronista do Brasil. Numa de suas páginas, reverenciou Monzeca, ao ter notícias de que o velho mestre e amigo continuava frequentando a Rua Goiás 36, sede do jornal Estado de Minas. Onde, diariamente, tinha o costume de comer bolinhos de feijão. Rubem Braga então registrou em livro: se Monzeca continua lá, Minas existe, e eu confio em Minas. Monzeca, por tempos, asilou a velha alma de Minas. Útil ainda lembrar, na tarde doída: já morto em 1968, foi de Monzeca o editorial de primeira página em toda a então poderosa cadeia dos Diários Associados que anunciou ao Brasil a morte de Assis Chatreaubriand. O velho capitão vinha doente. O editorial permanecia pronto para a emergência do anúncio. O tempo foi passando. Monzeca morreu, Chateaubriand ainda demorou um ano ou mais, e quando o desenlace veio ninguém se apresentou, à altura, para substituir o panegírico já composto nas oficinas. Tinha o título "Um infortúnio Nacional". O infortúnio de hoje, o golpe anônimo, e por isso mais doloroso, contra a memória de Montes Claros em torno de um filho venerado na imprensa nacional, mais conhecido e mais celebrado do que na própria terra, o golpe é cava ferida. Que dói, desalenta mais do que revolta, e permanece. Tristemente, ocorre no momento em que M. Claros, por conta de um atentado contra candidato a presidente da República, frequenta desairosamente todas as bocas, num largo murmúrio pátrio. Monzeca é o oposto desta página, melancólica também para nós. Dolorosa. Sempre que se ouviu o seu nome, em qualquer parte, imediatamente a menção faz erguer clima de profundo respeito, e acatamento, em preito devido ao que há de mais alto no humanismo das Minas. É este o sentimento que hoje soluça, contido. Estamos de luto. Monzeca, em vida, foi extremamente modesto, como o são os grandes homens. Certamente, não ligaria. Porém, os que conhecem a expressão do que foi a sua conduta, humana e de sábio, tendo apenas o curso primário, estes, estamos desolados. (Vivo, Monzeca nos faria calar, e obedeceríamos. Morto, é ainda maior do que vivo. Não desce a escombros). |
Por Paulo Narciso - 3/9/2018 16:35:40 |
A nove meses de alcançar os 100 anos, deixou-nos ontem a benemérita professora Rosita Aquino, de persistente família de abnegados educadores. Era viúva do Sr. Aquino, da Rede Ferroviária Federal, e da extração superior do movimento maçônico local, referência segura em todas as horas. Dona Rosita - foi lembrado hoje, ainda ali no campo santo -, além de professora da antiga e respeitada Escola Normal, atuou como braço direito do educador João Luiz de Almeida, no Instituto Norte Mineiro da Educação. Ele mesmo um expoente da brilhante geração de Cataguases. Aos 90 anos, dona Rosita Aquino comemorou a data, cercada do aplauso geral. E toda a cidade já se movimentava para comemorar o seu centenário, em maio de 2019. Iguala-se, no reconhecimento mais alto, a mestres como Ivonne Silveira, também centenária, Irmã de Lourdes, professor Francolino Santos e a primeira leva de irmãos Maristas que chegou a M. Claros, nos anos 60, como o espanhol Irmão Jaime Damião, além de muitos, muitos outros. Mestres aos quais muito deve a nossa gratidão. A professora Rosita Aquino ascende ao panteão dos mestres eternos de uma cidade eternamente devedora. |
Por Paulo Narciso - 4/5/2018 19:49:48 |
Morreu Décio Gonçalves Queiroz, aos 87 anos. Foi um dos pais da moderna imprensa de M. Claros. Imprensa que nasceu em fins do século 19. Resistiu nas páginas da Gazeta do Norte por toda a primeira metade do século 20. E deu floradas na metade seguinte. O jornal de Oswaldo Antunes veio imediatamente nos anos 50, e chamava-se "O Jornal de Montes Claros". "O Diário de Montes Claros", de Décio, desembarcou nos anos 60. Foram editados corretamente numa cidade que ainda não tinha 100 mil habitantes, mas que consumia quase 7 mil exemplares diários, vespertinos, em 3 edições semanais. Era tiragem memorável, para tempos heróicos, não inferiores aos de hoje, e talvez muito mais brilhantes. Tempos inolvidáveis. Além de ótima circulação para aldeia provinciana e doce, apesar da fama de brava, os 2 jornais ainda produziram uma dezenas de excelentes repórteres e tipógrafos, qualificados. E quase que morreram juntos, fisicamente, materialmente, depois de décadas de bons e continuados serviços. Isto é, não morreram - deixaram de circular. A história de cada um perdurará por muito tempo, porque as produções do espírito não se inclinam à lei da morte, e persistem, e prosseguem, e duram, porque destinados a uma instância superior da vida evanescente. Mas, esta é outra história, para outra hora. Hoje, basta dizer que a cidade selou à terra um seu benfeitor, novamente ao entardecer. Décio Gonçalves. Sempre teve boa saúde, até que o coração precisou ser reparado, há alguns anos. Depois, vieram as dificuldades da idade. Ontem à noite, noite da quinta-feira 3 de maio, deixou-nos. Ainda há pouco, voltamos da cerimônia em que o devolvemos ao princípio, e recomeço. Neste breve, atrasado, tosco, canhestro registro de um personagem que merece mais, é preciso acrescentar: Décio Gonçalves Queiroz será lembrado. (PS - Para lembrar. Décio partiu no mesmo dia em que uma mãe, durante assalto diurno a clínica médica, ajoelhou-se para proteger com o corpo a filha de colo. Significa que a luta de tantos anos foi insuficiente para fazer recuar a barbárie. Aí também é preciso recomeçar, e lutar outro tanto, e isto o faremos, debaixo do seu exemplo). |
Por Paulo Narciso - 23/11/2017 09:59:43 |
Uma triste notícia para M. Claros na manhã nublada (mas ainda sem as muitas chuvas que esperamos todos): partiu nesta madrugada, aos 100 anos, o poeta, compositor, memorialista e industrial Luiz de Paula, também autor da música que eternizou o centenário de M. Claros. Em 27 de junho último, ascendeu ao restrito grupo de centenários e, ainda que acamado nos últimos tempos, manteve-se alerta e laborioso. Muito se falará da sua carreira profissional e de líder rotariano, entre outras coisas. Muito. Seguirá, em tantos outros, a lembrança do humanista reservado e cauteloso, prudente, que manteve olhar profundo para desventrar a natureza, e seus mistérios, e que preservou oculta ternura para penetrar o clarão rebuçado da vida. Ao morrer, Sócrates concluiu que os cisnes eram caluniados. Não cantam pela iminência da morte. Cantam pelo rebroto da vida. (O velório foi transferido da Santa Casa para o anexo da Câmara Municipal, a partir das 10h30m, com sepultamento às 17h). |
Por Paulo Narciso - 25/7/2017 16:55:22 |
Porciúncula. Ou Santa Maria dos Anjos. Assim se chama a diminuta igreja que na Úmbria gelada (perto do Rubicão transposto por Júlio César e suas legiões) reuniu Francesco Bernardoni, Bernardo de Quintavalle, Leão, Rufino e Ângelo. Século XII, 1182/1226. Francesco se converteria, no milênio seguinte, no homem mais lembrado no Ocidente. Então, já aclamado e reconhecido como Francisco de Assis. A sua igrejinha, ao lado da qual morreu, cego e nu, cantando e ouvindo cantar o Cântico das Criaturas, rogando ser retirado do catre e depositado no chão, para entregar-se à irmã morte, a Porciúncula mãe de todas as igrejinhas continua lá, aos pés de Assis. Abrigada sob monumental basílica, que re-une os peregrinos do mundo, a nave mãe deixa de existir quando se contempla, na miudinha Porciúncula, o mistério que lá foi morar. Isto tudo me lembrei, hoje pela manhã, durante a chegada de imagem enviada de Santiago de Compostela, na Espanha, para empolgar a igreja do apóstolo em M. Claros, erguida por Padre Henrique Munaiz. De Compostela - literalmente "campo de estrelas". Por mais que tudo ali dissesse, e repetisse, que o homenageado é discípulo direto de Jesus, encarregado de levar a boa nova ao finisterre, ao fim da terra, e por ela morrer; por mais que o piedoso Bispo Alberto e Padre Henrique detalhassem os motivos da homenagem, saí convencido de que a capelinha, mais uma levantada por Padre Henrique, em mim existirá sempre como a Porciúncula de M. Claros, tamanha a semelhança espiritual que a une à original, no Monte Subásio, e pela história do francesco local, que a anima, que é a sua alma. A réplica da imagem de Santiago está lá, desde hoje entronizada, e sempre haveremos de voltar aos seus pés. Sempre que for, direi intimamente, sem que Padre Henrique ouça, que vou à Porciúncula dos Montes Claros. Sem que Santiago, filho de Zebedeu, irmão de João Evangelista, se zangue, pois a história de um é a história repetida do outro, nas suas consequências e resultados. Montes Claros, de uma vez, ganha duas rotas universais de peregrinação: a da Porciúncula e a do Campo de Estrelas. (E que se credite logo à nova igreja, pois assim entre nós chamamos os templos, um primeiro grande milagre, de consolação. Estava hoje na igreja, aos 91 anos, serena como sempre, bela como sempre, lúcida como nunca, luminosa, Dona Terezinha Gomes Ribeiro. Primeira dama da cidade nos anos 60, esposa do prefeito Simeão Ribeiro Pires. Filha de Benedito Gomes e de Doxa, gente nossa de uma vida inteira. Veio dizer, sem traço de desesperança ou inquietude, mas de profunda e imperturbável aceitação, que há uma semana perdeu o filho mais novo. No templo também minúsculo, no ofício que certamente principiou no "campo de estrelas", na Galícia que gerou a nossa língua portuguesa, ninguém permaneceu mais tempo em pé, e de pé, do que ela, Terezinha de Simeão. Ninguém refletiu serenidade superior. Santa Maria Angeli agiu, pensei. Santiago acolitou. Francesco, cego, cantando, trouxe o anjo da consolação que assistiu o próprio Cristo nos momentos finais da cena do Calvário). *** PS - 25 de Julho, Dia de Santiago de Compostela, no Ocidente. No Oriente, Dia de Babaji, o avatar que há milhares de anos dialoga com os vivos no corpo de um jovem de 18 anos. Mistério. |
Por Paulo Narciso - 27/6/2017 08:33:59 |
No livro Efemérides Montesclarenses, o agrimensor/historiador Nelson Viana, curvelano que amou nossa cultura com um extremo que poucos filhos originais de Montes Claros conseguiram alcançar, Nelson Viana registrou, em 1962, na data reservada ao dia de hoje, 27 de junho: "1917 - Nasce em Várzea da Palma, Minas, o dr. Luiz de Paula Ferreira, filho de Joaquim de Paula Ferreira e dona Emília Mendonça de Paula. Fêz o curso primário em sua terra natal, em Montes Claros, e em Pirapora, o secundário em Montes Claros, diplomando-se, como Contador, em 1942 e bacharelando-se em Direito, em 1957. Tem exercido os seguintes cargos: Secretário, Diretor e Presidente do Rotary Clube de Montes Claros, Diretor da Companhia Telefônica, da Associação Comercial, do Pentáurea Clube e do Clube Montes Claros". Hoje, distantes 55 anos do ano em que o livro foi lançado, Luiz de Paula completa 100 anos, com a descendência reunida ao seu redor. No livro, que examina com lupa 255 anos da história local - de 1707, ano do começo, a 1962, ano do livro - há muito o que acrescentar. Que Luiz de Paula é o autor, melodia e letra, da música que celebra, como nenhuma outra, o centenário de cidade, em 1957, e que toda a gente carinhosamente chama de "Montes Claros Vovó Centenária". ("E os morrinhos, com a capelinha/Onde minha mãezinha/Rezava orações/ E onde à noite os teus poetas cantores/Falavam de amores/Em ternas canções") Que Luiz de Paula, entre milhares de alunos, foi o paradigma dos que passaram pelo Instituto Norte-Mineiro de Educação, no depoimento jubiloso do seu criador, o santanense João Luiz de Almeida, nascido na Cataguases de Humberto Mauro e do Movimento Verde. Que passou pela política, pelos clubes de serviço, pela seresta e pela poesia. Foi usineiro e industrial. Em 1967, deputado federal, levou a Seresta João Chaves a cantar no Palácio da Alvorada e lá, cantando, arrancou a ordem para asfaltar o que restava de terra na poeirenta estrada entre M. Claros/BH. Que sua iniciativa, no fim dos anos 60, está no embrião da universidade que hoje, por dobras e redobras, reitora o ensino superior em M. Claros e pelo Norte de Minas. Ensino superior, que mais perto do que longe, absorverá a "Universidade do Grande Sertão", em homenagem a Guimarães Rosa, no território dos seus sonhos e dos sonhos de Riobaldo e Diadorim. (Homenagem invertida, em que o homenageado confere prestígio e visibilidade ao homenageador). Tudo tem muita importância, muita, para nós e para a história do que se reuniu aqui, e que teve em Luiz de Paula, nos últimos 100 anos, uma referência segura e preciosa. Contudo, penso agora, nenhuma importância, abaixo das nuvens, por superior que seja, excede o gosto de ler, reler, tresler, os textos de Luiz de Paula. Como os abaixo selecionados por sua filha Isabel, para festejar este 27 de Junho. Muitos publicados inicialmente aqui, neste raso montesclaros.com Por fim: nas notícias que nos últimos anos nos vêm de Luiz de Paula, hoje centenário, hoje morando no pé dos montes claros, no sopé da serra que é a nossa atalaia, bom é saber de sua alegria quando a chuva se aproxima e vai, enfim, cair sobre nós, o ser-tão. Suponho que no clarão da chuva, que ilumina desde sempre sua música e sua poesia, Luiz vem nos ver, visitar, em cada ponto da cidade que adotou, e que ama. E que hoje, aqui pelas campinas de um junho frio, canta o seu centenário. *** Agora, Luiz de Paula, na seleçao da filha Isabel: Palavras a Isabel "Antes, aqui, Cantavam as siriemas ..." Em nossa próxima visita à minha terra, se quiseres caminhar comigo pelas velhas trilhas em que andei na infância, me darás muita alegria. Na caminhada, se a qualquer altura me sentires desatento, como se esquecido estivesse da tua companhia, por favor, se tal acontecer, ainda que por breve momento, não tomes isso como desapreço à tua pessoa. És minha esposa. A terna e querida companheira que escolhi para toda minha vida. Muito do que rabisco nestes pobres cadernos é para ti. Poderá acontecer que minha atenção seja momentaneamente desviada. É que as velhas trilhas costumam, às vezes, falar-me de um menino que por elas andou, de bodoque e anzol, a pescar ariscas matrinxãs e a caçar passarinhos - pés descalços e braços nus, como disse o poeta. A compartilhar manhãs de ouro e crepúsculos inesquecíveis com a velha Serra do Cabral, com os arroios, matas e campinas. A trilhar caminhos de graciosas curvas, cujas margens estavam quase sempre enfeitadas de cipós e flores. Em um tempo em que o mundo era todo dele. E em que o futuro era uma promessa mágica e colorida de sucesso e venturas que jamais teriam fim. Num tempo em que havia em volta dele um universo humano do qual compartilhavam todas as pessoas do seu amor. Muitas das quais só existem hoje no altar de suas saudades. Mas isso, se vier a ocorrer, não durará mais que um breve instante. E digo mais. Se andares comigo mais vezes, pelas velhas trilhas, estou certo de que elas serão capazes de um dia conversar também contigo. *** A Poesia Necessária A frase é de Voltaire. Ele disse: “a poesia é necessária à criatura humana”. Realmente, na vivência do dia-a-dia, no trabalho diário, muitas vezes prosaico e não inspirativo, parece que vamos nos tornando carentes da participação do belo. E a vontade de ouvir uma bela canção, de visualizar uma cena inspiradora, de relembrar um poema ou de compor uma frase sugestiva, faz-se presente a doer na alma. Até pessoas menos sensíveis à estética da vida, menos vulneráveis à abordagem poética, até essas, pressionadas por emoções mais fortes, movimentam as engrenagens de seus sensores cerebrais e se expressam, bem ou mal, em linguagem não trivial. Estou chegando aos 90 anos. Em minha caminhada a poesia visitoume algumas vezes. *** O Tempo O tempo é um estranho pássaro que voa de asas leves, as penas da cor do vento. Quem viu o pássaro do tempo? Dizem que olhos sofridos vêem o tempo conduzindo o conteúdo do mundo pela estrada do amanhã. Lá vai o tempo levando o rosto moço que eu tinha e o jeito descuidado de rir das coisas da vida! O tempo é um pássaro de seda, as asas da cor do momento... Todo dia o tempo faz e todo dia desfaz. - Estranho pássaro é o tempo.. *** A convidada da tarde Tardes vividas em outros tempos, acontece, embora raramente, as reencontrarmos. O mesmo sol, os pássaros, o cheiro e a leveza da brisa, as nuvens respaldadas em luz. Tardes que um dia, quem sabe, iluminaram nossa infância. Talvez a própria infância do mundo. Tinha a tarde quase tudo que um mágico e inspirado abril de belo pode ofertar. Sol claro-ouro de sonho campo em matiz perfumado e a brisa a balouçar cachos floridos na estrada. Rente à relva um regato feliz passava e no céu de ouro claro e azul, voavam pássaros festivos. Tarde mágica de abril, tarde de todas as eras, sem idade, tarde eterna. No sortilégio que havia, pensamentos e lembranças despiram o azul do tempo e foram banhar-se nas águas do regato que passava. E aquela que trago comigo, em meu peito enclausurada, saltou lépida ao ar livre e voluteou sobre a relva, plena de graça e de encantos na alegria do recreio. A tarde ficou mais bela na sinfonia das cores e na brisa que passava vinha um suave perfume de artemísias e sálvias. Mas quando se decompôs o arco-íris do tempo no esmaecer vespertino desfez-se o painel de luz. E a que viera com a tarde, com a tarde se esfumou. *** Montes Claros De mim para você, Montes Claros, há um respeito, um carinho, um amor tão grande como se em cada letra de seu nome houvesse um pedaço de mim. Em cada rua sua, em cada pedra de seu chão eu me sinto presente desde os tempos mais distantes. Incrustado. Ontem e hoje. Sempre. *** O povoado Antes era a Serra do Cabral, o Rio das Velhas e os Campos Gerais onde cantavam as seriemas. Depois veio o apito do trem. E a rua. Sem nome. Simplesmente a rua. E a Venda. Ao fundo a velha Caraíba, teimosa testemunha que restou do tempo em que cantavam as seriemas *** Litígio Meu coração em meu peito vive um caso de direito que convida ao raciocínio. Eu tenho a posse, entretanto, pra meu tormento e espanto és tu que tens o domínio. *** Um hábito salutar Meus lábios, louvado Deus, jamais tocaram em cachaça, a meus pais devo essa graça que norteia os passos meus. Entre nobres ou plebeus, diante de um trago dela - da branquinha ou da amarela, balanço-a pra lá e pra cá e com a prática que o tempo dá jogo direto na goela. *** Amanhecer na fazenda de Chico Tófani É de manhã, o sol nasce, o mundo muda sua face lá na Fazenda do Salto. Tudo é luz irradiante e o orvalho é diamante nas folhas do capim alto. Passarinho madrugueiro faz silhueta brejeiro no céu de ouro e cobalto. U’a mulher numa choça canta cantigas da roça fazendo o lume bem cedo, e quando sobe a fumaça papagaio acha graça no galho do arvoredo. A casa grande desperta, a porta já está aberta, há labuta na cozinha. Canta um galo no quintal, muge o gado no curral, roda a roda da farinha. A ordem é um desafio - menino, espante este frio, vai logo, abre o portão! Moleque correndo vai, a calça cai que não cai das tiras do correão. Sanhaço comendo uvas, garricha chamando chuvas, canário no visgo pego, um casal de patos brancos brinca de amor nos barrancos e se despenca no rego. Deixando o pé de gonçalo e se escondendo do galo gavião voa baixinho, galinha velha esconjura, cata ali uma tanajura e volta a guardar o ninho. Peixe frito? Está calado, durante a noite, coitado, cantou até ficar rouco. Saracura na vazante, oferece a cada instante “três potes, três potes, um coco...” Lá em cima, no espigão, deixando rastros no chão, carro de bois vem cantando... Da porteira, Chico, olhando, chama Zequinha Santana e diz: “vamos, vagabundo, já pra roça todo mundo, lá vêm as mudas de cana!” A turma sai para o eito, Chico fica satisfeito, olha o céu: “hoje ainda chove!” Põe de lado a ferramenta, vai pra varanda e se assenta para ler o seu X-9. O dia avança. Lá embaixo canta a água do riacho à sombra dos buritis... Pássaro-preto a orquestra afina para saudar a rotina de mais um dia feliz... |
Por Paulo Narciso - 2/5/2017 09:37:18 |
"Seg 01/05/17 - 8h18 - Montes Claros perde Lígia Chaves, exímia letrista e intérprete. Filha do poeta e seresteiro João Chaves. Autora de Senhora de Guadalupe, primorosa canção de fé" Com a partida da segunda das quatro filhas do poeta insuperável de M. Claros, João Chaves, (a primeira foi Chavinha, ainda criança, em Bocaiúva), algumas reflexões se tornam mais vivas: 1 - Nenhuma família exerceu tanta influência intelectual sobre a civilização estabelecida nos Montes Claros como a família Chaves. E também influência na vida administrativa, ainda no Império. Com efeito, o Cônego Chaves, patriarca da família, logo depois de chegar de Minas Novas, atuou politicamente e foi administrador da cidade, por décadas. Aqui, ninguém exerceu o poder tão demoradamente como ele. 2 - Era comum que padres tivessem famílias e muitas famílias de M. Claros tem aí a sua origem fecunda. O cônego Chaves teve filhos e o clã se mostrou enormemente influente nas letras, na política e na administração pública, embora isto tenha ficado razoavelmente encoberto em função de uma modéstia exemplar que se vai fixando no tempo. 3 - O historiador Hermes de Paula nunca vacilou ao responder a pergunta - quem é o maior de todos os montes-clarenses? Devolvia, no rastro: Antônio Gonçalves Chaves. O mesmo Dr. Chaves da hoje aviltada Praça da Matriz. Foi governador de Santa Catarina, governador de Minas Gerais, juiz, promotor, e Ruy Barbosa o chamava de ""meu mestre". Foi responsável pelo Direito de Família no Código Civil de Clóvis Bevilacqua, de 1917. Sua descendência é ilustre também no Rio Grande do Sul que orbitou os dias de Júlio de Castilho. 4 - Sobrinhos de Antônio Gonçalves Chaves, os irmãos João Chaves e Hermenegildo Chaves levaram o nome de M. Claros às alturas, nimbados sempre de uma modéstia que comove. João, como jurista sem jamais ter frequentado faculdade, dos mais brilhantes, altíssimo, além de poeta e compositor de algumas das modinhas mais bonitas do Brasil. Suas músicas são cantadas há quase um século, por toda parte. Entre elas, Amo-te Muito, O Bardo e Eterna Lembrança. Hermenegildo, mais novo, é mestre entre os mestres do jornalismo brasileiro e um dos nomes da cumeeira mais alta do humanismo mineiro, embora também só tivesse o ensino primário, eternamente chamado pelo nome resumido de Monzeca - e nada mais. 5 - Ontem, na despedida da filha de João Chaves, na lousa simples que abriga as relíquias do poeta, da sua exemplar mulher Mercês, dos filhos Chavinha, Henrique e Sidney Chaves, uma vez mais o cemitério de M. Claros ouviu, ao anoitecer, as belas modinhas Amo-te Muito e Tão Longe, de Mim Distante, esta de Bittencourt Sampaio. 6 - Fechando a Cerimônia do Adeus, uma voz, acima de todas, ergueu-se na quase noite. A voz de Lígia Chaves, cantando numa gravação Senhora de Guadalupe, melodia dela, letra dela, e afinação dos anjos. Inútil pensar que pessoas assim morrem. Apenas a forma se desfez, e nada mais - ensina, repete, convence e arrasta a tradição de fé mais fecunda da história, há milhares de anos. Há festa no Céu. |
Por Paulo Narciso - 20/4/2017 09:47:04 |
Hoje, há exatos 50 anos, Montes Claros viveu uma noite de augúrios. Palavra que vem do latim augurium e significa “presságio, anúncio, indício de algo futuro”. Já corrijo. Era mais do que isto, uma noite de augúrios. Era o aviso de excepcional tempo que se avizinhava, e veio, e foi vivido, trazido por velhos valores da música, a modinha, de nós tão ancestralmente entranhada. Foi assim: o benemérito historiador Hermes de Paula, de improviso, organizou grupo de seresteiros de M. Claros e foi com eles cantar na antiga Vila Rica, berço de Minas, disputando um concurso de serestas, em que cidades de Minas exibiam suas melhores vozes e as canções mais belas. A despretensiosa Montes Claros daqueles dias, catita, fez bonito. Cantou suas modinhas e arrebatou o primeiro lugar. Não era pouca coisa. Os olhares de Minas se voltaram para a boiadeira M. Claros. A terra distante, quente, poeirenta. Às vezes, com justificada fama de brava, mas que exibiu tal beleza de coração, tal elevação de espírito. Daí para a frente, foram tempos mágicos. A seresta, com o nome de João Chaves, passou a ser o grande abre-alas de Montes Claros. Abre-alas de todas as Minas. Cantava, por nós e por todos. Convites e mais convites chegavam e a seresta abria portões de par em par para a música e o sentimento descidos das montanhas, especialmente nas noites de plenilúnio. Era saudada, acolhida com reverência. Comovia. Basta dizer que o asfalto M. Claros/Belo Horizonte, a mais antiga e aflitiva reivindicação do sertão, o asfalto só saiu porque a serenata, ouvida no Palácio da Alvorada pelo presidente marechal Costa e Silva, o fez emocionar, a ponto de decidir ali, naquela hora, em cima do joelho, autorizar a conclusão da estrada. Mas, sabem muitos, a serenata é superior ao tempo, mas não imune ao tempo, um feito do outro. A velha e bela seresta de M. Claros brilhava, desperta. Exuberou até a morte de Dr. Hermes, no início dos anos 80. Brilhou depois dele. Mas,... o tempo. Lentamente, o velho, inapagável costume de M. Claros pelas noites de luar, o apreço pela serenata, o encanto enfim das noites do sertão foi nova vez nimbado pelo tempo, que eleva, consagra, arrebata e...suprime. Aos sentidos, passou a declinar. Desliza, busca rebuço em nichos de sabedoria, onde reverso da evanescência aguardará por novos tempos de augúrio. Encantamentos. Valores do espírito não morrem, pois. Vigiam. Pacientemente, esperam que brumas e miasmas se desfaçam. Aprendem com a eterna alvorada, que é fruto e resultado da negra noite. Assim será. Nas veredas mais insuspeitas, nos corações blandiciosos, na esperança que é perene celeiro de gerações, a velha serenata de M. Claros e suas modinhas seguem vivas. Voltarão. Platão, quando espichou os olhos para o trânsito das humanidades, examinando valores e princípios que se projetam no futuro recorrente, viu e anunciou: um povo pode ser conhecido, e reconhecido, pela música que produz e ouve. Sendo assim, M. Claros não se perderá, ainda que isto às vezes pareça provável, iminente. Quando então cessar esta má quadra em que vivemos, cantaremos de novo: Ó dias de risonha primavera Ó noites de luar que eu tanto amei Ó tardes de verão, ditosa era Em que junto de ti amor gozei |
Por Paulo Narciso - 16/2/2017 11:32:41 |
A quanto chegamos. Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, reproduzida pelo mineiro Estado de Minas, enfia no mesmo saco os bandidos do chamado Novo Cangaço com o lirismo dos personagens do Grande Sertão:Veredas, de Guimaraes Rosa. Em termos, seria a mesma coisa de misturar ao épico mineiro, aclamado mundo afora, os desatinos de Lampião e seu bando, que aterrorizou o Nordeste brasileiro nos anos 30. Há, entre as duas correntes, um fosso imenso, intransponível, imisturáveis que são os valores e motivações que impulsionam as campanhas de cada um, e isto não pode ser ignorado por nossos maiores jornais. O lirismo de Guimarães, as justificativas e conclusões dos personagens tão de nós conhecidos nem de longe podem ser cotejados com a delinquência do crime pelo crime. Há valores e místicas e mistérios e profundidades e sortilégios a dividi-los e separá-los. Guimarães pôs na boca dos seus personagens os preceitos do sertão profundo, que vaga - segue cavalgando - pelos campos sem fim. Poesia e crimes não andam juntos, pertencem a distintas naturezas, mas às vezes grosseiramente podem ser confundidos. Há de tudo, na vida. Por fim, e portanto: os criminosos, entre eles os recentemente mortos pela polícia em Mato Verde, nada têm em comum com a estirpe de Riobaldos e Diadorins e Joca Ramiros, do Grande Sertão - ou não entenderam nada. Dos Hermógenes, talvez - e não sou especialista. Estes bandoleiros modernos quase sempre vêm de outras regiões que não pertencem ao épico Grande Sertão, notadamente de S. Paulo - como se viu na refrega recente com a polícia mineira. Os personagens de Guimarães Rosa, muito ao contrário, têm princípios, regras e valores, longamente ajuntados no meio hostil da vida. A Vida. Nada têm do banditismo descrito, e não podem ser comparados. Não fogem por medida de covardia. Cumprem destino. Defendem-se, como regra. Dão combate, na lisura de suas vidas. Resistem. Resistirão sempre num dos livros mais belos do Brasil, à espera de releituras mais altas. O Grande Sertão, enfim compreendido, agradece, e humilde parte. Não, não é banditismo. É a vida, por ela mesma, como foi servida. E cresceu tanto que virou poesia em prosa. Destino. Poesia, é o que temos. E não sangue da cobiça abjeta. Mundo imisturável, concedam. Bem diferente do que se extrai da reportagem (bem feita, mas equivocada em alguma parte) que transcrevo abaixo, por exercício de remissão: "Cangaço agora explode caixas eletrônicos - O banditismo retratado no romance Grande Sertão: Veredas se mantém com suas marcas históricas no norte mineiro e no oeste baiano: ostentação de poder de fogo, desafio à polícia e encenações espalhafatosas. Na madrugada do Dia de Reis, em 6 de janeiro, cinco homens fortemente armados explodiram o cofre de uma tonelada do Banco do Brasil que ficava dentro da agência dos Correios de Josenópolis, a 145 km de Montes Claros (MG). A notícia varou o sertão como prenúncio de mais um ano de supremacia de bandos armados. No romance, Riobaldo descreve o jagunço como a "criatura paga para o crime, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando". Por hora, bandos atuais deixaram de lado sequestros, saques em comércios e assassinatos de mando para priorizar roubos a banco. Em 16 de dezembro, 15 homens com metralhadoras e fuzis chegaram em dois carros a São João do Paraíso do Norte (MG). Parte entrou com maçarico na agência da Caixa Econômica Federal para abrir o cofre. Outra parte foi para a frente do quartel da Polícia Militar, ali próximo, disparar, nas contas da própria guarnição, 130 tiros de fuzil. Depois, com o dinheiro já nos carros, eles jogaram pontas cortantes de aço num trecho de 15 quilômetros da estrada que liga a cidade a Taiobeiras, para furar pneus de quem ousasse persegui-los. No dia 3 do mesmo mês, cinco homens com metralhadoras, revólveres e bombas haviam explodido, em poucas horas, caixas eletrônicos de agências do Banco do Brasil em Francisco Sá e dos Correios em Caetité, também no norte de Minas. A polícia ainda foi desafiada em Buritis (MG), onde na ficção Riobaldo tinha fazenda. Na madrugada de 11 de outubro, dez homens dispararam rajadas de tiros contra o quartel da Polícia Militar e explodiram caixas eletrônicos do Banco do Brasil e da Caixa. A ação durou 40 minutos. O bando fugiu no rumo de Brasília. "O pessoal das agências trabalha apreensivo", resume Nilton Silva Oliveira, dirigente do Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de Montes Claros e Região. Atuando em 72 cidades do norte mineiro, a entidade contabiliza 16 assaltos nos últimos seis meses. "As cidades são pequenas, têm quatro ou cinco policiais apenas, um efetivo pequeno para enfrentar grandes grupos armados que chegam e explodem tudo." Escudo humano. Foi uma ação ousada que deixou em pânico a cidade baiana de Cocos, na divisa com Minas Gerais. Por volta das 11h30 de 10 de março de 2014, dez homens com fuzis entraram nas agências do Banco do Brasil e do Bradesco na praça principal de Cocos e anunciaram o assalto. Para sair dos bancos, eles montaram um escudo com bancários e correntistas e, na fuga, levaram quatro funcionários do Banco do Brasil e quatro clientes do Bradesco. Como no tempo de Antônio Dó, jagunço real descrito por Guimarães Rosa, os bandidos desfilaram pelas ruas disparando para o alto. Nos meses seguintes, houve um debate acalorado na cidade sobre como impedir novos assaltos. Pressionada, a prefeitura tomou uma decisão drástica: fechou com correntes de ferro as ruas que circundam a praça principal no horário bancário. A medida, segundo a administração, é para evitar aproximação das agências de veículos de criminosos. O tráfego de carros-fortes para abastecer os bancos foi suspenso à noite e de madrugada e foram proibidos saques no caixa eletrônico a partir das 16 horas. Comerciantes reclamam que a decisão afugentou clientes. "As medidas diminuíram ações de bandidos, mas o comércio acabou", afirma Edmar Miclos, dono de um pequeno hotel. "As pessoas chegam e não têm como tirar dinheiro. O sinal da máquina do cartão não costuma funcionar. Com isso, vai todo mundo fazer negócios e se hospedar em Guanambi, a 250 km daqui." A Delegacia de Operações Especiais da Polícia Civil em Montes Claros é o principal centro de investigação dessas organizações criminosas. Pelo modo de agir, a polícia acredita que exista mais de um grupo atuando no norte mineiro. "No ano passado, houve um incremento bem grande desse tipo de crime na região", conta o delegado Herivelton Ruas Santana. A expressão "novo cangaço", usada na região para definir quadrilhas de assalto a banco, refere-se ao modo de agir dos bandidos, adeptos de grandes ações em pequenas cidades, onde há número reduzido de policiais. Não há estimativa de valores, pois os bancos não informam às polícias as quantias levadas. "Os bandidos aproveitam a fragilidade do aparato. Em cidades maiores e capitais, há batalhões da Polícia Militar, departamentos da Polícia Civil. Eles têm atacado cidades com 20 mil, 10 mil habitantes." Santana aponta como obstáculos ao combate do novo cangaço o baixo efetivo de policiais, a grande extensão do norte mineiro e as dificuldades de deslocamento. Como a região faz divisa com a Bahia, há ainda necessidade de intercâmbio com o Estado vizinho. "Apesar de haver uma interação, é sempre difícil fazer esse tipo de trabalho." Urutu-Branco. No romance, o jagunço Riobaldo conta que ele e os companheiros haviam desafiado a "soldadesca" do governo e entrado e saído da Bahia cinco vezes "sem render as armas". Foi justamente nesse enfrentamento dos militares que ele foi ungido chefe do bando e rebatizado de Urutu-Branco pelo antigo chefe, Zé Bebelo, que deixou o comando após desgaste com jagunços. Urutu é o nome de uma das cobras mais venenosas do cerrado. A ficha corrida de Riobaldo era longa. O jagunço que conquistou o mundo com seu linguajar poético e sua paixão por Diadorim esconde uma vida de crimes. Ele é autor confesso de alguns assassinatos e acusado de estar por trás de outros. A morte do inimigo Ricardão, que tinha sido rendido, ilustra seus momentos de frieza e violência. O jornal O Estado de S. Paulo testemunhou o medo no Grande Sertão. Em Pirapora e Três Marias, a reportagem passou por revistas da polícia após denúncias de moradores preocupados com o veículo de São Paulo. Não trafegar à noite em estradas asfaltadas e evitar caminhos de terra mesmo de dia foram dicas dadas à reportagem. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo." |
Por Paulo Narciso - 15/1/2017 10:59:49 |
"Se os governadores não construirem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios". Esta frase do montes-clarense Darcy Ribeiro, dita em 1982, inunda o Brasil como profecia cumprida, neste início de 2017, 35 anos depois de pronunciada. No início dos anos 80, Darcy, encerrado o amargo desterro, vinha muito a Montes Claros e seus contatos eram com a família e alguns amigos. Enquanto muitos evitavam demonstrar solidariedade, simpatia e admiração por um conterrâneo reconhecido no mundo e perseguido em seu país, pela última ditadura, uns poucos faziam questão de estar ao seu lado, arrostando os poderosos do momento. Desse tempo, há muito o que contar. Mas, o que quero dizer é que o nosso Darcy, encantado em 1997, se hoje voltasse a M. Claros (onde nasceu em 1922, no miolo da cidade, atual Rua Lafetá, entre Simeao Ribeiro e Altino de Freitas), Darcy teria duas grandes, enormes tristezas: 1 - Amputaram, mutilaram o conjunto arquitetônico da escola símbolo da cidade, a histórica Escola Normal, um projeto primoroso, de 1965. Mutilaram, para na sua esquina principal - defronte à casa/museu do mestre Konstantin - fazer funcionar...um posto de policia. Nada contra a honrada Policia e o seu trabalho em proveito geral, que merece aplausos. Mas, não custa admitir: recomenda-se converter presídios e assemelhados em escolas, e nunca, nunca, o contrário. Um erro histórico, descuido lamentável por parte de quem autorizou e permitiu, falha que em algum momento precisa ser reparada, para que não seja repetida - e frutifique. 2 - Darcy também ficaria profundamente consternado por não poder ver traço, vestígio de sua escola secundária - e esta escola não é a mutilada Escola Normal Oficial Plínio Ribeiro, nome do seu tio e mestre, e parte arrancada de nós, seus alunos. Darcy estudou no Ginásio Municipal, antes que as amplas instalações, com jardins, longos corredores, chalés e pátios se convertessem em Seminário Menor e, depois, em sede da Prefeitura. Sóbria construção na Avenida Coronel Prates. Ao lado da qual o sentimento da cidade, num belo gesto, quis e deliberou homenagear Reginaldo Ribeiro, dando à rua o nome do pai de Darcy, que ele pouco conheceu. Rua Reginaldo Ribeiro. Pois bem. Num tempo que merece ser esquecido, "se revogado não pode ser", numa manhã sem avisos, veio a tocaia. Derrubaram impiedosamente o extenso casarão que era parte do cerne da memória da cidade, um dos seus miradouros; almenara, digamos, pois a luz que dali partiu certamente vaga sem descanso, em perene reclamo de justa reparação. E era a escola de Darcy. Caiu, sem um lamento. Nenhum ai foi ouvido, enquanto as máquinas batiam contra suas paredes brancas, nuas, que resistiram. Havia acontecido antes com a Igreja do Rosario. Que também não recuou. Foi preciso um trator de esteira. Contra a Igreja dos Catopês - eu estava lá, vi. Sentiram muito, sentem muito, hão de sentir sempre, os que ali foram aprender. Ou os que ouviram misereres e ladainhas e responsos e laudamus que de lá partiam em cortejo de prelados nas alvoradas neblinosas de junho de um tempo que evanesceu. E que resiste - além do Bojador, com a noite antiquíssima do poeta. Um caixote baixou no seu lugar e um silêncio desceu aos alicerces profanados. Se hoje voltasse, Darcy teria o comportamento que teve ao tornar aos Morrinhos, depois que a ditadura última permitiu que reentrasse no seu país, doente, acreditando que vinha finar e, teimoso, não finou nem morreu. Nos Morrinhos, com um amigo, Darcy destampou com horrenda suspensa caixa dàgua de concreto afrontando a catita Igrejinha de Dona Germana e sua história, que o ministro Francisco Sá, outro montes-clarense (do Brejo das Almas), chamou de "atalaia avançada dos povoados cristãos ". Ao se deparar com a ofensa em concreto à Igrejinha indefesa, acuada na colina que é sua, o afável às vezes iracundo Darcy foi enfático: - Vamos embora. Não quero ver isto. Fomos embora, debaixo de um mesmo silêncio. |
Por Paulo Narciso - 4/3/2016 07:25:38 |
Pouco antes da meia-noite de ontem, faleceu em M. Claros, onde estava hospitalizado há dias, por problemas cardíacos, o fazendeiro e líder de classe Afonso Celso Dias. A dois meses de completar 80 anos, em maio, Afonso foi um dos mais arrojados fazendeiros da cidade nos últimos 60 anos, sucedendo seus pais em propriedades rurais localizadas em Francisco Sá e Janaúba. Os que acompanharam de perto sua dedicação ao campo sabem que muito raramente Afonso não estava desperto antes de o sol nascer para pessoalmente desempenhar alguma tarefa junto aos rebanhos. Irmão do mais novo presidente da Assembléia de Minas, Antônio Dias, no fim dos anos 70, foi eficiente articulador político em nível regional. Nos últimos anos, acometido de problemas cardíacos, tinha atividade mais limitada, mas será lembrado, sempre, como um fazendeiro apaixonado e dedicado ao pastoreio desde os tempos de menino, trabalhador incansável. O velório já está sendo realizado na Santa Casa de M. Claros, com sepultamento marcado para as 17 horas. Assim, Montes Claros se despede de um dos seus mais típicos fazendeiros nos últimos 60 anos, autêntico. Na geração de Afonso Dias, a expressão (esquecida) "amanho da terra" encontrava significado, causa, e contemplação. Devotamento. |
Por Paulo Narciso - 21/2/2016 12:59:04 |
Montes Claros perdeu, também hoje, às 10h10m, a serena constância do engenheiro ferroviário José Helvécio Alcântara, de 74 anos. Irmão do craque Ninha, provavelmente o mais completo jogador de futebol da história de M. Claros, Helvécio foi estudar engenharia em Belo Horizonte, nos anos 70. Pertencia à célebre safra de universitários montes-clarenses da Rua Guajajaras 720. Por anos, foi um dos diretores da Central do Brasil em M. Claros, responsável pelo movimento de trens, ao lado dos engenheiros Bahia, Carlos Augusto, Pimenta e Luiz Brant. Destacou-se em toda a Rede Ferroviária como um dos maiores especialistas brasileiros em movimentação de cargas. Desde dezembro, tratava-se em Belo Horizonte de doença há pouco diagnosticada. Na semana passada, retornou a M. Claros, cidade dos seus filhos e de sua esposa Rose, complemento da sua natal e adorada Monte Azul. A "sentinela" está sendo feita na casa de velórios da Avenida João Luiz de Almeida, perto do prédio da Prefeitura. O enterro será ainda hoje, às 17h30m. José Helvécio Alcântara, nome para sempre ser lembrado, pela serena firmeza e por incomum conduta de cidadão, pai e amigo. Ocupava o lugar exato no espaço, repetia seu amigo, o grande escritor mineiro Wander Pirolli, nas tardes da velha Rua Goiás, em BH, onde por muitos anos era encontrado nas rodas jornalísticas do Estado de Minas e Diário da Tarde. Deixa os filhos Gustavo, engenheiro, Maurício, advogado, e Mariana, dentista oficial do Exército brasileiro. |
Por Paulo Narciso - 8/2/2016 12:04:50 |
Abaixo, excelente entrevista feita pelo jornal "O Nhesuano", da Cultura Guarani, editado no Rio Grande do Sul, na cidade de Roque Gonzale (região missioneira), a 2271 km de Montes Claros, já na fronteira oeste, com a Argentina. Nela, Nelson Hoffmann conta detalhes sobre o escritor montesclarense e jornalista, Manoel Hygino dos Santos, que no próximo mês de março, dia 13, completará 86 anos, em plena, fecunda e respeitada atividade. É a maior voz ativa de M. Claros, e muitos dados revelados pelo jornal são desconhecidos até dos admiradores mais próximos do escritor, que, rapazote, deixou M. Claros antes dos anos 50 do século passado, mas a ela segue vinculado por laços irremovíveis, devotados. A publicação, voltada para a região missioneira, uma das mais genuínas do Brasil, tem uma dúzia de páginas, de alto valor literário e antropológico, e na sua última folha rende homenagens a outro montesclarense - Darcy Ribeiro, citando ser ele o autor da denúncia de que 70 milhões de índios das Américas sofreram holocausto. É necessário acrescentar: a Região das Missões, no Noroeste do Rio Grande do Sul, é venerada por viajantes do Brasil e do mundo, notadamente da Argentina, do Paraguai, do Uruguai e da Europa, em função das reduções jesuíticas dos Guarani, edificadas entre os séculos XVII e XVIII. No lado brasileiro, ficavam os Sete Povos das Missões. (Nunca esquecer que a poucos quilômetros de M. Claros, na Barra do Guaicuí, hirtas, abandonadas, esquecidas, ultrajadas, fincam-se relíquias deste mesmo tempo, do mesmíssimo impulso civilizatório). Abaixo, a íntegra da entrevista de Manoel Higino aos Sete Povos das Missões, depoimento que merece ser percorrido com emoção e agradecimento: "MANOEL HYGINO DOS SANTOS Cronista lido, amado e respeitado, autor de dezenas de livros, personalidade marcante na trajetória do século XX/XXI, intelectual e Humanista acima de tudo, figura admirável. É possível não reverenciar Manoel Hygino? Membro da Academia Mineira de Letras, jornalista e escritor, Manoel Hygino dos Santos, mineiro de Montes Claros, nascido em 13 de março de 1930, com mais de 20 livros publicados, em que predominam crônicas ou pesquisas históricas e literárias. Começou nas letras muito cedo, aos 18 anos, publicando: “Vozes da Terra”, contos e crônicas, 1948; passou por jornais, em sua terra natal e ,já em Belo Horizonte, foi redator e editor de revistas e jornais de maior circulação no Brasil. Atualmente é articulista do Jornal Hoje em Dia, editor do Jornal Santa Casa Notícias, da Revista da Academia Mineira de Letras, e Ouvidor da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte. Em seus livros focalizou o homem em sua dúvida (Considerações sobre Hamlet), os movimentos de contestação (No rastro da subversão) a decadência e queda do império russo (Rasputin, o último ato da tragédia Românov), a explosão da juventude na sexta década do século passado (Hippies, Protesto ou Modismo) e a vida de Pedro Nava, o grande memorialista brasileiro (Tu és Pedro – Um crime que ficou sem castigo), dentre outros. Inicialmente como assessor da Provedoria e assessor de imprensa. Fundou o órgão oficial de informação da instituição , do qual é editor e decidiu escrever a história da instituição , suas clínicas e personalidades, eternizando aspectos da assistência médica no Estado. Em 2005, escreveu: “Santa Casa de Belo Horizonte – Uma história de amor à vida”, seguindo mais de uma dezena de obras relacionadas à Santa Casa, propiciando a fixação da memória da instituição. É detentor de diversos prêmios e títulos, como Prêmio Edmo Lutterback pelo conjunto de obras, Diploma de Personalidade Cultural da União Brasileira de Escritores, Medalha e Diploma do Sesquicentenário de Montes Claros, Medalha da Inconfidência do Governo de Minas Gerais, Comenda Eduardo Levindo Coelho, concedida pela Federassantas, em 2005, entre outros. Manoel Hygino, a simpatia e admiração por sua pessoa, e a leitura de seus textos é grande por estas nossas bandas. Todos querem saber quem é Manoel Hygino dos Santos? Vamos por partes: Onde nasceu? Fale-nos de sua infância? Família, amigos? Havia livros, leituras em seus tempos de menino? É muito agradável saber que os amigos do Sul, da fronteira, da região missioneira, me vêem com simpatia. Os meus textos, pobres textos que aí chegam, fazem parte de minha produção habitual, elaborados ao calor do cotidiano, em meio aos embates de múltipla natureza que os brasileiros enfrentam. Nascido em Montes Claros, no norte de Minas Gerais, em março de 1930, já no grande sertão referido por Rosa, sou parte de uma gente que trabalha, consciente da importância de seu labor para o desenvolvimento do país. É gente continuamente esquecida pelos poderes públicos e sofrida em desenganos e desencantos. Montes Claros é uma cidade grande, das maiores do estado, população difusa e brava. Meus avós e pais se dedicaram ao comércio e a pequena atividade agropecuária, sem luxos e riquezas, sem faustos. Minha mãe, filha única; amigos, poucos mas honestos, que não pude cultivar, eis que, na adolescência, vim estudar em internato em Cachoeira do Campo, município de Ouro Preto, para o curso médio, concluído em Belo Horizonte. Meus professores foram amigos e com eles auferi ensinamentos em período tão relevante da vida. Leitura, sim, desde cedo. Não havia o desvio de atenção imposto pela televisão, rádio ainda chegava, o cinema era o divertimento maior, alvo de comentários e discussões. Restava a leitura, e livros não faltavam. No mais, brincadeiras de jovens, andar a cavalo, visitar sítios, ajudar o avô e o pai no comércio, assistir aos festejos regionais. Trabalhar começou cedo, inclusive em chácara, abrindo covas e plantando. E depois, nos ditos anos de formação, adolescência-juventude, por onde andou? Que escolas, cursos? Graduações, diplomas? São coisas que se perguntam, nosso leitor está curioso por saber. Pode contar? Depois do internato em Cachoeira do Campo, com os salesianos, eis Belo Horizonte, para onde os pais se transferiram. Época de descobrimentos, busca de si mesmo, bons professores, Estado Novo, a Hora do Brasil. E mais cinema. Concluído o ginásio, fiz o clássico. Contato com a música, aulas de teoria; consertos assistidos no Conservatório Mineiro, freqüência a espetáculos teatrais, ópera, textos para jornais escolares, participação em entidades estudantis, fazendo promoções culturais no meio, vencendo a timidez. Aos 18 anos, a ousadia de escrever e ver publicado um artigo para “Gazeta do Norte”, jornal de Montes Claros, sobre o assassinato de Gandhi, que me conduziu à permanente experiência de redação. Sabemos, o que importa é a obra e a sua obra é vasta. Antes, porém, ainda precisamos perguntar, porque o leitor gosta de saber particularidades da personalidade focada: Dono de sua vida, praticou que atividades, por quais caminhos progrediu, onde se encontra e o que realiza hoje? Em casa, achava-se que deveria fazer Medicina. Havia parentes formados. Uma bela profissão, prestigiada, rendosa. Os cursos eram, contudo, disputadíssimos. Mais chances para aqueles que já tinham alguém no ramo. Os vestibulares eram extremamente concorridos. Consegui uma bolsa de estudos em Montevidéu, junto ao Ministério da Educação do Brasil. Duzentos dólares mensais, o suficiente. Representava 600 pesos, mais ou menos. Depois de rápida passagem pelo Hotel Globo, na Ciudad Vieja - Baja, estacionei no modesto Hotel Machado, na Calle San Salvador, perto do parque Rodó, bela região, próxima da Playa Remirez e do Hotel Cassino. Estudava muito, aprendia, formei amizades com estudantes do país, do Brasil, da Espanha. Fiz a reválida, de todas as disciplinas do curso médio, mas também me submeti a sabatinas das disciplinas de geografia e história do Uruguai, provas orais em espanhol, assim como as escritas, a banca examinadora de olhos e ouvidos atentos. Aprovação honrosa, sem proteção. Dei aula particular de biologia, para um jovem, filho de alemães. Os cursos que fiz eram na Faculdade Nacional de Medicina, na General Flores, experimento riquíssimo e inesquecível, inclusive na dissecação de corpos. Ruben Romero Arenillas, funcionário ali, culto, poeta, falava perfeitamente pelo menos três ou quatro línguas, me ajudou, comentários sobre literatura, aprendi sobre Neruda e Gabriela Mistral, discutíamos Ruben Dario, Lorca e comecei a interessar-me pelos escritores da América Latina, seus pensadores, seus heróis. Montevidéu é múltipla e rica. Seus monumentos, grandes e atraentes; seu povo, cosmopolita, fino, sabe das coisas. De lá, seguia escrevendo para os jornais de Belo Horizonte. Adquiria cabedal, sem plano seguro. No fim de 1953, voltei para férias. O país estava em ebulição, o governo Vargas, torpedeado pela oposição, por Lacerda, um extraordinário tribuno, corajoso e culto. O Brasil era palco único e próprio para sua eloqüência. Belo Horizonte, centro opositor desde o Estado Novo, inviabilizava retorno ao país sulino. Deixei Montevidéu, meus amigos, os estudos, as aulas de Anatomia, Citologia e Histologia, e, que pontificavam os maiores nomes do magistério universitário: o viejo May, dos tempos de Testut na França, professor Buño, na Histologia. Começar tudo de novo. Em 1954, a era Vargas se tornou passado, os planos anteriores foram abandonados. Tentaria as Ciências Jurídicas. Aprovado no vestibular na apelidada Escolinha do Bispo, que constituía um dos núcleos da hoje poderosa Universidade Católica de Minas Gerais, a PUC-MG, comecei em Direito. Tampouco terminado, pelos novos rumos tomados na vida. O caminho era a imprensa, sobretudo em Belo Horizonte, mas também no Rio de Janeiro, na redação de jornais diários, na "Folha do Rio", como secretário de redação, a serviço de grupos ligados aos Vargas. Mais tarde, já de retorno à capital mineira, além de escrever para os veículos locais (inclusive tevê), vinculei-me a Bloch editores, em seu corpo de redação e chefiando a Sucursal de "Manchete" a maior revista do Brasil, por anos. Coube-me, por exemplo, dar cobertura à revolução de 1964, desde a noite de 31 de março. Simultaneamente, escrevia para todos os jornais de Belo Horizonte. Em "O Diário" maior jornal católico da América Latina, fui também redator, diretor de Redação e Presidente. Trabalhei como editor do "Diário de Minas" e diretor do grupo Força Nova de Comunicação, abrangendo jornal, televisão e rádios. Antes ousara lançar, aos vinte anos ou por aí, editar a revista "Esfinge", que durou três ou quatro números. Exerci cargos públicos expressivos em âmbito municipal e estadual. No final do governo militar, vi-me designado gerente para Minas da Agência Nacional, da presidência da República, cargo que ocupei por prazo não muito longo. A obra é o que importa e aquilo que fazemos fica. Impressiona-nos a quantidade de livros publicados, mas um detalhe nos chama atenção especial: a precocidade de seu primeiro trabalho, Vozes da Terra, contos e crônicas. Tinha, então, ao que nos consta, apenas 18 anos. Como foi isso? Nasceu escritor, viveu em cima de livros? "Vozes da Terra" é o livro de juventude, fruto da necessidade de os moços registrarem seus sentimentos e pensamentos, os fatos que lhes merecem atenção. É a abertura, a protofonia, com licença da imodéstia. Na sequência desse primeiro livro, outro detalhe que chama mais a atenção: a demora para o lançamento do seu segundo livro, Considerações sobre Hamlet, ensaio. Entre um e outro, há um interstício de 17 anos. O que houve? Depois, o princípio da maturidade com "Considerações sobre Hamlet", que planejara durante pesquisas na antiga bibliotecada UFMG. Terminado o trabalho, a Imprensa Oficial do Estado, por deferência de seu diretor Guimarães Alves, intelectual de primeira em Minas, resolveu editá-lo, elaborando o prefácio. Um detalhe: bem antes da publicação, submeti o texto a um antigo diretor do SNT - quando eu morava no Rio - e o dito perdeu os originais. Bom, né? Mudança na vida, de cidade, as transformações políticas, levaram adiamentos na publicação de meus livros. Quem pode dedicar-se exclusivamente a eles no país? Não é preciso identificar nomes e qualificações. Depois desse intervalo, vem uma avalanche de obras sem parar, até hoje. Cada livro melhor que outro. A grande predominância é a foram ensaística. Alguns, verdadeiras obras-primas. Destacam-se aqui, em nosso pequeno mundo missioneiro, livros como: Tu és Pedro - Um crime que ficou sem castigo, Getúlio: De São Borja a São Borja, Jesus, causa mortis... Todos ensaios, estudos claros e fundamentados, com visões novas sobre fatos e problemas já bem conhecidos, mas nunca bem esclarecidos. O que o levou ao gênero ensaístico quando, lá no começo, se lançou como contista e cronista? "Tu és Pedro" resultou do grande prestígio de Nava, mineiro de Juiz de Fora, memorialista de mão cheia. Seu suicídio, no Rio de janeiro, se deu quando eu estava no Diário de Minas". Um fato inusitado. Um médico e escritor consagrado, realizado, matar-se aos 80 anos? O fato me encabulou. Procurei aprofundar-me, conhecer melhor causas da tragédia, em que me fui enfronhando, investigando, principalmente por assumir a assessoria do provedor da Santa Casa de Belo Horizonte. Ele ali começara a carreira – desde universitário. Deixou colegas, então ainda vivos. No entanto, “Tu és Pedro” ainda é livro inconcluído, pelos próprios meandros da vida do personagem, já investigados por Zuenir Ventura, agora na ABL. “De São Borja a São Borja” é uma nostálgica reconstituição de episódios da vida de Getúlio, em suas muitas nuances. Atravessei o seu extenso período no Palácio do Catete, ouvi a seu respeito as expressões mais altas de respeito e afeição, que chegavam ao fanatismo. O objetivo do pequeno volume residiu em esclarecer aspectos de personalidade, de quem ele foi, sua liderança incontestável, sua conduta pessoal e pública, fatos de sua carreira. A História me interessa acima de tudo, somente lamentando o pouco tempo diário disponível e a proximidade do adeus definitivo, que não me permitem muito mais. “Jesus, causa mortis” é auto-explicável. Considerando o final de sua paixão, o que lhe teria efetivamente causado a morte física? Examinei inúmeros autores, cientistas e religiosos. Um tema fascinante, envolvendo também o Sudário, versões cinematográficas, um painel infindo e imponderável. É um resumo. Outro detalhe de sua obra: a intensa publicação de livros sobre problemas de saúde. Só para exemplificar, o último: O caranguejo Sinistro – A luta sem trégua contra o câncer. O fato é compreensível porque exerce atividades na Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte. Como é isso de um homem de letras, artista da palavra, cronista querido e admirado, exercer e executar uma atividade tão difícil, de contínua visão do sofrimento humano, suas limitações e fins? A vida nos ensina ser mais ou tão importante quanto a ficção. Com meu ingresso na Santa Casa de Belo Horizonte, uma das três maiores organizações de assistência médica filantrópica do Brasil, enveredei pelos ínvios e rudes caminhos dos que sentem e sofrem, que tem a vida em risco e procuram soluções nem sempre nas mãos dos homens. É um aprendizado incessante, doloroso, desgastante, abrangendo homens que se dedicam interminavelmente ao bem, dando provas de solidariedade e amor. Nos livros desta série, focalizo as doenças, suas origens, os tratamentos, os doentes, suas desditas e angústias; os profissionais da medicina e da enfermagem, dos laboratórios, enfim toda a máquina construída para minorar o padecimento. É algo profundamente humano. Inicialmente ali criei a assessoria de comunicação, um jornal, os primeiros passos para um site; depois, instituímos um programa artístico para os enfermos; finalmente, a Ouvidoria. É preciso que pacientes, familiares, acompanhantes, sejam ouvidos em suas queixas e reclamações. Ninguém precisa tanto de ser auscultado... Todo escritor tem uma boa bagagem de leituras e, não adianta fugir, alguma influência ou admiração por livro ou autor anterior. Autores e livros preferidos? Alguma influência? Algum destaque? Além da Literatura, alguma outra Arte de seu encanto? Todos os livros nos deixam marcas, desde os escolares. Depois deles, vieram o "Tesouro da Juventude", de meu avô, que me aguçou o interesse pela admirável missão de viver e enfrentar situações adversas, de pessoas que souberam cumprir o seu papel humano. Mais adiante, Dickens, Shakespeare, Hemingway, Cervantes, Dostoievsky, Dante, além dos nossos autores, muitos dos quais de primeira grandeza: Machado, Castro Alves, Rosa, e inúmeros na ficção, na história, na poesia. Enunciar todos os nomes ocuparia páginas. Mas não esqueço, nem poderia, por exemplo, Érico Veríssimo, que marcou meu período de adolescência, despertando minha atenção e adoração pelo Sul, sua brava gente. Missão seguida por autores atuais, da capital e do interior gaúchos, que fazem literatura de primeira grandeza e até se fazem conhecidos em outros países, antes de serem aqui reconhecidos. A literatura fascina, mas o Brasil precisa aprimorar-se mediante aproximação dos leitores mediante a melhor distribuição da produção. E hoje? O que nos diz dos dias de hoje, em Literatura? Continuamos tendo excelentes escritores, embora haja – como não poderia deixar de ser – os que escrevem simplesmente para agradar a determinados segmentos e angariar faturamento. Destes não me aproximo. Ingressei na Academia Mineira de Letras, premido pelas circunstâncias. O antigo presidente Vivaldi Moreira, um intelectual autêntico (que poderia alcançar a Brasileira) insistia que eu me candidatasse. Não tinha com ele liames mais estreitos, mas Vivaldi via minha presença na Academia como objetivo pessoal. Faleceu sem consegui-lo, mas deixou como herança ao sucessor que me fizesse "imortal"! Inclinei-me à determinação de ambos e fui escolhido por unanimidade. Sou, também, diretor da entidade e editor de sua prestigiosa revista, com quase cem anos. Aliás, por realidade de juventude, fundei – ao lado de outros escritores moços - a Academia Mineira Juvenil de Letras, quando tinha em torno de 20 anos. Coisa de mocidade! Por Nelson Hoffmann – Nelson.hoffmann@yahoo.com.br Bibliografia “Vozes da Terra”, contos e crônicas, ed. do autor, 1948; “Considerações sobre Hamlet”, ensaio histórico, ed. Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1965; “Rasputin, último ato da tragédia Românov”, ensaio, ed. Júpiter, 1970; “Governo e Comunicação”, monografia, ed. Imprensa Oficial, 1971; “Hippies, Protesto ou Modismo”, ensaio, ed. Júpiter, 1978; “Sangue em Jonestown, uma tragédia na Guiana”, ensaio, ed. Júpiter, 1979; “No Rastro da Subversão”, ensaio, ed. Faria, 1991 “Darcy Ribeiro, o ateu”, biografia, ed. Fumarc, 1999; “Notícias Via Postal”, correspondência, 2002; “Tu és Pedro – Um crime que ficou sem castigo”, ensaio, gráfica O Lutador, 2004; “Santa Casa de Belo Horizonte – Uma História de Amor à Vida”, edição Conceito Comunicação e Cemig, 2005; segunda ediçãi, 2010; “Clínica de Olhos – 90 anos, Uma História de Pioneirismo em Minas Gerais”; segunda edição, 2009. “Reverência pela Vida. A pediatria em Minas Gerais”; “Tempos de Nascer: A Obstetrícia em Minas Gerais”; “Vargas: De São Borja a São Borja”, 2009; “Memórias do Centro Precursor e Difusor da Especialidade em Minas – Endocrinologia e Metabologia da Santa Casa”, 2010; “Trabalhando com o Coração – A cardiologia na Santa Casa”, 2010; “Jesus, causa mortis, 2010”; “Cem Anos das Servas do Espírito Santo na Santa Casa de Belo Horizonte”, 2011; “A Dermatologia na Santa Casa”, 2011; “A Peste Branca A Pneumologia e a Tisiologia – Um relato”, 2011; “Doutora Celina Cem Anos de vida e solidariedade”, 2011. “História da Neurologia e Neurocirurgia da Santa Casa de Belo Horizonte”, 2010 “Mãos que Afagam, Palavras Que Enternecem – As Voluntárias da Avosc”, 2011 “Sociedade de Gastroenterologia e Nutrição de Minas Gerais – Uma história de serviço à saúde e à Medicina” – 1947-2012”, Imprensa Oficial 2012 “Lucas Machado – Bom de bola e bisturi” , Imprensa Oficial, 2012 “Madrigal Renascentista”; Ed. CBMM, 2012 “Pelos Bosques da Memória” – FAPI Editora, 2013 “O Caranguejo Sinistro – A luta sem trégua contra o câncer”. FAPI- Editora, 2013" |
Por Paulo Narciso - 24/10/2015 18:05:27 |
Aos 93 anos, muito lúcido, morreu na madrugada de hoje em BH o jornalista Plínio Barreto. Trabalhou sete décadas no Estado de Minas e lá se tornou amigo da colônia montesclarense, a segunda maior da redação. Em 1998, fez questão de vir a M. Claros para a inauguração da placa que deu o nome de Hermenegildo Chaves à sucursal do Estado de Minas na sua terra natal. (Hermenegildo, o nosso tão Monzeca, importante na sua formação, humana e de repórter). A sucursal funcionava então ao lado do Automóvel Clube e Plínio Barreto pediu a um amigo que o levasse a caminhar demoradamente pela Praça Dr. João Alves. Ali, sempre a passos lentos, o olhar perdido nas explorações do tempo, contou como os episódios acontecidos naquela praça, no 6 de Fevereiro de 1930, tiveram enorme repercussão na vida do Brasil. Ele, jovem repórter, anos depois cobriu os desdobramentos da fuzilaria para toda a cadeia dos Diários Associados, que tinha para o Brasil daquela época importância similar ao que hoje tem a Rede Globo. O assunto, para se ter ideia, foi manchete principal e diária nos jornais do Rio e S. Paulo, por um mês inteiro. O tiroteio em torno da adventícia caravana do vice-presidente da República, Melo Viana, para muitos historiadores foi o dealbar da Revolução de 30, que justamente no dia de hoje, há 85 anos, levou Getulio Vargas ao Palácio do Catete. Pois Plínio Barreto, 93 anos, partiu nesta madrugada, sem nunca permitir que o repórter que o habitou baixasse a guarda um só instante. Honrou a profissão. Como o fez na noite quente de Montes Claros, no ano de 1998, na praça que ela sabe mais histórica do que acreditam os moradores da própria cidade dos montes claros. Será lembrado, também e ainda, pela lhaneza de conduta e pela sóbria elegância de viver, a solicitude. |
Por Paulo Narciso - 10/7/2015 12:03:11 |
Aos 95 anos, dormindo em casa, morreu Britaldo Silveira, jornalista e advogado. No jornal Estado de Minas há 74 anos, diretor de importante área, era muito ligado à geração de Montes Claros que povoou as redações do Estado de Minas e do Diário da Tarde nos anos 70. De face carrancuda, transportava um excelente coração. |
Por Paulo Narciso - 3/7/2015 00:09:41 |
Houve tempo em que a Exposição Agropecuária Regional de Montes Claros era aberta por presidentes da República. Lembro-me de pelo menos três - JK, Castelo Branco e Geisel. Parece que outros mais vieram. Quando não vinha o presidente da República, vinha o governador. Depois, nem mais o governador. Aparecia o Ministro da Agricultura, ou o secretário estadual da pasta. Hoje, ao declinar do dia, a Expomontes foi aberta sem presidente, sem governador, com um senador e dois - dois - representantes pessoais do governador, os deputados Tadeuzinho e Guedes, rivais na política local. Os dois se apresentaram enfaticamente como emissários do ausente Pimentel. O governador não teria sido convidado oficialmente, por dificuldades com a classe rural, ao conferir a Medalha da Inconfidência ao líder do MST. O vice-governador, do PMDB, este vindo de ligações com o campo, natural da diamantífera Coromandel, estaria confirmado em lugar de Fernando Pimentel. Alguma coisa aconteceu, porém. Nem o vice apareceu. Teria sido intriga nas franjas palacianas - que decididamente não são franjas de altar, com insinuações de possível, e improvável, hostilidade. Quem não veio perdeu. Poucas vezes o Parque João Ataíde se apresenta tão arrumado, como para esta exposição, em que pese a crise econômica, generalizada e profunda. O campo, tão maltratado, está carregando o País nas costas e a fala inaugural do presidente da Sociedade Rural, Osmany Barbosa, foi realista, elegante, sóbria. Mas um médico roubou a cena. Eduardo Alves do Amorim, nascido em Itabaiana, 52 anos, fez discurso alto, humano, breve, como recentemente não se costuma ouvir de político algum, eles que em certos momentos foram os maiores tribunos da fatigada pátria, e pela voz de quem ouvia-se a nação. Vide Aureliano Cândido de Tavares Bastos e Joaquim Nabuco, no Império, e Ruy Barbosa, Carlos Lacerda e Paulo Brossard, mais recentemente. Foi aplaudido, respeitosamente aplaudido, embora pouco conhecido aqui. Disse, e repetiu, que o pior da crise brasileira não está na economia, em frangalhos, sabemos todos. Reside, habita, na face moral, na ausência dela, no seu estraçalhamento. Foi aplaudido. Vem a ser senador por Sergipe, com ligações familiares no Norte de Minas. Roubou a cena, repito. Supriu a ausência dos que antes, em outros melhores tempos, reverenciavam o Norte de Minas e sua cidade líder. (Brava cidade, nos momentos em que a bravura é o último recurso). Vida que segue. |
Por Paulo Narciso - 31/5/2015 10:37:42 |
Morreu, na virada da noite, em Belo Horizonte, o jornalista Édson Zenóbio, de 84 anos. Ele sofreu uma queda em casa. Ficou hospitalizado por uma semana. Zenóbio, diretor-geral do Estado de Minas, era ligado a M. Claros, por muitos motivos. Foi grande amigo do célebre repórter Fialho Pacheco, e veio com ele promover o Encontro do Boi em M. Claros, nos anos 70. Vinha sempre à fazenda dos Diários Associados, em Manga. Também nos anos 70, quando redator-chefe do Diário da Tarde, hoje extinto, ligou-se fraternalmente, e afetivamente, à colônia de montesclarenses no Estado de Minas, colônia que, na redação, em número, só perdia para a representação de Santa Luzia, da família Teixeira da Costa, que administrava os dois jornais. Afável, paternal, Zenóbio reservava especial deferência aos montesclarenses, e sentia-se um deles, todos mais novos. Antes, havia sido discípulo e admirador de Monzeca, o mitológico Hermenegildo Chaves, montesclarense por todos reconhecido como um dos pais da imemorial imprensa de Minas. Édson Zenóbio, jornalista, publicitário, homem íntegro, correto. Sempre modesto nas altas funções que exerceu. Humanista da melhor fornada da Minas de todos os tempos. Seu corpo será cremado hoje à tarde. A lenda prosseguirá. A saudação oriental, milenar, de juntar a palma das mãos numa reverência, preceito e simbolismo que talvez desconhecesse formalmente na sua formulação remota e profunda, esteve porém implícita em toda a sua conduta. Parecia repetir sempre, no olhar, inconsciente que seja - "minha alma e a tua alma são uma só". |
Por Paulo Narciso - 18/4/2015 19:39:15 |
A quieta tarde de abril, toda ela azul e gentil, presidiu as despedidas à professora Yvonne Silveira. A mestra de muitas gerações não teve a conduzir seus despojos ao campo santo um carro solene dos Bombeiros, e nós atrás, em procissão, agradecidos. Nem o cortejo foi imenso, para honrar os demorados méritos da mestra, de 100 anos. Tudo dispensável, para quem ajuntou mais nos planos superiores. Consolei-me, num raciocínio decerto diverso, menos nos deveres da gratidão, ao lembrar-me que Afonso Henriques de Lima Barreto, aqui, e Fernando Antonio Nogueira Pessoa, em Portugal, não tiveram por último ato, entre os homens, um imediato levante de reconhecimento. Um, o maior poeta da Língua, além mesmo de Camões; o outro, mulato carioca, de repetidas internações por crises nervosas, batido pela vida e pela sífilis, gênio ao escrever, suburbano para viver. Portugal levou décadas a buscar no Baú a genialidade de Fernando Pessoa e dos mais de 200 que o habitavam, numa gangorra de excelências e de mistérios. Gastou 50 anos - "Quem quer passar além do Bojador/Tem que passar além da dor " - para, revirando a Arca, por fim decidir ir buscar as relíquias do poeta morto aos 47 anos, do Cemitério dos Prazeres para o Panteão Nacional, nos Jerónimos. Onde a pátria lusitana peregrina hoje ao seu maior nome. Lima Barreto, e seus cambaios sapatos, também alteia-se para o lugar que indiscutivelmente é seu; ele, que não teve dúzia de acompanhantes no féretro quase anônimo, enquanto no quarto ao lado gritava seu pai, louco. Portanto, consola ao coração que a dívida à professora indistinta de gerações tenha sido paga hoje, em primeiro lugar, pelo Céu Azul de Abril da terra que amou, e pela qual viveu minuto a minuto. Seu nome seguirá no coração de milhares, em especial dos alunos que, um dia, nas aulas de português da Velha Escola Normal, da sua voz em primeiro lugar ouviram, em latim - sic transit gloria mundi. Pois que, passageira é a glória do mundo. Não para o Céu de Abril. |
Por Paulo Narciso - 2/1/2015 10:03:54 |
De gravatinha borboleta preta e o rosto sereno de sempre, conduta lhana que foi a marca da sua vida. Assim se despede de nós, nesta manhã, o mais completo intelectual da cidade, o humanista Haroldo Lívio, também escritor, cronista, jornalista, bancário e oficial dos registros públicos. Aplicado, devotado, talentoso, o menino/jovem Haroldo Lívio, logo que se mudou para Montes Claros, entrou numa biblioteca e não saiu de lá enquanto não acabou de ler o último volume. Tornou-se, é claro, o maior sábio entre nós, uma enciclopédia permanente, para qualquer consulta, ornada de generosidade, comedimento e paciência. O nosso Sócrates, no Jardim de Academus que escolheu. Foi funcionário do Banco do Brasil e renunciou à carreira para seguir o ofício do pai, escrivão do Poder Judiciário. Por concurso, assumiu o Cartório de Imóveis de Porteirinha e acrescentou àquela cidade os traços de seu desprendimento e de sua cultura. Haroldo Lívio paira sobre sua região como o homem dos vôos mais altos, embora encerrados numa disciplina de modéstia e humildade que durou 76 anos, interrompidos ontem à noite, por volta das 22h. Os acontecimento mais importantes da cidade nos últimos 60 anos foram celebrados por sua escrita, ou relembrados. No jornalismo, ocupou-se, entre outras coisas, daquilo que é mais difícil, mais delicado - o registro dos que partem, o chamado necrológio, que também celebrizou Hermegildo Chaves, o Monzeca. Resumir sua vida de humanista pede muitas páginas, e elas ficarão incompletas. O fato é que Haroldo sentiu muito a partida do seu único irmão homem, Fernando, há dez meses. Apenas os muito próximos puderam entrever, no silêncio de sua conduta alta, o quanto lhe custou a separação. Há dois meses, submeteu-se a uma cirúrgia de bexiga, sem maiores complicações. Um quadro de diabetes, despertada pela falta do irmão mais velho, se incumbiu de dificultar as coisas. Havia também a descompensaçao da glicose. De qualquer modo, não tomou o lugar de ninguém nos hospitais, trasbordantes e exaustos. Morreu ontem em casa, assistido pela esposa, Maria do Carmo, e pelas filhas. Serenamente. O velório começou por volta das 2h da madrugada desta sexta-feira, numa bela noite de lua cheia, de céu infinitamente azul, onde sempre viveu sua alma. O sepultamento está marcado para as 14 horas. Mas, pessoas esplêndidas como Haroldo Lívio não vão à sepultura. Permanecem. |
Por Paulo Narciso - 16/11/2014 13:18:10 |
Daqui, de onde o homem partiu para as estrelas, tomo conhecimento de que Dona Ruth Tupinamba Graça ergueu-se para outros mundos, merecidamente promovida, com excelentes notas. Interrompo a visita e, de um canto ao pé do foguete com seus impressionantes 110 metros, no caso o Saturno V, contemplo nos céus de M. Claros esta outra escalada, cingida e nimbada de qualidades humanas que não nos deixam devedores de ninguém. O céu do sertão incorporou uma estrela. Sua voz ficará, firme e sem medos, como foi sua vida. Não choremos. Celebremos. |
Por Paulo Narciso - 4/1/2014 15:41:57 |
No entardecer de 6 de dezembro, no Tempo da Epifania, depois de muitas vezes, consegui que Raio atendesse o interfone da casa/museu do seu pai, onde pincéis produziram quadros e horas inolvidáveis, como Pavão gosta de repetir. Atendeu, identificou prontamente a voz que o buscava, saiu à porta e, milagre, aceitou alegremente deixar os seus domínios últimos, e conversar. (Igor, seu irmão, ontem perguntou: "com que trator conseguiu arrastá-lo?") O fato é que Raio veio, contente conversar. Ali perto, de uma varanda para a cidade, por 3 horas conversamos, ou mais. Apenas os dois. Nossas vidas de 60 anos foram recuperadas, e revisitadas, em cada quadra. Pareceu-me muito com o gigante que foi seu pai. Lúcido, raciocínio alto, controle da situação, despojamento, despreendimento. Um sábio que se ancora na solidão, para melhor falar com Deus, que a todos ouve no grande deserto. Inesquecíveis 3 horas, de vasto sobrevôo. Apenas uma vez Raio desceu às vicissitudes humanas, quando se sentiu, e confessou "rodeado de buracos". A imersão, rápida, às regiões de dor sempre foram passageiras no fantástico mundo que sempre soube construir, um seguido sempre de muitos outros, infindáveis. Tomei a iniciativa, deliberada, de afastá-lo dos "buracos", e provoquei para que voltasse aos planos costumeiros de sua lucidez, que a muitos pode parecer caótica, e nunca, nunca foi. A solidão dos altos vôos, a espaços rarefeitos, é um preço a ser pago, e ir lá nada tem de egoístico, de soberba ou superioridade. Raio exibiu maioridade mental - leve, verdadeiro, autêntico, e nosso diálogo, com a promessa de muitos outros, foi longinquo e privilegiado, até para a noite que é de Epifania. O homem tocando as suas cumeeiras, equilibrado e justo, no esplendor do pouco querer. Lembrei-me de Taine, citado por Lima Barreto: "Tudo amar para tudo compreender, tudo compreender para tudo perdoar..." Percorremos S. Joao da Cruz e Yogananda, e ele fluiu soberanamente, leitor voraz que sempre foi. Fui entregá-lo de volta á sua casa, a pé, em função de detalhe que me impressionou profundamente. Raio, quando aceitou vir comigo, naquele entardecer (repetirei sempre: começo de Epifania), a cada passo que se afastava da Casa do Pai, voltava-se com o olhar para ela. Fez isto várias vezes, no espaço de 2 quarteirões. Talvez se perguntando: se saberia voltar, se era capaz de voltar. Temia não voltar, esquecer o caminho, perder-se? Voltou. Voltará muitas vezes. Numa Noite, Feliz. (Estas lembranças dito com um só dedo, que é o que este mini-computador aceita, em trânsito, a caminho, para dizer "bravo" ao que depôs seu primo Ucholino, sempre muito bem. Raio vive) |
Por Paulo Narciso - 15/8/2012 15:16:22 |
São memoráveis estas novas páginas de Flávio Pinto, já consagrado por outras publicações – em jornal e livro. Ungido desde os tempos d “O Jornal de Montes Claros”, ainda na década de 60, rapazola. As crônicas aqui ajuntadas eu as li em primeira mão, quando as recebi para publicar no nascente montesclaros.com, já agora com 12 anos. Tive o privilégio de lê-las em primeiro lugar – a primazia. Quando Flávio decidiu colocá-las em fila, no livro, com o amorável título, mandou-me o rascunho. Chegou-me em hora do almoço. Entre a refeição e a leitura, a emoção fez digitar no Ipad, com um só dedo, o bilhete que confessava a sedução em flagrante: “Com um olho no prato e o outro no livro, acabo de percorrê-lo. O tempo está nublado em M. Claros, o que contrasta com a luminosa evocação que você faz dos nossos dias – eternas tardes ensolaradas que jamais se dissiparão. Chamadas para o livro, estas suas, nossas recordações, crescem muito mais. Corra a publicá-las. Esperaremos pressurosos. Iluminarão outras tardes, clarearão outras vidas. Sugiro a colocação das datas, para ancorar os fatos num tempo que realmente existiu – pois muitos duvidarão de que fomos tão felizes, e de que houve tempo assim, tão (ainda) perto de nós” Nas evocações neste livro contidas, digo-o já, há um terno e singular lirismo, sem transbordamentos.Quando por exemplo o autor diz: “-... os poetas, sempre voltarão. Principalmente os que falam com as estrelas. Um dia o povo ainda haverá de ouvi-los. E se manifestará, nesta terra de eterna Inconfidência. Que não seja nunca. E nem tarde”. Ou, quando, mais à frente, deixa escapulir: “O sargento vigiando os atiradores. As freiras de olho nas moças. O tocador, no olhar de certa. Que atravessou toda a avenida e se perdeu No tempo”. Para, adiante, perguntar: “E o Mural? E responder, ele mesmo, autor: “É o Cooper da atividade intelectual do montesclarense. Quantos poetas, quantos escritores, quantas idéias estariam hoje dentro do vazio de uma gaveta, junto a mofo e seculares poeiras, se não fosse este mágico Mural para retirá-los do buraco negro onde estavam e trazê-los para cá, cada um dando o recado de seu jeito, seja mais culto ou menos sabido e fazendo-nos ver e crer que existe realmente vida e coração alegres batendo à nossa volta” Foi o que constatou em vésperas de Natal, o de 2006. Não sem antes, ou depois, deixar vazar o gemido, quando tombaram, tocaiaram sordidamente o prédio do antigo Seminário Diocesano, que foi sede do Ginásio Municipal e da Prefeitura, trespassado junto com a nossa avenida: “Ai vi a foto publicada nos jornais, do velho ginásio. Destelhado, as telhas na calçada e a chuva molhando tudo. Como lágrimas. Que tristeza”. Por tudo que vai neste novo livro, creio que não será muito pedir, por todos, que Flávio Pinto prossiga. Prossiga como cronista da nossa cidade. Pedir que lamba, sempre mais, a cria que é capaz de extrair do seu coração, dos refolhos, das dobras e das redobras, para ensolarar as muitas tardes de uma quase miragem que não se perdeu, nem se perderá. E que todos chamamos, e amamos, como os montes claros. Assim, seja. |
Por Paulo Narciso - 3/5/2012 17:42:52 |
Aconteceu perto de nós Paulo Narciso - Jornal O Tempo (BH) Guardo na sala de direção da Rádio Montes Claros 98 FM documento emoldurado que melhor ficaria depositado, e reverenciado, nos arquivos dos momentos mais altos da imprensa mineira e brasileira, se este cuidado fosse comum entre nós. São as folhas originais do editorial de fechamento de um jornal de província. No caso, o “O Jornal de Montes Claros”, que circulou por 38 anos. Jornais, como pessoas, nascem, vivem e morrem, e assim dão sequência aos serviços da natureza como resumiu líder espiritualista mineiro. Uma coisa distingue este jornal e o seu editorial de fechamento de quantos são conhecidos. Na década de 80, o diretor Oswaldo Antunes, da mesma turma e linhagem de Edgar da Matta Machado, Alphonsus de Guimaraens Filho, Otto Lara Resende, José Mendonça, Hélio Pellegrino e Milton Amado, percebendo que não mais poderia sustentar o jornal com a altivez e correção de quatro décadas preferiu, ele mesmo, sufocá-lo. Matá-lo. Produziu um documento primoroso. Raro. Extraordinariamente belo e alto. E, no gesto solitário, sereno, cortou o caminho que pudesse levar o jornal, como as pessoas, a sangrar em público e descer pela vida. Oswaldo Antunes, assim como Wander Pirolli, Célius Aulicus, Fialho Pacheco, Hermenegildo (Monzeca) Chaves, Odair de Oliveira, Teódulo Pereira, Pedro Agnaldo Fulgêncio e muitos outros, fez escola. Deixou discípulos. Faleceu em 11 de abril, aos 88 anos. Entre as homenagens que recebeu juntou-se o minuto de silêncio que o Atlético Mineiro enviou-lhe na tarde ensolarada de domingo, ao saber que tinha em M. Claros, incógnito, um torcedor tão discreto quanto fervoroso e honrado. Por muito tempo se lerá o editorial "Calar Antes do Fim”, entre a contrição do sagrado e a veneração discipular. Ensinava o mestre: “... o órgão de imprensa, como os órgãos da emoção e da inteligência humana, não podem viver apenas para sobreviver. E quando essa sobrevivência somente seria possível com a mancha do dinheiro fácil, a ser conseguida no campo da corrupção e da submissão dos ideais, é melhor parar antes de sujar as mãos e a consciência. (...) Este jornal viverá enquanto forem lembradas suas lutas, enquanto aqueles rapazes e moças que passaram pela redação continuarem, em outros órgãos de imprensa, a exercer com bravura, independência e inquietação social, tudo que aprenderam nesta casa, que souberam honrar e amar mais do que a pequena remuneração que recebiam. (...) Um jornal acaba menos por se calar com honra e mais por submeter-se a interesses que não sejam os da comunidade. Por isso mesmo, resolvemos calar antes do fim!" Na noite em que foi velado, enquanto a notícia se espalhava pela cidade de quem é o pai da imprensa, refletiram todos na ausência que impunha o coração que deixara de pulsar, mas não de viver. Inevitável era revisitar o “Calar Antes do Fim”. Para concluir que o editorial, extraído das cumeeiras morais mais altas, doeu mais naqueles que o leram, de súbito na tarde inadvertida da mocidade, do que no Homem que serenamente o datou e assinou, tão certo estava da convicção que o compelia. São momentos raros na vida dos povos. Existem. Aconteceu perto de nós e faz pouco tempo. |
Por Paulo Narciso - 4/7/2011 09:19:48 |
Foi Alberto Sena “fucutar” de Belo Horizonte e Wander Pirolli reapareceu completo, genial, nesta segunda de infinito céu azul em M. Claros. Manhã que guiará a tarde ensolarada de sempre no burgo que ele amou, e aonde veio muito, muito, nos últimos anos de vida – vida intensa. Um dia, percorreremos juntos, novamente na companhia de Raquel, os caminhos cúmplices que juntos fizemos por estas ruas e praças. Agora ainda é cedo. Assim, eis que volta na bela manhã este imenso Wander, tão bem evocado por Alberto. Em 2008, dois anos depois que “passou à imortalidade”, a outra, Tião Martins – editor do Estado de Minas, como Wander, como Alberto – encomendou uns "recuerdos" para o livro em torno do mestre incomum, ícone de uma geração. Dói - por certo dói, rechamar os amigos que já não podemos ver, mas que continuam a existir – e cujo nome nunca será apagado de nossas agendas, para ficar na imagem que é do próprio Wander. Mas Tião, sempre bom, encomendou e preparei umas linhas. São as que seguem. Se as republico agora, a culpa certamente é de Alberto Sena, que não pode assim, brusco, invadir o céu azul de uma segunda-feira do sertão. Céu infinitamente anil - reparem, por favor. A só companhia de Wander, por alguns anos, já é suficiente para justificar qualquer vida. “Quando não se tem a alma pequena – resmunga o poeta, do lado de lá da montanha que querem desventrar. A Wander: 26/8/2008 13:50:42 Desculpai todos, mas Wander foi o melhor Paulo Narciso Wander Pirolli, nome curto para um legado enorme. Quando morreu Monzeca, também chamado de Hermengildo Chaves, Ayres da Mata Machado Filho pediu licença para ser enfático - “desculpai, mas Monzeca entre nós foi o melhor”. O mesmo peço permissão para dizer. Wander Pirolli, em tudo (editor, escritor, amigo, Homem) foi, de nossa geração (a dele, um pouco antes), o melhor de todos. Já o conheci quando o autor da “Mãe e o Filho da Mãe” entrava nos 40 anos e eu, seu repórter na Editoria de Polícia do Estado de Minas, nos 20. Foi Wilkie Rodrigues (por Wander batizado de “embaixador senegalês”) quem me segredou, com cerimônia e cumplicidade: “é o genial Wander, escritor”. Nada sugeria o intelectual. Sua simplicidade não cabia no molde do contista mineiro, classe que atingia o topo da glória naquela quadra. Despojado, sem preocupação com o apuro em vestir, camisas eternamente queimadas por cinzas de cigarro, era o cidadão comum, um operário, origem da família italiana da qual se orgulhava, e cuja saga está no autobiográfico “A Mãe e o Filho da Mãe”. No time de futebol bissexto da redação, era o único que jogava descalço, sem prejuízo de chutar forte com o dedão levantado. Perguntado se pretendia chegar à Academia Brasileira de Letras, respondeu afirmativamente. - Sim, quando estiver entrevado. Nada, repito, nada até os últimos dias indicava que o homem modesto era o escritor Wander Pirolli, admirado em toda parte, por tantos. Foi o pai incontrastável de uma legião de colegas que o terão para sempre como referência absoluta. A partir do primeiro encontro no jornal, acompanhei-o vida afora, de perto. Admirei-o como campeão da escrita enxuta, dos tipos mais humanos que vi, e como titulador (de notícias) sem igual. No encontro que promovi entre os dois, o esfuziante Darcy Ribeiro o saudou, dizendo que seria o escritor número um do Brasil se tivesse a “concisão” de Wander. Sem esforço, uma multidão de manchetes feitas por Wander retorna de muito longe: “Samurai da Vasp cai nos grotões de Maria Bonita”, “Fórum fecha, ou toma jeito”, “A esperança muito passageira do Trem do Sertão”. (Aqui, é forçoso lembrar que o título do livro “Os Rios Morrem de Sede” deveria ter sido – e fui voto vencido – “Bumba, Meu Rio”. Mas, nem todos saberiam que “Bumba” é o doce apelido do menino filho de Wander, que na pescaria com o pai viu o caudal minguar e quase morrer, de sede). Quando retornei à minha M. Claros da infância, pelo fim dos anos 70, a distância mais nos aproximou, anulada pela admiração que sua conduta incomum inspirava, de homem natural no convívio com os semelhantes-dessemelhantes. Wander distinguia os amigos, e foi constante nas visitas ao sertão para descansar na casa que era do seu gosto despojado. Amava viver, tanto que nas raras visitas que fazia ao médico pedia desculpas por não ter nada para se queixar, por não sentir doença alguma, nem dores, no corpo vigoroso e na mente privilegiada, apesar do cigarro e do exagero na bebida. Foi na casa montesclarense, na companhia de Ricardo Eugênio, o “Dindorim” do Estado de Minas, que justamente sentiu o primeiro sinal do AVC progressivo que o levaria em 2006, com direito de usar boné no aceno derradeiro. Nosso último encontro, uma viagem, permanecerá como cerimonial não previsto de uma despedida, de quem não partiu, nem partirá. Pedi sua companhia para visitar a casa em reconstrução de CDA em Itabira, assim como o museu do poeta prestes a ser inaugurado. Wander aceitou viajar, com alegria. Na saída de casa, ainda falava com dificuldade, seqüela da doença que preservou sua mente, mas dificultou-lhe a fala e, progressivamente, a escrita, isolando-o em casa. O gigante já prisioneiro do próprio corpo. Ao deixar-mos uma BH corrompida de favelas, no campo aberto do caminho, por algum prodígio Wander recuperou a integral capacidade de falar e expressar-se. Admirei a mudança, e chamei a sua atenção. Ele notou que falava de novo sem peias. Mistério. Viajamos mansamente numa descansada trilha do passado, onde nada deixou de ser lembrado, como se ali inventariássemos a vida, ainda muito cedo para balanços. Falou, discorreu, avaliou, refletiu, fez de tudo - na ida e na volta, como nos velhos tempos. Apenas ao chegar à cidade de Itabira, por razão que também desconheço, teve novamente passageira dificuldade para se expressar, limitação descartada na viagem de volta. Ao deixá-lo na porta de casa, ainda na Serra, quando seu corpo levemente pendeu, não sabia que ali nos despedíamos. Levava debaixo do braço um São Francisco de Assis, do primitivo Assunção, barbeiro centenário, que visitamos. Fisicamente nos despedimos, apenas. Recebia dele originais de livros e, com freqüência, cartas e e-mails – pois Wander quis driblar o isolamento com ajuda da internet. Certa vez, me lembro, ao descrever Paulo Lott, ainda nas reuniões informais da Editoria de Polícia do jornal (que o grande Fialho Pacheco chamava ironicamente de “petit comitê”), Wander refletiu, referindo-se a Lott, também cria sua: -Este Peclot (resumo de Paulo Emílio Coelho Lott) ocupa o lugar exato no espaço. Recomponho a frase, e revejo o elogio, sincero e preservado, que ela esconde. O poder de síntese e de sabedoria para descrever o amigo que admirava talvez seja a melhor definição do próprio Wander, o tóteme que conheci, o intelectual sem afetação, humanista sem placa, gênio cuja natural modéstia dispersava aclamação e reverência. Desculpai todos, mas Wander foi o melhor. |
Por Paulo Narciso - 11/3/2010 11:47:51 |
O que o mestre Oswaldo Antunes abaixo mandou fazer dá livros. Mas, hoje, no improviso, cabe numa linha: na vida, outra coisa não fiz, não fizemos todos nós seus discípulos, do que seguir o caminho que ele e Waldyr nos indicaram, tomando-nos pela mão. No meu caso, ainda menino. Menino antigo, sob os presságios da inapagável, amada presença de Nathércio França. Agora, já de cabelo e barba brancos, que a implicância e o filho mandam conservar para lembrar, recebi (ontem) aqui na redação conjunta da Rádio Montes Claros 98 FM, da Rádio São Francisco de Assis 93 FM e do montesclaros.com a visita sempre amena do honrado coronel Lázaro, ex-comandante da PM em Montes Claros. Entre abraços, evocações e lembranças, revivemos os nossos tempos inaugurais. Ele, como jovem e brilhante oficial da PM, eu como o repórter quase menino. Por dever de ofício, o tenente recebeu a incumbência, difícil, de ser censor de jornal em dias tempestuosos, ingrata função que cumpriu como soldado que segue ordens. Pois bem. O tenente foi a capitão, o capitão foi a major, a tenente coronel e a coronel, e como comandante do seu batalhão aposentou-se merecidamente, já faz 20 anos. Eu, disse a ele, sigo fazendo as mesmas rasas coisas que aprendi na redação d "O Jornal de Montes Claros", sem nunca me dar conta de que de alguma forma possa ter crescido, promovido, sequer mudado, escorado na sentença - "gente grande já foi criança, só esqueceu". Não, não esqueci. Nada retocaria na vida que seguiu, e em especial retornaria aos dias primeiros vividos numa redação de jornal, a minha casa definitiva - nunca provisória. Vida que jamais seria a mesma venturosa vida se numa tarde ensolarada - como no Cinema Paradiso - não houvesse passado o filme chamado "O Jornal de Montes Claros", em austero preto e branco. (Aos camaradas daqueles dias, chamo, e também aos que partiram, ouviu Lazinho? Sentem-se. Fechem os olhos. Revejam a película. A nos convidar, está o mais genial dos escritores do Brasil, com a frase eterna que a memória recita - "Convosco recomponho, revenho ver" ). |
Por Paulo Narciso - 27/12/2009 11:07:11 |
(A Editora O Lutador acaba de publicar em Belo Horizonte o livro - "O Sonho é Possível", coordenado pelo jornalista Itamar de Oliveira. Reúne depoimentos do cardeal Dom Serafim Fernandes e dos demais fundadores, reitores e professores da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, que completou seu primeiro meio século. Há, entre eles, o "recuerdo" abaixo, de um aluno da Universidade). De Volta ao Cavaleiro de Preto Paulo Narciso (*) Itamar de Oliveira, o amigo com quem fiz dupla nas coberturas de imprensa nos anos 70 em Belo Horizonte (ele pelo Jornal do Brasil, eu pelo Estado de Minas), pede para assoprar o monturo de lembranças de nossa passagem pela Universidade Católica. O ano é 1971. Havia chegado do interior, onde entre os 15 e os 20 anos trabalhara como repórter em antológico jornal - “O Jornal de M. Claros” -, que deliberadamente escolheu cerrar suas portas a prosseguir sem a independência editorial que sustentou por 40 anos. Contratado pelo “Estado de Minas”, já com registro de jornalista profissional aos 20 anos, pretendia estudar Direito, o curso de graduação preferido por quase todos os que escolheram o jornalismo como primeira profissão. O assalto a um banco, de conotação “subversivo-terrorista”, como a censura impunha aos jornais dizer, fez-me trabalhar na cobertura até alta madrugada do dia da última prova da Universidade Federal, a que não pude comparecer. Acabei aprovado pela Universidade Católica. Passei a freqüentar as aulas pela manhã, reservando as tardes e as noites ao jornal, na editoria de Wander Pirolli, o célebre autor da “Mãe e o Filho da Mãe”. No último ano da faculdade, migrei para o período noturno e assumi a assessoria de imprensa da universidade, a convite do vice-reitor Gamaliel Herval. A Faculdade de Direito chegava aos 25 anos, oito na frente da própria Universidade, hoje PUC, que agora alcança os primeiros 50. O reitor Dom Serafim, posteriormente cardeal, desejou comemorar com gala o jubileu da “escolinha do bispo”, assim chamada por ter sido criada por Dom Cabral. Como assessor e formando, apresentei sugestão de que se criasse medalha, de âmbito nacional, com o nome de Sobral Pinto, para homenagear aquele que na atividade jurídica mais se destacasse na defesa dos Direitos Humanos, tão prostrados e humilhados. Os tempos eram sombrios, melancólicos. O regime de exceção, radicalizado pelo AI-5, impunha sua férrea vontade sobre tudo, da atividade parlamentar ao trabalho da imprensa e também sobre a universidade e os demais centros de difusão do saber. A censura mutilava os jornais, a ponto de no lugar das notícias vetadas saírem receitas de bolo e irônicas previsões do tempo. Prisioneiros políticos apareciam mortos sob a versão de atropelamento em fugas que jamais existiram. Outros, "suicidavam-se" na prisão. A resistência ao arbítrio, fragmentada e sob cerco, rebrotava sempre, para sempre ser esmagada. Neste triste cenário, um homem eternamente vestido de preto, de luto permanente pela morte de uma filha, em 1956, de câncer, mas jovem nos seus mais de 70 anos, um homem impunha-se ao País pela solitária coragem. Mineiro, chamava-se Heráclito Fontoura Sobral Pinto. Não havia semana sem que sua autoridade, moral e jurídica, não disparasse carta aos generais-presidentes, em linguagem respeitosa, mas dura, exigindo o fim dos tempos de exceção e arbítrio. Numa delas, de que guardo o original, dizia: " É curioso que os nossos governantes militares não cessem de processar como subversivos aqueles que os acusam de estar suprimindo a liberdade em terras da Pátria. Entretanto, subversivos são eles, porque a disciplina militar cria para eles o dever de permanecerem dentro dos quartéis, preparando-se para, obedientes ao Poder Civil, defenderem a ordem constitucional da Nação. Em vez de cumprirem esta missão fundamental, eles saem dos quartéis, indisciplinadamente, e se apoderam do Poder, rasgando a Constituição, que deveriam defender e resguardar". Era, o doutor Sobral, um veterano no enfrentamento das ditaduras. Arrostou a de Vargas e nela produziu a mais alta página da advocacia brasileira, ao invocar a Lei de Proteção aos Animais para salvar a vida de um cativo, Harry Berger. O alemão companheiro de Prestes na Intentona Comunista era mantido prisioneiro num socavão de escada. Impedido de dormir e torturado com arame incandescente introduzido na uretra, aproximava-se do fim. Exausto de implorar por sua vida através da lei dos humanos, Sobral recorreu à lei dos animais. Também não foi atendido. (Berger só deixaria a prisão no fim do Estado Novo, em 1945, para morrer na Alemanha, louco). Antes, havia defendido também o escritor Graciliano Ramos, que nas "Memórias do Cárcere" fixou sua coragem e irrepreensível conduta. Sobral Pinto era o nosso ídolo, dos jovens, e de quantos conhecessem a sua história. A admiração que por ele tínhamos enciumava Darcy Ribeiro, amigo e conterrâneo. A criação da medalha, com nome assim tão alto, teria para nós o efeito, simbólico, de uma vela levantada em tempo de trevas. O reitor dom Serafim ouviu a proposta e na hora respondeu: - Será criada a medalha com o nome de Sobral Pinto, desde que os formandos de 1975 da Faculdade de Direito formalizem a idéia. Tinha uma pedra no caminho. Sobral Pinto nunca soube, mas houve resistência ao seu nome, por parte de alguns alunos, desinformados, vítimas da propaganda do regime, que o supunham “comunista e defensor de comunistas”. Cabia dissipar o equívoco. Procurei em caráter particular o professor Alberto Deodato, muito querido nos meios acadêmicos. Que aceitou alegremente a sugestão de repor o perfil do homenageado na coluna semanal que mantinha no “Estado de Minas”. Exultou a idéia e por ela se bateu. O colunista “mestre Midosa de Sá e Benevides”, o Péricles que escrevia pelas mãos de Theódulo Pereira, imediatamente se aliou em desfazer o engano, através de longa e respeitável coluna. Em poucos dias, todos os formandos, sem exceção, apresentaram o documento que propunha a criação da Medalha. Dom Serafim atribuiu ao professor Afonso Henriques Prates Correia a formulação do estatuto. Um lépido Sobral Pinto, de 82 anos, sempre de preto, veio entregar a primeira medalha e todas as seguintes, enquanto viveu. Colocou-a no peito de Edgar da Mata Machado, de Hélio Bicudo e de Tristão Atayde. Apenas tempos depois, na campanha das diretas, o Brasil despertaria para aplaudir numa apoteose (que as TVs incansavelmente mostram até hoje) o homem miúdo, de preto, que exigia obediência ao artigo primeiro da Constituição. Ainda é preciso lembrar: Uma comissão dos bacharéis de 1975 foi ao Rio fazer a comunicação oficial. Sobral residia em velha casa da Rua Pereira da Silva, perto do Palácio das Laranjeiras. Na manhã chuvosa, nos recebeu. O último a entrar, indagou: - Doutor Sobral, é para deixar a porta aberta ou devemos fechá-la? A resposta foi taxativa, para aqueles dias: - Por mim, não há necessidade de fechar a porta. Mas, se vocês temem por alguma coisa, que a fechem! Sim, havia medo por toda parte. Ao Jornal do Brasil, aos demais jornais que maciçamente cobriram as suas vindas a Belo Horizonte, Sobral repetiria: -“Parece que houve um certo exagero em transformarem minha atividade profissional numa láurea permanente para outros advogados que se esforçam no País para que sejam respeitados os Direitos Humanos, tão preteridos, tão esquecidos, tão desprezados. Há uma desproporção entre a honraria e minha atividade. O que eu fiz muitos outros certamente têm feito. De qualquer modo, se esta decisão partiu de jovens, isso prova que minha vida não foi inútil.” A Universidade Católica ainda patrocinou “Lições de Liberdade”, o livro com suas petições que rapidamente escalou a lista dos mais lidos do País, ainda na ditadura. Até desaparecer, em 30 de novembro de 1991, Sobral manteve-se ligado à PUC e a dom Serafim, a quem nas cartas reiteradas que escrevia invariavelmente começava com um pedido assim: - "Estou certo de que será com prazer que me dará a sua benção episcopal, de que tanto careço; ela me reanimará, pondo-me no caminho da obediência evangélica, solicitando que, quando oficiar a Santa Missa sem intenção particular, se digne de consagrá-la a mim e aos meus..." Trinta e três anos depois de deixar a Universidade, quando a ela torno neste retrospecto, é ao encontro do cavaleiro de preto que vou. Sinto a sua enérgica presença, sua autoridade moral incorruptível, a nos encorajar, a nos dizer: não desistam, não desistam da esperança, não desistam da luz! E ouço, ouço ainda, como naquela noite fria de maio de 1971, a doce, a pequenina voz de Aires da Mata Machado Filho elevar-se por entre as flores do campus, os olhos quase cegos erguendo-se para a luz, a luz do luar: É a ti flor do céu que me refiro Neste trino de amor nesta canção Vestal dos sonhos meus, por quem suspiro E sinto palpitar meu coração Oh! dias de risonha primaveras Oh! noites de luar que tanto amei Oh! tardes de verão ditosa era Em que junto de ti amor gozei Não te esqueças de mim por piedade Um só dia, um só instante, um só momento Não me lembro de ti sem ter saudades Nem podes me fugir do pensamento Quem me dera outra vez este passado Esta quadra ditosa em que vivi Quantas vezes eu na lira debruçado Cantando em teu colo adormeci. Foram dias que vivi. De março 1971 a 12 de dezembro de 1975 (*) Paulo Narciso é jornalista. Em 1975 diplomou-se em Direito pela PUC. |
Por Paulo Narciso - 26/8/2008 13:50:42 |
Desculpai todos, mas Wander foi o melhor Paulo Narciso Wander Pirolli, nome curto para um legado enorme. Quando morreu Monzeca, também chamado de Hermengildo Chaves, Ayres da Mata Machado Filho pediu licença para ser enfático - “desculpai, mas Monzeca entre nós foi o melhor”. O mesmo peço permissão para dizer. Wander Pirolli, em tudo (editor, escritor, amigo, Homem) foi, de nossa geração (a dele, um pouco antes), o melhor de todos. Já o conheci quando o autor da “Mãe e o Filho da Mãe” entrava nos 40 anos e eu, seu repórter na Editoria de Polícia do Estado de Minas, nos 20. Foi Wilkie Rodrigues (por Wander batizado de “embaixador senegalês”) quem me segredou, com cerimônia e cumplicidade: “é o genial Wander, escritor”. Nada sugeria o intelectual. Sua simplicidade não cabia no molde do contista mineiro, classe que atingia o topo da glória naquela quadra. Despojado, sem preocupação com o apuro em vestir, camisas eternamente queimadas por cinzas de cigarro, era o cidadão comum, um operário, origem da família italiana da qual se orgulhava, e cuja saga está no autobiográfico “A Mãe e o Filho da Mãe”. No time de futebol bissexto da redação, era o único que jogava descalço, sem prejuízo de chutar forte com o dedão levantado. Perguntado se pretendia chegar à Academia Brasileira de Letras, respondeu afirmativamente. - Sim, quando estiver entrevado. Nada, repito, nada até os últimos dias indicava que o homem modesto era o escritor Wander Pirolli, admirado em toda parte, por tantos. Foi o pai incontrastável de uma legião de colegas que o terão para sempre como referência absoluta. A partir do primeiro encontro no jornal, acompanhei-o vida afora, de perto. Admirei-o como campeão da escrita enxuta, dos tipos mais humanos que vi, e como titulador (de notícias) sem igual. No encontro que promovi entre os dois, o esfuziante Darcy Ribeiro o saudou, dizendo que seria o escritor número um do Brasil se tivesse a “concisão” de Wander. Sem esforço, uma multidão de manchetes feitas por Wander retorna de muito longe: “Samurai da Vasp cai nos grotões de Maria Bonita”, “Fórum fecha, ou toma jeito”, “A esperança muito passageira do Trem do Sertão”. (Aqui, é forçoso lembrar que o título do livro “Os Rios Morrem de Sede” deveria ter sido – e fui voto vencido – “Bumba, Meu Rio”. Mas, nem todos saberiam que “Bumba” é o doce apelido do menino filho de Wander, que na pescaria com o pai viu o caudal minguar e quase morrer, de sede). Quando retornei à minha M. Claros da infância, pelo fim dos anos 70, a distância mais nos aproximou, anulada pela admiração que sua conduta incomum inspirava, de homem natural no convívio com os semelhantes-dessemelhantes. Wander distinguia os amigos, e foi constante nas visitas ao sertão para descansar na casa que era do seu gosto despojado. Amava viver, tanto que nas raras visitas que fazia ao médico pedia desculpas por não ter nada para se queixar, por não sentir doença alguma, nem dores, no corpo vigoroso e na mente privilegiada, apesar do cigarro e do exagero na bebida. Foi na casa montesclarense, na companhia de Ricardo Eugênio, o “Dindorim” do Estado de Minas, que justamente sentiu o primeiro sinal do AVC progressivo que o levaria em 2006, com direito de usar boné no aceno derradeiro. Nosso último encontro, uma viagem, permanecerá como cerimonial não previsto de uma despedida, de quem não partiu, nem partirá. Pedi sua companhia para visitar a casa em reconstrução de CDA em Itabira, assim como o museu do poeta prestes a ser inaugurado. Wander aceitou viajar, com alegria. Na saída de casa, ainda falava com dificuldade, seqüela da doença que preservou sua mente, mas dificultou-lhe a fala e, progressivamente, a escrita, isolando-o em casa. O gigante já prisioneiro do próprio corpo. Ao deixar-mos uma BH corrompida de favelas, no campo aberto do caminho, por algum prodígio Wander recuperou a integral capacidade de falar e expressar-se. Admirei a mudança, e chamei a sua atenção. Ele notou que falava de novo sem peias. Mistério. Viajamos mansamente numa descansada trilha do passado, onde nada deixou de ser lembrado, como se ali inventariássemos a vida, ainda muito cedo para balanços. Falou, discorreu, avaliou, refletiu, fez de tudo - na ida e na volta, como nos velhos tempos. Apenas ao chegar à cidade de Itabira, por razão que também desconheço, teve novamente passageira dificuldade para se expressar, limitação descartada na viagem de volta. Ao deixá-lo na porta de casa, ainda na Serra, quando seu corpo levemente pendeu, não sabia que ali nos despedíamos. Levava debaixo do braço um São Francisco de Assis, do primitivo Assunção, barbeiro centenário, que visitamos. Fisicamente nos despedimos, apenas. Recebia dele originais de livros e, com freqüência, cartas e e-mails – pois Wander quis driblar o isolamento com ajuda da internet. Certa vez, me lembro, ao descrever Paulo Lott, ainda nas reuniões informais da Editoria de Polícia do jornal (que o grande Fialho Pacheco chamava ironicamente de “petit comitê”), Wander refletiu, referindo-se a Lott, também cria sua: -Este Peclot (resumo de Paulo Emílio Coelho Lott) ocupa o lugar exato no espaço. Recomponho a frase, e revejo o elogio, sincero e preservado, que ela esconde. O poder de síntese e de sabedoria para descrever o amigo que admirava talvez seja a melhor definição do próprio Wander, o tóteme que conheci, o intelectual sem afetação, humanista sem placa, gênio cuja natural modéstia dispersava aclamação e reverência. Desculpai todos, mas Wander foi o melhor. |
Por Paulo Narciso - 25/8/2008 22:35:56 |
Na noite em que deveriam partir Paulo Narciso * No dia 4 de setembro de 1971, Judith Malina, teatróloga e militante anarquista, hoje com 81 anos, residente em Nova Iorque, escreveu no Diário que recolhe os acontecimentos de sua vida desde os 20: “- 7h30m: Apertem os cintos. (...) Nossos passaportes nos foram devolvidos com um carimbo preto enorme – EXPULSO - Ah, Brasil não foi em vão que te amei” Publicado com exclusividade mundial pelo jornal “Estado de Minas”, em julho e agosto daquele ano, o jornal assim apresentou o Diário, cuja exibição parcial fez rilhar os dentes da censura no auge do regime ditatorial: “Como peça literária, lembra a melhor corrente dos escritores americanos, uma literatura sem ênfase, contando o que pretende contar, sem apelação, nem efeito demagógico. Um relato, entre Hemingway e Malamud, a nostalgia de uma situação perdida, a realidade de sua situação vivida”. Trinta e sete anos nos separam daqueles dias de abertura do Festival de Inverno de Ouro Preto. Relembrá-los, ir de regresso, é doloroso exercício. Primeiro, porque a leitura deste livro, que catapulta para a história páginas de jornal que serviram de trincheira à resistência, traz de volta amargas lembranças. Dos dias do medo, ensombrecidos pelo estado policial instaurado para fazer valer a vontade e concepção única das coisas, e da vida. A tirania. Doído recuo, de quatro décadas, nos faz aceitar que vencida a noite da ditadura, a última, não foi muito o que conseguimos avançar em conquistas libertárias. Caminhamos, mas ainda pouco. Sonhávamos na juventude com o Brasil do futuro, que vimos à nossa frente, ao alcance das mãos. Mas o Brasil do futuro não chegou, não chega, parece que não chegará; insiste em escapar de nós. Medonhos dias e noites aqueles, escuros. No entanto, o ai que vazasse das prisões, e vazava apesar da repressão e da censura, o ai podia ser recolhido e multiplicado como tambores dispersos de uma floresta. O gemido passava pela porta dos cárceres, vinha dos subterrâneos e dos porões, e era recolhido, e era ouvido; e uma rede de compaixão se estendia, acima das ideologias. Hoje, que não há restrições nominais à liberdade, que o clamor é permitido e estimulado, já não há – paradoxo - quem nos ouça com conseqüência. O insidioso rebuço do estado paira sobre a nação. A inversão que desembarcou com as Caravelas em cinco séculos mudou de nome e de nuanças, mas prossegue sob variado disfarce. O estado escancha sobre a nação, sufoca-a; dela servindo-se, quando servir é o seu fundamento. No tempo em que a liberdade entre nós foi proscrita, o choro do embate, do revés, o da luta mesmo em desvario, era percebido, transpunha o manto do silêncio. Hoje, quando falar é livre, não há quem nos ouça. O estado fixa-se, rearruma-se novamente acima da nação, incontrastável, confirmando o dito do Império de que nada mais se assemelha a um conservador do que um liberal no governo. Mas, é do Diário de Judith Malina que devemos nos ocupar aqui. Voltemos a ele. Era jovem repórter. Tinha 20 anos. Havia acabado de chegar da natal Montes Claros, já com cinco anos de reportagem. Era grande a fila de estudantes de jornalismo para serem contratados. Fui encaminhado à cobertura policial em tempo recorde. Ninguém menos do que o genial escritor Wander Piroli era o nosso editor. O mais premiado entre os repórteres de Minas de todos os tempos sentava-se ao lado, ensinava, com o eterno cigarro fumegando nos lábios. Chamava-se Fialho Pacheco. A Editoria de Polícia, historicamente destinada a ser a mais acocorada do jornal, pela genialidade do seu editor, pela inquietação dos seus liderados, invertia as posições, a ponto de atrair a atenção e certo pasmo das demais. Foi ao anoitecer que chegou a notícia. Os membros do Living Theatre haviam sido presos em Ouro Preto. Ângelo Oswaldo, hoje curiosamente prefeito da outrora Vila Rica, era colega da Editoria Política e veio pressuroso – lembro-me bem – advertir de que aquela prisão transpunha o ambiente policial. Julien Beck e sua mulher Judith Malina e toda a troupe internacional reconhecida como o grupo de teatro de vanguarda mais importante do planeta acabavam de ser presos. Vagas acusações. Eram cabeludos e mal-cheirosos; não gostavam de banhos. Seriam depravados, usariam drogas, mas nenhuma foi encontrada com eles, jovens artistas de variadas nacionalidades que depois de soltos, nos anos seguintes, ascenderiam ao topo da carreira em seus países de origem. Presos e soltos em questão de horas, foram novamente trancafiados. Uma intrigante, vistosa seta (de tinta branca, recente) no porão da residência apontava para o chão. A polícia disse que cavucou e encontrou maconha. Provisão denunciada por uma seta atribuída aos que tinham o máximo interesse em ocultá-la... Foi o que bastou. Os teletipos espalharam a notícia pelo mundo, da prisão de um grupo que, acusado de ser mal-cheiroso, depravado, dado ao uso de drogas, tinha o costume de ler os clássicos da poesia grega e compêndios de política. Subversivos! - acrescentou denúncia. O Diário de Judith Malina que este livro reproduz e conserva para a história, tal qual foi publicado pelo jornal, conta a bizarrice deste folhetim. Hoje é até capaz de fazer rir; naqueles dias, causou espanto, calafrios, medo. O tom da escrita é sereno, meigo, poético. Gentil até com os carcereiros, os acusadores. (Sempre admiti que Judith, por razões óbvias, deliberadamente baixou o teor da narrativa para que mais não pesassem a mão sobre eles. Hoje, observo que não. Falou nela o sentimento que chamamos de cristão, mas Judith, nascida na Alemanha, é judia). O conteúdo é do humanismo de filosofia anarquista que fez do Living Theatre o grupo teatral de vanguarda mais importante do mundo, mesmo após a morte do seu fundador, Julian Beck, em 1985, nos Estados Unidos. O Dops – "Delegacia de Ordem Política e Social" - era a prisão política de Minas mais temida, assim com os cárceres de Juiz de Fora, onde ficava o comando militar. Reler os fragmentos do Diário de Judith Malina, como acabo de fazer, restaura o desalento que impregnou um período da nossa história, não tão distante quanto desejaríamos. Mas tem o poder de despertar a recordação de uma mulher pequenina, afável, e de seu Julien, amoroso casal, e da filha de 4 anos, que dos pais com um aceno entre grades despediu-se, levada pela avó paterna para os Estados Unidos. A incansável censura, às vezes dissimulada em cordialidade de ocasião, não reagiu à publicação e a abafou porque a repercussão foi imediatamente escorada pela imprensa internacional. E como o Diário foi publicado, como submergiu dos porões? Nas dezenas de entrevistas com o casal, especialmente na companhia escorreita do repórter do Jornal do Brasil, Itamar de Oliveira, soubemos que Judith mantinha no cárcere o hábito de escrever o seu Diário, tomado aos 20 anos. Solícita, amorosa, encantadora, falei-lhe reservadamente da possibilidade de publicar os relatos últimos, e ela assentiu, com olhares receosos. As bases para que o documento deixasse a enxovia pelas mãos do seu agente literário, que acabava de chegar dos Estados Unidos, foram definidas numa manhã de folga, no Hotel Normandy, onde o norte-americano se hospedara. As folhas em inglês eram-me passadas pelo editor, no hotel, e o jornal encomendou a tradução. Em série, dia após dia, ocupavam página inteira, com chamadas de capa, tudo reproduzido pelo “O Jornal”, do Rio, líder da cadeia associada, então majoritária no Brasil. A publicação do Diário a cada nova manhã, debaixo do visível desconforto da censura, assegurava o seu prosseguimento no dia seguinte. O jornal, visto frequentemente como conservador, ousava; não recuou, não se intimidou, e demarcou uma posição da qual retroceder seria impensável. - Amor. Caminhávamos nas ruas como leprosos. Estou com medo. Tenha coragem. Eu te amo. Nós venceremos. Horror. Deus. Pobres. Vômitos. Pulgas. Escuro. Romeu e Julieta na prisão. Beijos de Adeus. Preces. Anoitece. Teatro. Brasil. Mezuzá. Amanhecer. Eu e Tu. Melancolia. Saudades. Brandura. São palavras recorrentes deste depoimento que a história recolhe e novamente agita. Em julho e agosto de 1971 dezenas de vezes fomos a Ouro Preto, para as audiências do processo. Os presos viajavam num velho ônibus, com batedores de motocicletas à frente e policiais distribuídos pelo ônibus, com ajuda de cães, entre eles o célebre “Dólar”, o mais temido. Sempre atrás do comboio policial seguíamos no fusca azul do jornal, acreditando ingenuamente que podíamos de alguma sorte representar uma garantia para os prisioneiros. Gente cujo crime, a rigor, foi abandonar a glamorosa Europa para bailar e cantar nas ruas com os pobres de Ouro Preto. Judith registrou: “Em procissão, viajamos por entre as magníficas montanhas. Espantados, depois de um mês de cadeia, pela amplidão do céu, pela magnificência da terra de Deus, da qual a mão do homem nos isola. Julien e eu trazíamos trabalho (os livros), mas o que podíamos fazer era apenas fitar sonhadoramente o mundo imenso, as montanhas áridas, a glória do céu claro com nuvens acima de nós, o sol tépido de inverno da beleza subtropical.” O juiz belicoso, o rumor crescente da repercussão internacional, o exacerbamento do regime sob o comando do general Garrastazu Médici, tudo indicava que o processo se arrastaria, prolongando idas e vindas a uma Ouro Preto invernal, apinhada de estudantes. Estudantes que ora aplaudiam a passagem do ônibus com os cativos, ora os contemplavam em silêncio tão profundo que os parecia libertar com os olhos, ali onde a cabeça de Tiradentes, erguida numa gaiola, foi prévia e sombria advertência aos que ousaram desafiar o estado. Aconteceu que a Europa se mobilizou vigorosamente em torno do “Comitê Européen de Défense du Living Theatre”. De lá partiam manifestações exigindo do governo brasileiro a imediata libertação da troupe. A veemência da condenação – sempre enfatizando que “este l’ unedes compagnies théâtrales lês plus célèbres et lês plus importantes du monde” – embaraçava a diplomacia do Brasil em todos os países. Pediam “la libération immédiate de tous lês menbres de la troupe” nomes conhecidos como os de Jean-Paul Sartre, Pierpaolo Pasolini, Alberto Moravia, Jean-Luc Godard, Jean Genet, Michel Foucault, Umberto Eco, Júlio Cortazar, Bernardo Bertolucci e centenas de outros intelectuais de reconhecimento internacional, freneticamente mobilizados. Tornara-se insuportável para o governo brasileiro manter o Living preso, por falta de banho, por serem sujos e mal-cheirosos, quem sabe viciosos e até “subversivos” . Foi no meio da audiência, na tarde azulada e fria de uma Ouro Preto envolvida pelo Festival de Inverno, que o cochicho percorreu o salão do fórum, lotado como sempre. Advogados, meirinhos, acusadores e defensores, todos de cenho franzido se reuniram diante do juiz. Trocaram palavras apressadas, que logo revelaram o acontecido. Acossado e para se ver livre das críticas, o governo militar acabava de assinar o decreto de expulsão do Brasil de todo o grupo. O ambiente de agitação e temor subitamente se desfez. O pano desceu sobre a cena burlesca, de gazetilha. Nem tristeza, nem alegria; nenhuma comemoração. Estupefação talvez. Pelo entardecer, seguimos o ônibus de volta pela última vez, em silêncio. Ao descer no Dops, já de noite, Julien Beck e Judith Malina nos abraçaram, com lágrimas. Ela pouco conseguiu falar. Julien, no dia seguinte, com solenidade que reservou para o que ia dizer, fixou as palavras e as pronunciou duas vezes: - Esta é uma casa de horrores ! - Es-ta é uma ca-sa de hor-ro-res ! – escandiu bem as palavras. Foi seu adeus. No dia posterior, já deslocado para outra cobertura pelo jornal, pois o grupo seria embarcado para o Rio e, de lá, expulso e deportado do Brasil, soube por Itamar de Oliveira que perdi o que talvez tenha sido o momento mais alto da história que juntos vivemos, aos 20 anos de muita esperança neste País do futuro. Julien Beck e Judith haviam sido mantidos no temido prédio do Dops, na avenida Afonso Pena, por todo o tempo. As mulheres foram encaminhadas à penitenciária feminina e os homens dispersos por mais de um xadrez. Na noite em que deveriam partir, reunidos todos num mesmo lugar, eles fizeram um circulo no pátio da prisão. Ao luar, debaixo de respeitosa, muda e reverente assistência dos policiais, que espontaneamente se afastaram, ergueram uma canção. A celebração começou com um murmúrio, que se foi alteando, como um cântico tribal que a noite invadiu e ocupou longamente. Despediam-se da prisão, despediam-se do Brasil. O Brasil que mereceu de Judith Malina a incontida declaração de amor que abre as primeiras linhas destes dolorosos recuerdos. (Anos depois, de volta a M. Claros, em doce auto-desterro na própria terra, soube que Julien Beck morreu. Judith Malina uma vez voltou ao Brasil. Mantém-se ativa nos Estados Unidos, com o mesmo grupo. Ao morrer Sartre por sua vez, jornais e revistas destacaram que foi na prisão do Living Theatre, em 1971, que o filósofo pai do existencialismo mais se ocupou de uma questão ligada ao Brasil) *** (* Paulo Narciso é o repórter que retirou da prisão o Diário de Judith Malina, publicado pelo Estado de Minas. Neste mesmo ano de 1971, a Comissão Julgadora do Prêmio Esso de Jornalismo abriu exceção no regulamento para conferir-lhe "Citação Especial". Deixou o jornal em 1976, depois de receber no ano anterior o Prêmio Esso de Jornalismo, categoria regional. Atualmente, dirige duas emissoras de rádio em Montes Claros e o jornal eletrônico "montesclaros.com"). |
Por Paulo Narciso - 18/8/2008 10:06:05 |
Mestre Hygino: Nunca se conhece bastante a própria cidade. Na tarde deste domingo, o Reinado de Nossa Senhora, o Reinado de São Benedito e o Império do Divino despediam-se da velha cidade, quando – seguindo o cortejo, eu mesmo catopê, de araque - olhei para cima. Vi a placa no segundo andar, que jamais havia visto. E a fotografei. E envio. São recuerdos profundos, que apenas uma procissão de Catopês pode revelar, numa tarde de domingo, de despedidas. Abraços, pn |
Por Paulo Narciso - 18/6/2008 10:25:14 |
Com pesar e sentimento, M. Claros conta os dias em que perderá a presença, apenas física, de uma de suas grandes benfeitoras nos últimos 29 anos. Depois deste tempo, de exercício diário da Caridade, palavra que melhor e encantadoramente define o Amor, deixa-nos a irmã Irene, nome brasileiro de extraordinária alma belga, que se ausentou do seu país na mocidade para dedicar-se integralmente à Santa Casa de M. Claros. Assim como Irmã Malvina (que até hoje não recebeu do poder público o reconhecimento solene de todos nós), assim como Irmã Chantal, outra santa que a Bélgica nos enviou, Irmã Irene parte para o merecido reencontro da família e da Pátria, e para merecido descanso. Deixa-nos fisicamente, pois ficará na eterna lembrança, assim como eternamente nos levará, e nos terá, por laços que nenhuma força é capaz de romper. A viagem de volta está marcada para o dia 27. Na Bélgica, já encontrará Irmã Chantal, muitas vezes santa nossa, e poderá visitar no colégio-mãe de Beerlar a lápide que cobre as relíquias de Irmã Malvina, sucessora de Irmã Beata, herdeira moral de Irmã Canuta e de tantas outras belgas que cruzaram o oceano para se doarem ao Brasil, deixando aqui a mocidade e os mais belos exemplos, coisa hoje vasqueira. Um detalhe talvez seja possível mencionar agora, neste abraço que não será o final: quando, na sua exultante mocidade, Irmã Irene escolheu vir para o exercício da Caridade no Brasil, a freira - assim como outras religiosas de diversos outros países - encontrou dificuldades para obter a permissão de entrada no Brasil. O regime autoritário vigente, nos seus dias mais tempestuosos, temia que com elas viessem lições de uma alta dignidade que costuma incomodar e fazer tremer os poderosos, todos os poderosos do momento, de ontem e de hoje. Não foram poucas as expedições de humanismo despachadas para remover o veto, não pessoal, à entrada das religiosas. A Irmã afinal veio e escreveu entre nós uma silenciosa e belíssima Página de Amor. Imorredoura - como se dizia. E que, como todo exercício do Amor, pede modéstia, silêncio, humildade, abnegação - palavras em desuso. É assim que agora parte, sem nada esperar, sem coisa alguma pretender, sem o mais mínimo requesto de sinais de reconhecimento. Renúncia tão própria da vida humana dos santos, e dos que lhes seguem os caminhos de luz, como os casos aqui lembrados. Montes Claros, ainda que tarde, uma dia compreenderá o que significou na sua vida, o que significa, a Missão que no princípio do século passado, nas pegadas do Padre Francisco Morreau, veio dar nas terras do Norte de Minas. A cidade belga de Beerlar é, por todos os títulos, a irmã mais irmã de M. Claros. E muita dificilmente poderemos pagar em qualquer tempo as contas deste tesouro que a mais alta Caridade nos enviou. |
Por Paulo Narciso - 9/6/2008 15:45:56 |
No dia 1º de dezembro de 1968, Juscelino escreveu: “Aos caros amigos, Arinha e Pedro, o meu abraço”. E assinou – Juscelino Kubitscheck de Oliveira. Eram dias tumultuosos da vida política do Brasil. Exatos doze dias depois, em 13 de dezembro de 1968, atônito, o Brasil veria desabar o Ato Institucional nº. 5, o tristemente famoso AI-5, que aprofundou a níveis inéditos o jugo ditatorial do estado sobre a nação, e que vigoraria por cerca de 20 anos. Foi uma rude pancada de primitivismo político, muito mais ampla e de repercussões mais duras do que o próprio 31 de março de 1964. Mas, esta é outra história, da qual o Brasil ouve e ouvirá falar por centenários. Nesta mensagem, que desejo curta, procuro apenas fixar o dia em que Arinha e Pedro Veloso – dois dos mais altos personagens da história de M. Claros – receberam na Fazenda das Quebradas – que escrevo em letras maiúsculas – receberam o presidente da República mais popular do Brasil, já proscrito e perseguido. Era sempre assim. As visitas mais altas, mais ilustres, sempre recolheram da Fazenda das Quebradas a expressão da cordialidade e do apreço de M. Claros. Era a sua sala de visita, a tradução mor de nossa lhaneza. O abraço de JK lá está na parede, emoldurado por um vidro, que o preserva. Abaixo, a sua foto. Esta Fazenda das Quebradas é o dodói de M. Claros, e pertence à sua história. Pesquisem os livros e verão. A casa grande foi erguida há quase 150 anos, do outro lado da serraria que dá nome a civilização que surgiu do lado de cá do sopé dos montes claros. (E de onde, lamentavelmente, nos dias de carnamontes é possível ouvir o barulho que não deixa a cidade dormir por duas noites, som desrespeitoso que vaza a muralha de pedra e incomoda também do outro lado, território de passarinhos). Pois bem. Esta casa que também recebeu JK, horas antes de desabar o AI-5 e sua corte arbitrária, esta casa que era o caminho da roça de Darcy Ribeiro nas suas vindas e nas cheganças de todos os altos nomes que nos honraram, esta casa está prostrada, golpeada, humilhada, desfalecida. De sopetão, urdido na burocracia fria e insensível dos gabinetes, um decreto definiu que o patrimônio das gentes de M. Claros, a partir daquela data, deveria transformar-se em patrimônio do estado mineiro, distante, como sede de um Parque Florestal – chamado, creio, de Lapa Grande. Ignoraram a história. Ignoraram o passado (que não passou). Ignoraram os que lá moram, tendo por símbolo Dona Arinha Veloso, esposa de Pedro Veloso, irmã de Lucy, já falecidos. Ignoraram tudo. De uma só pancada, como um AI-5 de brutalidade municipal, o poder golpeou uma lenda, uma divisa. Se o Parque realmente se tornasse realidade, honrando e premiando o trabalho de quem escreveu aquela história, recompensando a casa por trabalho centenário de preservação e de amor, não haveria de que lamentar. Não estaríamos a prantear. Estaríamos aqui de pé, para aplaudir. Mas, o que se viu, foi bem diferente. O decreto para a desapropriação humilhante tornou toda a área inerte, hibernando-a na ociosidade e na mandrice, que fazem o casarão histórico ruir sobre si, escombro de uma legenda. De desgosto, dona Arinha nunca mais abriu as janelas do vetusto casarão. Coisa impensável - depois de quase um século, em silêncio ela deixou o local. Com disposição de não voltar, para não aprofundar a dor já muito cava. Mora agora fisicamente na cidade. E apenas em pensamento cruza a montanha e visita o campo de muitas vidas, cercado de lendas e de histórias. Seus netos não foram, até agora, por justo valor, indenizados pela propriedade que agoniza, silenciando ecos laboriosos que transpunham as penhas e traziam notícias venturosas para o lado de cá desta civilização que se construiu pelo trabalho e pela honradez. O processo de desapropriação – injusto, desgastante, arrasta-se também para os demais proprietários, vizinhos. Do outro lado da nossa municipal cordilheira agoniza parte da história de M. Claros. De maneira perversa, arrogante, injusta. Em nome da natureza não contemplada, vimos, golpeou-se a história. Mais grave: em nome dela, mutilam-se pessoas que de todos só merecem aplausos. Não será sobre injustiças que se construirá, para agora e para adiante, no futuro, um parque de onde as gerações que a esta sucederem recolherão belas histórias. Não se faz o futuro desta forma, esmagando o passado de muitas lutas. Não, não podemos concordar. (Nas fotos, JK e sua assinatura na parede nua; os escombros do casarão e o casal benemérito de Montes Claros, Arinha e Pedro Veloso, nos melhores dias das Quebradas) |
Por Paulo Narciso - 6/1/2008 22:31:57 |
Na internet, ao acaso, desembarco no texto que vai abaixo. Não há assinatura. Tento a certeza de saber quem é o autor, assim no escuro. Conheço duas pessoas inexcedíveis na admiração pública por Monzeca -, Hermegildo Chaves em Montes Claros, sua amada terra. (Ele se apresentava, à Eça de Queirós: "sou um pobre homem das barrancas do rio Verde...)" Como o autor abre citando Rubem Braga, o cronista capixaba está fora; não pode ser ele, talvez enciumado com o elogio ao Mestre que primeiro é o seu mestre. O texto então só pode ser de Mauro Santayana, amigo e colega dos tempos do Estado de Minas, jornal de Monzeca. Para a esmagadora maioria da população de M. Claros, Monzeca é, talvez ainda, a esquecida doce viela de duzentos metros, se tanto, que separa a igreja da Matriz da rua Gonçalves Figueira, antiga rua do Ocidente, perto da outrora Escola Normal, depois Fafil. Doce lembrança, compatível com sua modéstia, e simplicidade.. Para este Mauro Santayana - pois desconfio que o texto é seu, só pode ser - Monzeca é "O Grande Mestre".Pequenino, porém. O discípulo, no caso, sabei todos, é o autor dos mais belos escritos que a imprensa do Brasil publica nos últimos 40 anos. Entre eles, também o discurso em que Tancredo Neves, de quem foi redator, repete que "Liberdade é o outro nome de Minas". Sobre Monzeca, que por acaso veio nesta noite, por Mauro Santayana: "O grande mestre Se Rubem Braga ainda estivesse vivo, concordaria com o meu juízo, porque ambos fomos seus alunos, com mais de duas décadas de intervalo. Era baixo e magro, usava discreto bigode, bem aparado. Quando o conheci, o cabelo era ainda negro, com destacadas manchas grisalhas. Amava a noite, mas não bebia, a não ser café, sempre acompanhado de bolinho de feijão, esse acarajé mineiro sem recheio. Gostava de jogar cartas, perdia com regularidade e parcimônia. Chamava-se Hermenegildo Chaves e detestava o apelido de Monzeca, que lhe haviam dado. Era, naquele tempo, o melhor redator de Minas e um dos melhores do Brasil. Como era comum nas antigas redações, havia sido tipógrafo; aprendera a escrever com o tato, conhecia o peso dos fonemas. Isso explicava a magreza de seu texto, que dispensava o supérfluo, economizava advérbios e adjetivos, só admitidos quando convocados pela clareza. Era emotivo, o que o fazia inexcedível nos necrológios. Quando os políticos importantes se aproximavam do fim, Monzeca iniciava as notas sobre o futuro morto. Ia costurando o texto como se bordasse a mortalha, e retocava, dia-a-dia, os adornos, com os recursos da memória. Escrevia só a lápis, em aparas de papel de jornal, com a letra fina, bem desenhada, a pontuação esmerada, os parágrafos definidos. Como emotivo, mudava muitas vezes de opinião, e explicava que todos nós erramos e podemos, eventualmente, fazer juízo equivocado sobre os outros. Só recorria às idéias para explicar os homens. Quando se agravou a crise de agosto de 1954, Monzeca revelou seu lado conservador, quase reacionário, reclamando, com elegância que faltava a Lacerda, a limpeza do Palácio do Catete. Estava de acordo com seu passado, quando, em 1930, se somara, em Minas, à Concentração Conservadora, contra a Aliança Liberal, e fora amigo íntimo de Mello Viana. Mas, com o suicídio de Vargas, mudou de posição, e definiu a situação como tragédia shakespeariana. Não se curvou aos ídolos da época que se mantinham contra Vargas, depois da morte do presidente. Quando Alceu Amoroso Lima publicou, no Diário de Noticias, seu famoso rodapé com o título de Sangue e Lama, Hermenegildo Chaves foi cáustico, terminando por dedicar ao pensador brasileiro o juízo de Jean Cocteau sobre François Mauriac: nele tanto mais se afirmava o católico quanto dele se distanciava o cristão. Os jornalistas são seres efêmeros, sobretudo quando sua carreira se passa, toda ela, na província. Mesmo em Belo Horizonte, os jovens jornalistas não sabem mais quem foi Monzeca, senhor de texto impecável e de inexcedível modéstia. Sou grato ao destino por ter com ele convivido. Se não pude, como pôde Rubem Braga ter sido bom aluno, pelo menos aprendi com ele o exercício da dúvida." |
Por Paulo Narciso - 23/12/2007 17:18:53 |
Está na praça um autêntico presente de Natal. De surpresa, o Grupo de Seresta “Lola Chaves” (nome que homenageia a filha de João Chaves) lançou o CD “Céu de Montes Claros”. Gravado aqui mesmo, é uma coleção eclética de músicas que foram apanhadas no fundo do baú da memória desta nossa civilização. Emociona no CD a preciosidade das melodias buscadas numa Montes Claros lírica, pequenina, toscamente bela, bela e crente, de joelhos nos ofícios religiosos de outros dias, de outros tempos. São, entre outras, músicas de coroação, que jamais devem ser esquecidas, e há pelo menos uma grata revelação: a belíssima voz de Lígia de Figueiredo Chaves e Oliveira, ninguém menos que Tia Lígia, irmã de Lola, também filha de João Chaves. Além de encantar com uma voz absolutamente diferenciada de todas as demais, rara no timbre e pungente na interpretação, Ligia Chaves vem com composição própria, letra e música, em homenagem a Nossa Senhora de Guadalupe, um hino para cortar a respiração e fazer bonito em qualquer parte, ainda mais que criado e cantado pela filha do Grande Bardo, nascido em Montes Claros e consagrado pelo Brasil. Há músicas quase inéditas de João Chaves e seus irmãos Hermegildo (Monzeca) e Joaquina Chaves. Estão lá as célebres “Vimos em Nome do Dia, da Noite, dos Passarinhos”, “Maio Veio” e “Adeus Maio”, todas da família Chaves, criação de interpretação, que toda criança de ou em M. Claros - de antes, de agora, de depois e de sempre, terá de saber na ponta da língua. Avançam na seleção o “Vinde Cristãos” na voz também rara de Olga Santos, e músicas das pastorinhas e outras de Natal. É um concerto belíssimo, artesanal que seja, que situa a Montes Claros genuína num dos momentos em que delibera ressurgir para acordar a cidade que vige em seu lugar. Panis Angelicus encerra como 17ª música, introduzindo esta seleção entre as relíquias que M. Claros guarda de sua mais autêntica cultura. “Nunca mudassem nunca estes caminhos” – repete a música de coroação de Monzeca. Nunca mudassem nunca estes caminhos – repetimos todos, neste Natal. É admirável ver que a Montes Claros profunda sempre é capaz de varar a espessa camada que cobre os seus dias de agora para vir dizer que a tudo suporta e resiste com imaculada e doce poesia. É o recado silencioso de que sobreviveu, e de que sobreviverá a todo transe. |
Por Paulo Narciso - 7/12/2007 23:12:46 |
A música mais que centenária de M. Claros levantou uma emocionada Curitiba, ainda há pouco, na apresentação de Natal no “Castelo Encantado”. É a cantata de fim de ano no edifício tricentenário do extinto Banco Bamerindus, espetáculo que todos os anos faz suspirar o Brasil. Centenas de crianças, entre elas órfãos absolutos, outras órfãos de pais vivos, entoaram músicas de Natal, por janelas que se abrem na venerável mansão dos sonhos. No meio, inesperadamente, eis que surgiu, em ritmo natalino, o “Deus Te Salve Casa Santa”, a música que os catopês se ajoelham para cantar, de cabeça baixa, já há quase duzentos anos, na humílima igrejinha do Rosário. O público devolveu com palmas, demoradas. Já havia aplaudido com igual fervor o Noite Feliz, Carinhoso de Pixinguinha, Panis Angelicus e, entre outras mais, a marcha Estão Voltando as Flores. (Também adaptada para o carnaval, a música de Paulinho Soledade irrompeu pelas janelas iluminadas do Palácio da Avenida, a construção mais cultuada da capital paranaense. Por décadas, transferiu-se de boca a boca a lenda de que o autor, doente de tuberculose e já desenganado, no estertor dos últimos dias, recebeu uma dose de penicilina, potente remédio que acabava de ser descoberto. Melhorou milagrosamente, fez a música – “Vê, estão passando as nuvens – Vê, estão voltando as flores – Vê, há esperança ainda” –, com letra que explicaria sua súbita melhora, para morrer em seguida. Na verdade, a romântica história não passaria de estória, bem adaptada para a emoção da letra e da melodia, pois que o autor Paulinho viveu até depois dos 80 anos e morreu de exaustão natural da vida, no Rio de Janeiro. Foi um romântico piloto brasileiro, pioneiro da aviação, que migrou para os Estados Unidos e voou pela Força Aérea de lá. Já depois dos 50 anos, retornou ao Brasil para compor novas músicas. Entre elas, se não me engano, o “Pequenino Grão de Areia”, que “era um eterno sonhador”). Para nós, desta musical M. Claros, fica o engasgo de ouvir bem longe o “Cálix Bento” pela boca das crianças cantoras que todos os anos suspendem a respiração do Brasil, pelo Natal. O arrebatado gesto de fé, recolhido na tradição dos catopês de M. Claros, provavelmente será mostrado pelas redes de TV. O certo é que nesta noite a esperança cantou pela boca das crianças de Curitiba, em apresentação inesquecível, quando também os fogos de artifício iluminaram a mais civilizada das capitais do Brasil, bela, moderna, mas sabiamente de hábitos encantadoramente provincianos, certamente mais desenvolvida do que acometida de certo duvidoso progresso que golpeia a vida, antes de conservá-la e protege-la (como a ainda recente mutilação da avenida coronel Prates). M. Claros, lá estava. Por sua música, que sempre foi, e vai, na frente, abrindo os caminhos. (Lembrai-vos do "caminheiro, não há caminho, o caminho é caminhar”.) Memorável noite de gala em plena Boca Maldita, celebrizada por Dalton Trevisan, o eterno "vampiro de Curitiba" |
Por Paulo Narciso - 8/11/2007 12:56:45 |
A história da imprensa mineira como toda história contemporânea é construída de milhares de fotos célebres, cada qual insubstituível no que atesta. Há uma foto de 1944, esta aí de cima em branco e preto, que fixou no tempo a presença em Belo Horizonte do escritor Mário de Andrade, pai do modernismo. A visita, já foi dito aqui, resultou no não menos célebre poema “A Visita”, de Carlos Drummond de Andrade. Ao redor de Mário, de sua “Paulicéia Desvairada”, posaram alguns dos melhores nomes daquela geração brilhante. Da esquerda para a direita, o cinegrafista Alcyr Costa, o crítico literário Roberto Frank, o jornalista Oswaldo Alves Antunes (de Brasília de Minas, a antiga Contendas), o psicanalista Hélio Pellegrino, o poeta Alphonsus de Guimarães Filho (naturalmente filho do maior poeta simbolista do Brasil), o escritor e acadêmico Otto Lara Resende, Alexandre Drummond e o jornalista José Mendonça; sentados, o memorialista Edgar da Matta Machado (um dos maiores nomes do humanismo mineiro), Oscar Mendes Guimarães, o escritor João Etienne Filho (do romance “Encontro Marcado”) e Milton Amado, autor da melhor tradução que se conhece em língua pátria do não menos célebre Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes. Pois bem. Dois dos ícones dessa geração incomum da imprensa mineira reencontraram-se ontem em Montes Claros. Oswaldo Antunes, que lançou no Automóvel Clube o livro “A Tempo”, recebeu a visita do seu colega de redação do antigo “O Diário” (também chamado de Diário Católico), José Mendonça. Lépido, feliz, memória privilegiada, alerta como nunca, Mendonça é obrigatória referência do jornalismo nacional, onde atuou em todas as áreas, desde a fundação da mais antiga escola de jornalismo de Minas até a direção das mais importantes sucursais dos grande jornais nacionais em BH. Com brilho e espantosa memória, Mendonça ainda ontem ensinou a montesclarenses da gema minúcias de fatos acontecidos em Montes Claros. Foi também colega do cirurgião e artista plástico Konstantin Cristoff nos “preparatórios” em BH, e ontem estiverem, sem saber, reunidos no mesmo teto, sem que um desconfiasse da presença do outro. Não se encontram há mais de 60 anos, desde a mocidade, e por pouco não se abraçaram. Konstantin, ignorando a presença do amigo, saiu pouco antes. Hoje, provavelmente se abraçarão. Oswaldo Antunes revelou que aquele colega, depois amigo e compadre Mendonça – tão saudável e rijo como o escritor que lançou o livro – foi quem revisou seu primeiro trabalho em jornal. (Não precisa traduzir que o mestre festejado de uma geração de jornalistas, emocionado, apresentava por sua vez o próprio mestre, de nenhuma forma menos conservado do que ele, do alto dos 83 anos). O lançamento do livro “A Tempo” reacordou por instantes a M. Claros profunda, submergida na atual, inchada e ferida, como a recordar-lhe que pode sim voltar, e voltar-se sobre si, com cuidado e delicadeza, como alguém que revisita, mediante senha, sagrado lugar de luzes. José Mendonça surpreendeu-se ao ser informado de que dali, daquele local onde centenas de pessoas colhiam o autógrafo do autor da noite, partiram os tiros inaugurais da Revolução de 30, que levou Getúlio Vargas ao poder. O historiador Hélio Silva não vacila em registrar que a Revolução de Outubro de 1930 teve o seu primeiro tiro em M. Claros, disparado exatamente do casarão de João Alves, demolido para nascer o Automóvel Clube. O episódio, sangrento, passou à historia do Brasil como o “ 6 de Fevereiro”, assim como o 11 de Setembro de 2001 em escala mundial. Estas e outras histórias ontem passearam pelo Automóvel Clube no lançamento de “A Tempo”, livro para cuja passagem já se abrem alas. E reverências. |
Por Paulo Narciso - 6/11/2007 19:03:55 |
Montes Claros tem um encontro com a sua história amanhã, quarta-feira, dia 7 de novembro, às 20 horas, no Automóvel Clube. O jornalista Oswaldo Antunes autografará o livro de memórias "A Tempo". Ao lado de Waldyr Senna Batista, dr. Oswaldo - como o chamamos com carinho - é o decano e pai da moderna imprensa de M. Claros. Entre outras revelações agora definitivamente lançadas à consulta permanente da história, está o relato de como encontrou, morto, minutos depois, o ex-prefeito Toninho Rebello, o maior prefeito de todos os tempos de M. Claros. Eis o relato daquele 10 de novembro de 1992: “Dos amigos, o primeiro a chegar à casa naquele dia foi o Diretor de O Jornal de Montes Claros, que viu Toninho como que dormindo, semblante sereno, a cabeça apoiada no colo da filha Cristina, ela acariciando-o e chorando, as lágrimas a caírem sobre seu ventre expandido onde pulsava uma vida nova. Era vida menina, prestes a sair da Plenitude para o mundo, enquanto o avô se acabava no mundo fortuito e na Plenitude imergia. A cena revela mais esperança e futuridade do que tristeza e passamento. O homem público, pai, avô, amigo não se fora completamente: a vida e seu brilho pareciam ter ficado onde estava o corpo quieto, e, como lá fora a radiação da branca e diurna lua cheia, acariciavam a família despercebidamente, consolavam amigos, vigiavam a cidade amada. Seus cuidados pareciam flutuar no vento, como a resposta melódica na canção dos Beatles, farfalhando os galhos floridos da acácia amarela que fora plantada pelo morto”. A cena que Dr. Oswaldo fixa, do momento em que Toninho transpõe em mais de um sentido os limites desta vida, a suavidade do quadro, sua altivez humílima que arrasta e comove, provocam-me a necessidade de também mencionar o que talvez tenha sido a ultima conversa de Toninho fora do ambiente familiar no princípio da tarde em que, sem aviso, partiu. Por volta do meio-dia daqueles 10 de novembro, finalizado o expediente da manhã na Rádio Montes Claros 98 FM, vi-me paralisado diante do telefone. Um impulso, incomum, mandou-me que ligasse. Para quem ? – perguntei-me, incomodado pela necessidade rara. Empunhei o telefone como que cumprindo uma ordem e liguei para.... Toninho, o que não era habitual. (Jamais lhe incomodei nos tempos repetidos em que foi prefeito e eu jovem repórter, e publicamente confesso que sempre acerquei-me mais do cidadão Toninho, fora e longe do poder, embora minha admiração pelo prefeito só faça crescer. Quando passou a ser alvo de perseguições as mais abjetas, que lhe pretendiam alcançar também a família, a ele me juntei instantaneamente, com que imantado ao que lhe poderia acontecer, e deste tempo também guardo recordações do seu exemplo, e sempre o mais alto). Toninho estava ótimo naquele começo de tarde. Havia acabado de chegar do Parque de Exposições, e pelo telefone novamente o revi, manso, prudente, modesto, limpo no corpo e na alma, como sempre metido em camisa alva e bem passada por sobre a calça, como se ao alcance da mão existisse permanentemente um estoque de camisas, limpas como ele, sóbrias como sempre foi. Na conversa, de vinte minutos, mencionamos aspectos da vida da cidade, lançamos um olhar sobre o cotidiano e nos despedimos com afeto, nos prometendo novas conversas mais amiúdes. Desci para o almoço com minha mãe, quando o telefone imediatamente tocou ao chegar. Era o prefeito Mário Ribeiro. Ele avisou que ia me dar uma notícia dura, e recomendou que me assentasse. “Toninho Rebello acaba de morrer”. Contraditei imediatamente, com veemência,dizendo que havia falado com ele quinze minutos antes, que era impossível, que era engano, que não podia ser - relutei o mais que pude. Mário Ribeiro não deixou dúvidas, categórico, mas não convincente. Larguei do telefone, tomei o carro, corri para a casa de Toninho. Ao entrar na reservada rua que desemboca na sua casa, onde menino estudei com o seu filho Jacinto nas amoreiras que lá existiam, derramadas sobre o muro, ao entrar na rua o movimento na porta da casa fez-me convencer daquilo que não fora capaz o telefonema de Mário Ribeiro. Estava mesmo morto, e apenas fisicamente, o maior prefeito da história de M. Claros, paradigma do homem público que imaginei e conheci na vida, em profundo desacordo com o que viria depois e prossegue até hoje. No rastro da emoção que o depoimento de Oswaldo Antunes desperta, contemplo seguidamente a cena de Toninho morto no colo da filha, que silenciosamente chora. Morto, parece ainda maior do que vivo, repete a lição do professor Pedro Sant’ana, também saudade nossa. Eternas lembranças, às quais, é preciso recorrer, e meditar. |
Por Paulo Narciso - 2/11/2007 19:40:45 |
Agora que José Aparecido de Oliveira é morto, e a saudade cicia, é bom saber um pouco mais sobre ele, Aparecido. Aqui vai um depoimento do maior analista político da história recente do Brasil, Carlos Castelo Branco, o Castelinho, sobre este intrigante personagem que nos deixou há apenas duas semanas. O trecho abaixo é extraído da entrevista que Castelinho deu a Adriana Zarvos, não muito distante de sua morte. Os dois - Castelinho e Zé -tornaram-se amigos; um, o maior cronista político do Brasil; o outro, descrito pelo primeiro como o mais brilhante articulador político de sua geração. Brilhantes, os dois, como craques de uma mesma e genial seleção: “Como começou sua amizade com o José Aparecido? O Zé chegou no Rio em 1958 ou 59. Magalhães Pinto era Deputado, e ele era secretário político do Magalhães. Na época ele estava trabalhando Magalhães para presidente da UDN nacional e, evidentemente, Governador de Minas. Quando o Zé chegou ao Rio, começou a fazer uma grande movimentação política, para aproximar os jornalistas do Magalhães Pinto. O Magalhães era Deputado há 15 anos, mas não tinha importância, só tinha como banqueiro. Quem deu importância ao Magalhães foi o Zé Aparecido, abrindo os canais com os jornais. Antigamente procurava-se o Magalhães pra se pedir dinheiro emprestado, só depois para pedir notícias. Eu conheci o Magalhães indo ao banco fazer um papagaio [empréstimo] lá. Mas vocês eram pessoas completamente diferentes, não? O Zé Aparecido era um homem muito competente politicamente, muito habilidoso, e o Magalhães era um homem também sagaz e inteligente, mas não tinha traquejo. Aí o Zé pegou o Magalhães e deu um impulso a ele. Então, fiquei conhecendo o Zé Aparecido, sendo seduzido e muito envolvido por ele. Eu já estava por volta dos 40 anos, e estava sem fé na imprensa e sem projeto de vida. Bom, voltando ao José Aparecido... Quando o Jânio Quadros foi eleito, o José Aparecido foi para a festa de posse, como convidado, e entrou na fila de cumprimentos ao Jânio. Quando o Jânio viu o Zé, perguntou: "O que você faz aí?" "Vim cumprimentá-lo." "Não, senhor, seu lugar é aqui do meu lado, como meu secretário particular". Depois ele disse: "Amanhã às sete horas no Palácio". No dia seguinte, o Zé disse a ele que, para ficar, precisaria ao menos um Secretário de Imprensa. Eu não estava interessado em ser, não queria. Estava aqui para fazer a cobertura da posse do Jânio para O Cruzeiro. Mas o Zé Aparecido estava obstinado, o Jânio me chamou no Palácio e me convidou. Eu disse: "Olha, Presidente, eu não tenho nenhuma razão para vir trabalhar com o senhor, não sou político, estou com minha vida organizada no Rio, sou jornalista, trabalho no O Cruzeiro e no Diário Carioca, minha mulher é juíza lá no Rio, não tenho nem como vir pra cá". Enquanto eu estava falando, ele tinha pedido uma ligação interurbana para o Rio, aí foi atender o telefone, era Leão Godim, Diretor do O Cruzeiro. "Leão, eu quero que você me empreste o Castello por seis meses, são só seis meses" Aí eu estava perdido, né? Ele disse: "O assunto está resolvido". Eu saí dali e fui conversar com o Quintanilha. "Fui compelido pela minha empresa a vir trabalhar aqui, emprestado, somente por seis meses. Mas não chego aqui às seis e meia da manhã, não há hipótese, não acordo antes das nove em lugar nenhum, não chamo ninguém de senhor nem de Vossa Excelência e não peço a ninguém licença pra fumar". Ele respondeu: "Ô Castello isso é pros outros, não é pra nós não". Fui desarmado! Comecei a trabalhar. Ia ao Rio nos fins de semana, e segunda-feira de manhã estava de volta.” |
Por Paulo Narciso - 20/8/2007 17:26:02 |
Lembranças dos Catopês de 2007. O começo é pela música de dona Dulce Sarmento. Os Ipês Amarelos avisam que os Catopés vão chegar. E roxos ficam já de saudades do Catopê. Lembro-me que mestre Expedito, do único terno de São Benedito, o mais humilde, por isto mesmo o primeiro entre todos, desfaleceu duas vezes. Uma dentro da igrejinha do Rosário; a outra, a caminho dela. Mestre Joaquim Poló, da Caboclada, o socorreu com o Buscopan que trazia para aliviar a dor do mal, tenaz, que o persegue, e do qual será operado em breves dias (se receber a devida e merecida assistência). Metade dos Caboclinhos ou é de filhos, ou é de netos, ou de parentes de Joaquim Poló, inclusive o menino que é a "Cacicona", extraordinariamente simpático. Poló, mestre também de Pastorinhas e das Folias, no Natal. É preciso segurá-lo com força, todos. Se partir, Montes Claros ficará dolorosamente mais pobre. (Ainda assim, dá o Buscopan da sua dor para o Catopê desfalecido pela dor menor). Lembro-me da última apresentação, sábado, dos Marujos, agora chefiados pelo patrão Tim, substituto do pai Nenzinho. Já entraram na igreja chorando. Lágrimas só, sem rumor de escândalo. Quem chorou mais foi o filho de Tim, menino de oito ou nove anos, que no futuro substituirá o pai, que substituiu o avô, que substituiu o bisavô... sempre assim, há quase duzentos anos. Na roupa do menino, estampados, a foto e um nome – VOVÔ! Lembro-me que perdi a imperdível cena dos Marujos cantando no cemitério, ao sol do meio-dia. Na sepultura do mestre, que partiu há pouco. Lembro-me de que, pelos caminhos, havia pessoas chorando; copiosamente, vendo passar um filme. Lembro-me da mãe e do filho da mãe. Eram três. O pai – de Conceição do Serro, hoje Conceição do Mato Dentro, terra de Zé aparecido – conheceu a mãe na Bahia e, já os três, vieram morar em Montes Claros. Na identidade, consta que ele, o filho, tem 54 anos, meu colega. Na vida real, mente de apenas quatro. A mãe o governa, plena. Vivem apenas os dois. Sair uma vez por ano com os Catopês é o sumo glorioso de suas vidas. A mãe diz – levanta, e ele levanta; a mãe diz ajoelha – ele ajoelha. A mãe está suficientemente velha e o veterano Catopê, noutro mundo vivendo, sequer cogita do que será dele o dia em que não puder dela ouvir as ordens, de rara doçura e absurda cumplicidade. Moram no Renascença. Comove a história dos três, hoje dois, e o único destino de Ser Catopê. Eternamente Catopê. Lembro-me que o pombo Roy anunciou, urbi et orbi, que beberia no sábado pelo amigo que sem aviso partiu. Bebeu. Bebi com ele Lembro-me, e como me lembrarei, de que os marujos estreitaram o Catopê que a vaca fez despencar do viaduto. Cantaram, cantaram, cantaram -, e todos os outros os seguiram. Uns limpando as lágrimas dos outros. Em silêncio de reclamação nenhuma. O catopê "Senhor" – paralisado nas mãos e nas pernas – sacudindo os braços para acompanhar a música. Lembro-me que a praça Dr. João Alves, a do tiroteio de dona Tiburtina, página da história do Brasil, manchete de O Globo, do Rio, por 30 dias corridos, a praça estava repleta, apinhada, na manhã de quinta, sexta e sábado. Todos falando com os catopês. Tirando fotos lá deles, abraçando, rindo, infinita admiração e camaradagem. Montes Claros profunda, acordada. Reacordada. Lembro-me dos Catopês a caminho, acendendo fogo com velhos papéis da estrada, para afinar o som. No caso, o som do despojado tambor, que chamam de tamborim, de caixa, de instrumento. Diminuto no tamanho, infinito para abrir a caixa de lembranças. Lembro-me que, este ano, ninguém superou a caboclada em beleza, no trinado também. Querem matar Joaquim Pólo, de saudade quem sabe. Cantaram uma música em que falam de um pica-pau, bateram as mãos assim, olharam com a ponta dos olhos, riram da mamãe-vovó bonita, de olhos verdes como os de Manoel Quatrocentos, professora de contar história para os meninos, nascida na Lontra. Ficaram de cantar a Trança do Cipó e, se cantaram, lá eu não estava. Ouvi, assim mesmo. Lembro-me, sem compreender, que todos partem quando os Catopês, Marujos e Caboclinhos entram no ritual próprio deles. Se soubessem, não partiriam. Os tambores estrondam, e ainda assim soluçam, quando o mestre João Faria e seu irmão Tonão, no meio do cerimonial, ordenam que se ajoelhem todos. De cabeça baixa, as penas de pavão fazendo 90 graus com o chão, eles repetem, de joelhos: “Deus te Salve Casa Santa, onde Deus fez a Morada, onde mora o Cálice Bento e a Hóstia Consagrada”. É difícil agüentar. Um filme surge na cabeça de todos, particular. Momento solene. O mais alto. (Muito poucos sabem o que significa. Quando quiseram enfim conhecer a alma infinita da festa, aguardem este momento. É raro, contundente. Para os iniciados, apenas). Lembro-me do Catopezinho, de chupeta. Lembro-me da Carmelita Descalça, de grande rigor na roupa, nela rebuçada severamente, por completo, acompanhando os Catopês, fugindo das fotos. De si, expunha apenas os olhos, mas os olhos revelavam o puro encanto de quem escapou da clausura e das laudes apenas para ver os Catopês. Não me atrevi, nada perguntei. Seus olhos falavam, tanto quanto a vontade de nada falar. Que venha, todos os anos. Esperaremos. Lembro-me de Rubinho, cansado das meias-luas, doido para asilar-se no primeiro boteco. E de Ucho, explodindo de alegria e de calor, no frio, ensinando ao filho aquilo que os Catopês autênticos ensinam aos seus, mas que também podemos aprender. Todos podem. Lembro-me do carroceiro Tonão. Aquele que, todo dia, com o suor da jornada, compra comida para a família e milho para o burro. Quando o ganhame escasseia, compra apenas o milho para o burro, de quem depende o sustento de todos. E todos compreendem porque o burro come, e eles não. Lembro-me de Zanza, mestre geral, operado há oito dias. Pôs mola no coração e foi chefiar sua festa. Lembro-me de Zezé Colares chegando à igrejinha, ela que levou a toada dos Catopés ao mundo inteiro, mundo que de pé bateu palmas para os Catopês. De tudo me lembro. Eu me lembrarei de tudo, eternamente, pois M. Claros volta no escasso espaço de quatro dias quando retornam os Catopês. Ouça-os, cantar ao coração. (O estoque é suficiente para esperar a próxima florada, o rebroto dos Catopês. Entre o Ipê Amarelo e o Ipê Roxo. O que chama, e o que deles se despede. Amém.) *** Nas fotos, mestre Joaquim Poló - mesmo enfermo - ensina a caboclada a empunhar a Bandeira. |
Por Paulo Narciso - 16/8/2007 17:36:00 |
O mastro de ontem à noite, de Nossa Senhora do Rosário, e o desfile, na manhã de hoje, do Reinado, confirmaram que as Festas de Agosto de Montes Claros, realizadas comprovadamente desde 1846, apresentam este ano um viço jamais visto, um degrau acima. Todavia, muito provavelmente ficou para a parte menos visível da festa, ou menos acompanhada, o lance de maior emoção. Quem viu o desfile chegar à praça Dr. Carlos, por volta das 11h de hoje, talvez não tenha percebido um homem de cabelos brancos encaracolados, com cerca de 60 anos, avançar determinado e arrebatar a bandeira dos caboclinhos, que este ano, mais do que em qualquer outro, apresentam-se de maneira esmerada. O Homem chama-se Joaquim Poló, é pedreiro de profissão. Há cerca de 40 dias, um rude diagnóstico médico apontou-lhe severa doença, para a qual será operado nos próximos dias. A notícia, somada è enfermidade progressiva, tomou-lhe de imediato 12 quilos do corpo já franzino e longamente esgotado no trabalho. Ele temeu pelo grupo de caboclinhos, sob seu comando há anos, o único da cidade, e peregrinou por médicos e hospitais, mas refez-se há três dias para não deixar de comparecer à festa chefiando os caboclinhos, meninos e meninas, e suas vozes de anjo. Ontem à noite, sob a ação de remédios para a dor, ele acompanhou o mastro de Nossa Senhora, da sede dos Catopês, nos Morrinhos, até a igreja do Rosário. Sem abater-se e sem se cansar. Infatigável, corrigindo, ensinando, o violino puxado ao peito analfabeto. Magro no corpo, ignorou a enfermidade e cumpriu a programação. Hoje cedo, amanheceu ligeiro e renovado para o compromisso seguinte. Deixou a praça do Automóvel Clube com a mesma disposição. Pela tradição, marujos e caboclinhos, no desfile, deixam as evoluções e o ritmo dos tambores quase sempre por conta dos três ternos de Catopês, que evoluem, cantam e cantam, chamando o povo aos exercícios de fé. Marujos, manda a tradição, vão em silêncio, em fila indiana, com seus belos trajes. Caboclinhos assuntam, cheios de respeitoso olhar. Quando entraram na antiga praça Dr. Carlos, na parte final do desfile, uma força arrebatou Joaquim Poló. Ele gesticulava, ensinando a evolução aos porta-bandeiras, mas decidiu, num ímpeto, assumir o posto e evolucionar, ele mesmo. Os que sabem do seu delicado estado de saúde, que ele não esconde de ninguém, entreolharam-se diante da reserva de forças que conseguiu ajuntar e exibir, num bailado próprio que há tempos não fazia, nem era visto por ninguém. Foi a primeira grande emoção. O mistério. A seguinte, viria já dentro da igreja do Rosário, quando os aplausos do caminho haviam cessado, quando Catopés, Marujos e Caboclinhos dançam quase sempre só para eles – Catopês, Marujos e Caboclinhos – e para a sua ilimitada fé. O público mais grosso havia se retirado. Ficaram os de sempre. Numa cadeira de rodas chegou o carpinteiro "Senhor", mestre de telhados e de catopés. Está privado do movimento dos pés e das mãos, desde que, trabalhando na roça, despencou-se de um viaduto sobre a via férrea, fugindo do ataque de uma vaca. Entrou chorando, silenciosamente, pela segunda vez nos últimos anos. Foi envolvido por todos, que o abraçavam, e alguns com ele choraram. Terminada a missa do padre-catopê, João Batista Lopes, os marujos, chamados por sua vez ao rito particular, foram em busca do catopê na cadeira de rodas, e a colocaram na frente do altar, diante de todos. Então, o novato mestre de marujos Tim, que assumiu no lugar do pai Nenzinho, morto há dias, tendo ao lado o seu filho menino, aprendiz do ofício, discípulo dele, do avô e do bisavô, mestre Tim ordenou que começasse a cantoria, na sua estréia como mestre titular, por sucessão. Os marujos obedeceram cerimoniosamente, e cantaram: - "Lá no céu tem um castelo, lá no céu tem um castelo, quem fez foi o Rei da Glória..." Senhor Catopê, que já chorava, ainda tentou disciplinar a emoção. Inútil. Um marujo, depois outro, todos o envolveram na música, e cantaram, cantaram, enquanto o mestre, com o filho ao lado, na melhor tradição discipular, enxugava as lágrimas do catopê. Quem viu, viu também que naquele instante as paredes da pequenina igreja se desfizeram diante do gesto demorado, longo, cerimonioso, como se mesmo fosse uma embarcação navegando a céu aberto, marujos no convés cuidando do catopê ferido. (O ritual, improvisado, foi repetido por todos os demais ternos, até que o último deixou a igreja do Rosário, hoje por volta das 13h30m. Acontecido em M. Claros, nas Festas de Agosto, em 16 de agosto de 2007). |
Por Paulo Narciso - 5/7/2007 15:20:51 |
O Padre Henrique Munáiz, espanhol da Galícia, região que faz fronteira com Portugal, é um dos mais queridos moradores de M. Claros. Jesuíta, ele está aqui há cerca de 40 anos, povoando nossas ruas com sua invariável rota batina preta, traço visível de sua modéstia e de sua humildade. É um santo, dizem muitos, tratamento que recusa prontamente com uma sonora gargalhada. Agora, nas comemorações dos 150 anos da cidade de M. Claros, a escolha de seu nome para receber a medalha Civitas foi recebida debaixo de aplausos unânimes. Não há, nesta cidade, quem não se levante para aplaudir padre Henrique. Humílimo, a ponto de distribuir tudo o que ganha - desde batina nova até carros, e o que mais vier, padre Henrique foi receber a medalha. Estava "escoltado" por duas simpáticas irmãs que vieram da natal Pontevedra, cidade da Espanha onde a família está localizada desde sempre; vieram especialmente para também aplaudir o irmão. (Alguns dizem que a família descende de ramos da nobreza espanhola, o que o padre nunca confirma, esquivo que é para assuntos de honra e honrarias próprias). As duas irmãs, tão afáveis quanto o segundo irmão, demonstraram alegria com o merecido reconhecimento prestado ao padre. Que, perguntado como anda, invariavelmente responde - "cada dia melhor". A alguém que disse a uma das irmãs para cuidarem bem de padre Henrique, ela retrucou com enorme precisão: "e ele se deixa cuidar?". É verdade. Padre Henrique Munáiz sempre cuidou muito dos outros, de todo mundo que lhe bata à porta, a qualquer hora. "É Jesus quem bate", ele ensina. Cuida de todos, menos, e pouco, de si mesmo. Assim, é natural que os caminhos se abram e as borboletas do caminho se levantam à sua passagem, como se vê. |
Por Paulo Narciso - 24/6/2007 20:27:23 |
Gerberas. Nas cores amarela e laranja, em ramagens de tangos. E alecrim. (Gerbera, prima das margaridas, irmã dos girassóis. Alecrim, que entre nós veda “o mau olhado”, e que para os mediterrâneos, de onde veio, é o símbolo máximo do amor - a "ros marinus", a "rosa do mar". - “Alecrim, alecrim dourado/ que nasceu no campo/ sem ser semeado/ foi meu amor,/ que me disse assim:"que a flor do campo, é o alecrim". O perfume do alecrim selando os guardanapos brancos). E, sobre tudo, a tarde esfuziante. Foi assim que a ensolarada tarde de sábado - o melhor presente - exultou os 90 anos de Luiz de Paula Ferreira. (E que, a rigor, só fechará a conta das 9 décadas nesta quarta-feira, dia 27 de junho). É, sem favor, entre os montesclarense nascidos na Várzea da Palma o mais montesclarense de todos. Aquele que o fundador do Instituto Norte Mineiro de Educação, o professor João Luiz de Almeida, ele integrante do célebre “Grupo Verde", de Rosário Fusco e Ascânio Lopes - da sua Cataguazes natal, apontou como o melhor aluno da escola. O menino, estudioso e ensimesmado, como sugere a foto, deixou a venda do pai, de pés no chão, e transformou-se, por esforço de autodidata aplicado, em industrial, poeta e compositor. E agora, aos 90 anos, dá os passos iniciais para a travessia do centenário, depois de publicar dois livros inaugurais: “Na Venda do Meu Pai” e “Momentos”, tão bem recebidos. É o autor celebrado que há 50 anos pode colher, ver e ouvir, por onde vai, a emoção que desperta sua música “Montes Claros Centenária”, hino de, e a M. Claros, e que divide com a modinha “Amo-te Muito” o topo da inspiração musical desta musical cidade. De Brasília, veio o amigo e vice-presidente da República José Alencar juntar-se aos 300 parentes e amigos reunidos para a data que pediu, e obteve, música romântica, tango, bolero e saudades. Mesmo o convite veio em poesia, último refúgio da mente operosa, e onde o nonagenário, estalando de novo em prontidão física e mental, reencontra-se repetidamente: "Ao retornar ao passado/ trilhas da lembrança/ a alma se faz criança/ revendo um mundo encantado./ Cada novo passo dado a um outro passo convida /e nessa marcha invertida /eu vou encontrando a esmo /os pedaços de mim mesmo /deixados ao longo da vida”. Foi (mais uma) tarde montesclarense autêntica. (E que se vão tornando raras, à medida que as cidades – identificou um dia o poeta – tangenciam a hora dolorosa “em que querem ser diferentes de si mesmas”). Com a esposa Isabel (a jovem professora que de fato criou o ensino superior em M. Claros, homenagem que lhe é devida), e ao lado dos filhos todos, da família, dos amigos do peito, Luiz de Paula colheu, quem sabe na retina por vezes cansada, mas vívida, recolheu o que auto-psicografou no verso-convite. E debaixo de ruidosos aplausos. Ouçamos todos. Na tarde esplêndida de M. Claros. Tarde de sábado. Ensolarada alta tarde de gala. *** (Nas fotos, Luiz de Paula, Isabel e o amigo Alencar, vice-presidente, em torno dos 90 anos. E as gerberas) |
Por Paulo Narciso - 19/6/2007 12:53:26 |
Havia, havia na Catedral, ontem, na missa de 7º Dia do menino Sidney Júnior mais mulheres do que homens. E, talvez, até mais crianças do que homens, homens feitos, digo. E a igreja estava plena, cheia. Há muito noto o que ontem pôde ser visto, confirmado. As mulheres, que são as mães dos homens, as mulheres estão tomando a frente, adiantando-se entre todos, principalmente nos momentos de grande dor, como este. O exemplo é o de Simone Pacheco, tia do garoto imolado pelo viciado em drogas que transitava livremente pela cidade, embora já carregasse nas costas – não importa se débil mental ou não – pelo menos um outro homicídio, candidamente confessado: a morte da mulher que não lhe deu o dinheiro que exigiu. Simone, de olhos claros, vivos, de intenso vigor, e fulgor, a inspirar decisão e autoridade, foi quem liderou as buscas ao menino. Chefiou a família, distribuiu missões, tratou com a polícia e se pôs – ela mesma – à frente da procura desesperada, urgente. Chorando. Sempre chorando. Chorou, chorou, chorou. Chorou sem parar por estes dias todos. Desfaleceu de tanto chorar no cemitério. Chorou muito na missa de ontem. Contudo, esta Joana D’Arc do Sertão dá sinais de que não se entregará. Nada sugere que venha a recuar, a ceder, a transigir, a desistir. Ao contrário. Do seu verde, limpo e alto olhar há luzes que apontam para outras direções. Tiraram-lhe o sobrinho amado, redobraram-lhe a coragem. É bom guardar o seu nome. As mulheres podem nos salvar. Talvez apenas elas. E entre elas, as mães, únicas com autoridade e força para içar do despenhadeiro moral um Brasil que dá mostras de que desmaia - inerte, abobado, perdido, irreconhecível, extraviado, amputado do seu passado e distante do futuro que lhe foi antevisto pelos sonhadores de todos os tempos. Ninguém pode tanto quanto as mães, e parece que elas não estão mais dispostas a ceder um milímetro em defesa da vida; elas – que são o centro deste prodígio humano/divino - a própria vida. Ao preço que for. Custe o que custar, elas nos salvarão. Ontem, na Catedral, todos viram: era delas a ação e delas a determinação. Tudo comandavam. Com serenidade e firmeza, arrancadas não se sabe de onde; com doçura ainda, e imensas doses de energia, atitudes que comovem tanto quanto o drama do menino que ali nos levou e re-uniu. O garoto imolado - é preciso repetir - na manhã ensolarada do Corpus Christi, numa área povoada, conhecida e freqüentada da cidade, o seu Parque de Exposições. Aonde, historicamente, Montes Claros juntou as suas maiores multidões – de 40, 50, 60 mil pessoas, 80 mil. Voltemos à missa. Não houve ali, ontem, um estalido, um movimento, um mínimo gesto no encerro profundo delas, as mães, nada que pudesse ocultar ou sugerir o levante iminente, já a caminho. Nenhuma insinuação de rebeldia, de revolta, de ira. Os Dias de Ira, o dies irae (“Dies irae, dies illa/solvet saeclum in favilla:teste David cum Sibylla”), mantra do século 13, não arrostou os bancos apinhados da Catedral, tomados ontem pelas Mães. Na imobilidade gestual de quem fala livremente com Deus, sempre e a sós, as mães exibiam, era possível ver, um fragor secreto, a força desconhecida que pode e vai nos salvar em breve, quando, talvez daqui mais um pouco, permitirem que soltem da garganta o grito lancinante que move o mundo, e o faz recomeçar. E não para a vingança. Mas para a reconstrução urgente do que se decompõe. Não permitirão que seus filhos mais sejam mortos nas ruas. Que seus maridos não voltem. Que a porta da sua casa deixe de ser o território risonho da infância, para modelar-se como último recuo do medo. As mães desconhecem o sentimento de covardia. E o que acontece quando as mulheres, elas também, se calam, abafam o próprio rumor? Ontem, na Catedral, centenas delas, em ordem, procuravam abraçar a mãe do menino, em silêncio. E choravam. Mais de uma tirou uma carta, lacrada em envelope, e a depositou às pressas nas mãos da mater dolorosa da noite. O que pretendiam dizer? O que disseram? Certamente não constará lá o desagrado pelo Dia de Luto Oficial que a prefeitura não quis, ignorou, pequeno gesto implorado pela tia, mas que untaria simbolicamente as dores de todos nós que sangramos com o martírio deste menino Sidney. Bandeiras a meio-pau, a meio-mastro, são sempre dolorosas, rumorejam, rugem sobre a própria ferida -, mas falam profundamente para dentro de nós. Talvez nem a lei permitisse que o prefeito assim o fizesse, mas ele precisava dizer publicamente alguma coisa. Perdeu uma rara oportunidade de levantar-se, e de levantar a cidade prostrada, caída junto do menino. Quando as mães escrevem cartas e as vão entregar, com dispensa das palavras pronunciadas pela boca, numa missa de 7º Dia, talvez queiram dizer mais do que toda a fonética é capaz de explorar. É possível entrever: As mulheres, as mães do Brasil, já se movem em nosso socorro. |
Por Paulo Narciso - 18/6/2007 22:15:59 |
Dezenas de crianças que estavam dispersas pela Catedral foram convidadas para se assentarem nos degraus que levam ao altar, quando começou – exatamente às 18h30m, a missa em memória do menino Sidney Júnior, morto por um estuprador-drogado no dia do Corpus Christi, em Montes Claros. A Catedral, o maior templo de Montes Claros, esteve repleta e silenciosa durante todo o ofício, e um telão foi colocado na praça da Catedral, para que as pessoas do lado de fora pudessem acompanhar as celebrações pelo 7º Dia de Morte. O padre Alvimar, que concelebrou a missa, iniciou sua mensagem repetindo as reiteradas lições de perdão de Jesus Cristo. Em mais de um trecho de sua fala admitiu que acontecimentos como estes, que nos enlutam, decorrem da “podridão” que avança. Citou inclusive os 38 recentes assassinatos ocorridos em Montes Claros só neste ano. O pai do menino Sidney, de 10 anos, sua mãe, seu irmão, de 7, assistiram o ofício religioso nas proximidades do altar. A Seresta João Chaves cantou várias vezes e de maneira especial emocionou ao convidar: "(Nossa Senhora) Cubra-me com seu manto de amor Guarda-me na paz desse olhar Cura-me as feridas e a dor Me faz suportar Que as pedras do meu caminho Meus pés suportem pisar Mesmo ferido de espinhos Me ajude a passar Se ficaram mágoas de mim Mãe, tira do meu coração E aqueles que eu fiz sofrer Peço perdão Se eu curvar meu corpo na dor Me alivia o peso da cruz Interceda por mim, minha Mãe Junto a Jesus Nossa Senhora me dê a mão, cuida do meu coração Da minha vida, do meu destino Nossa Senhora me dê a mão, cuida do meu coração Da minha vida, do meu destino, do meu caminho Cuida de mim Sempre que o meu pranto rolar Ponha sobre mim suas mãos Aumenta minha fé e acalma O meu coração Grande é a procissão a pedir A misericórdia, o perdão A cura do corpo e pra alma A salvação Pobres pecadores, oh Mãe Tão necessitados de vós Santa Mãe de Deus Tem piedade de nós De joelhos aos vossos pés Estendei a nós vossas mãos Rogai por todos nós, vossos filhos Meus irmãos Nossa Senhora me dê a mão, cuida do meu coração Da minha vida, do meu destino Nossa Senhora me dê a mão, cuida do meu coração Da minha vida, do meu destino, do meu caminho Cuida de mim Nossa Senhora me dê a mão, cuida do meu coração Da minha vida, do meu destino Nossa Senhora me dê a mão, cuida do meu coração Da minha vida, do meu destino, do meu caminho Cuida de mim Nossa Senhora me dê a mão, cuida do meu coração Da minha vida, do meu destino" Às 20h em ponto, quando terminou a missa (que teve a presença do prefeito Athos Avelino e de políticos), centenas de pessoas subiram para as escadarias do altar e abraçaram, anônimas, a comovida mãe do menino desaparecido e assassinado. A igreja dispersou-se em silêncio. Não houve protestos ostensivos. Apenas faixas colocadas na frente da Catedral, no gradil. Crianças, velhos, homens e mulheres, muitos, deixaram a igreja com os olhos vermelhos, ainda de choro. Há uma passeata e um protesto marcados para o próximo sábado nas ruas de montes Claros. |
Por Paulo Narciso - 10/5/2007 10:29:39 |
Uma inesquecível noite de M. Claros pede o tambor ancestral dos Catopês, o violino por si triste dos Marujos e a alegre algazarra de Caboclinhos. Requer, precata, músicas seresteiras de João Chaves e os bailados do Banzé, jovens puxando de volta o passado que não passou. Ontem, noite inesquecível, foram chamados todos à praça da Catedral para abrir as comemorações dos 150 anos da ‘cidade” de Montes Claros, que – ao assim se deixar chamar em 1857, por decreto imperial e curiosa particularidade, já era vila autônoma, dona do seu nariz e de sua bravura, com governantes seus, próprios. Nada anotei, ou anotei até que a noite se perdesse nos céus, transferida para a foguetada cívica, digamos, “maravilha de milhares de brilhos e vidrilhos”. Vou tentar lembrar. O prefeito Athos fez a abertura e logo vieram os catopés - os carroceiros-irmãos Tonão e João Faria puxando a turma, sem o fardamento escorreito, só aos santos reservado nos seus dias de agosto e glória. O Banzé de Zezé Colares puxou os aplausos da platéia quando levantou as canções de dona Dulce Sarmento, tão nossa, e quando, como fez a seresta em seguida, interpretou “Montes Claros Centenária”, do mestre Luiz de Paula, ali todo integral nos seus próximos e quase 90 anos. A seresta, antecipei, veio com dona Fina de Paula, desnecessariamente apoiada num cajado, regendo tudo, cantando, cantando alto, por si e por Virgílio, ensinando, mostrando como se faz cultura sem nada pedir em troca. Passeei o olhar em volta e vi, sim, que muito da história de M. Claros de alguma forma transita – como por toda parte - entre os 47 vivos tidos como herdeiros de outros 103, estes sim pioneiros/patriarcas listados como mortos, mas mais vivos do que nunca. (A história, diga-se, transfere responsabilidades e uns, depois de outros, deixam as sombras e assumem o seu papel – maior ou menor, não importa. Fazem o que têm a fazer, e não esperam reconhecimento algum – porque cumprem o que lhes impõe a consciência. Não perseguem gratidão, e de igual forma não estão ao alcance da ingratidão). Mas não é isto o que espero dizer. Abri estas linhas, no impuslo que tudo devora, para contar que vi dona Ruth Tupinambá Graça (foto). Que revi dona Ivone Silveira e doutor Oswaldo Antunes e Waldir Senna, e que ruidosamente vivei Luiz de Paula quando a velha Catedral, ela também, inclinou suas torres austeras para ouvir mais de perto, em silêncio como todos, o “Montes Claros Centenária” – hino desta cidade do "Amo-te Muito". Que burgo é este, meu Deus, capaz de ostentar - com serena modéstia - hinos tão altos, cantados por todos, mundo afora? Dona Ruth, ouso dizer, é quem com maior graça e ternura conta hoje a nossa história. Desce dos seus 91 anos para, com emoção e limpo e alto romantismo, narrar de onde partimos, a longa história e travessia - a nos tomar pelas mãos e nos conduzir por dias e noites, esplendor de sonhos. (Disse 91 anos, mas ninguém acreditará. Não usa óculos sequer para enfiar linha na agulha, mora só, por gosto de governar-se, e quando serve-se da caneta para conversar, ninguém é capaz de lhe seguir). Quando a virem, reparem nos seus olhos. Neles, por força do sonho-sonhos, não há mudança que se possa atribuir ao tempo – 9 décadas. A vida, é certo, não reside no que pode ser visto e contemplado, pois além transpôs. E ela, menina-catita de 90 anos, a todos isto ensina, com leve, encantador sorriso. Uma eterna princesa, em particular do nosso Chimbica, tão lembrado. Não faz menos dona Ivonne Silveira, professora, mestra, heroína de rosto ameno, sempre disponível, amável – símbolo das mulheres de M. Claros, embora nascida no Brejo das Almas – belo nome que precisa voltar. Mãe de todos nós, seus filhos por amor, escolha e declaração. Que dizer de doutor Oswaldo Antunes, rijo preceptor da maior bancada de “homenageados” ali nomeada, representação do "O Jornal de Montes Claros", sem pedir, sem insinuar, sem pretender, sem jamais ousar. Bancada apenas menor, e talvez, do que os de sobrenome Chaves – incontrastavelmente instalados no zimbório intelectual máximo desta nossa breve civilização. (Monzeca, para não inchar a lista com seu sobrenome, discretíssimo preferiu não deixar a ruela sua na cidade velha). Zimbório que a todos acolhe, re-une sempre, domo, jardim de Academus. De Luiz de Paula Ferreira, de alto estofo intelectual, repetirei para concluir e encerrar que as torres da Catedral se inclinaram longamente para ontem ouvir a sua poesia. Foi, sim, uma noite inesquecível, debaixo do suave luar de Outono. Céu que hoje se deixou enfarruscar de saudades, já de ontem 9 de maio. Montes Claros. (Foto: Rádio Montes Claros 98 FM) |
Por Paulo Narciso - 2/5/2007 16:25:54 |
Também me lembro do dia em que - cedo demais - partiu Lucy Veloso, irmã de Arinha, agora heroína da fazenda das Quebradas. Menino de 10 anos, relutei em ir à escola, exibir a dor; na volta, duramente sentido, pus as razões numa só pergunta - “que adianta ir à aula se ao voltar já não me aguarda a madrinha?”. Era seu afilhado, de batismo, vizinho também, vivendo o primeiro grande embate - logo com a morte, morte repentina, frontal, sem prenúncio algum. O açoite percorreu a avenida Coronel Prates, engolfou a risonha cidade. (Quatro décadas depois, voltaria o azorrague na garupa do sábado enfarruscado e triste. Para afligir, também de tocaia, de emboscada, a avenida em si, e matá-la, sem aviso nenhum, lentamente, cerimoniosamente, num pensado ritual de tortura e suplício, com as garras de aço sacudindo no ar árvores e lembranças, como a da Grande Dama. Rebrotará a avenida, como ela – a Grande Dama – ressurge em nós?). Na cabeça do menino, ciciando, ficou a frase ouvida ao pé do caixão, nunca esquecida: - "Ali dentro, junto do corpo, vão as cartas, todas, de Eldan, o filho amado”. Por que cartas, meu Deus, embarcam num ataúde? Haverá quem as recolha no Céu? |
Por Paulo Narciso - 14/4/2007 20:57:56 |
Um caminhão dos Bombeiros levou ao cemitério, no crepúsculo anilado de hoje, o corpo de Geraldão Machado. Conduziu mais do que um ex-presidente da Câmara e vereador de muitos mandatos. Conduziu os despojos, o que ficou do desprendimento daquele que talvez tenha sido, na sua geração, o herdeiro preferencial do chamado “jucapratismo”, nome que assinala (entre todos) os que têm por M. Claros o ilimitado amor. Fervor por Montes Claros. Na Belo Horizonte do início dos anos 70, jovem estudante de l7, Geraldão - ele já era Geraldão - não fazia segredo de que as preocupações com as coisas da amada cidade tinham o sentido urgente de uma vida, e retornar após o aprendizado era a direção absoluta. Éramos assim. As cartas que recebia da mãe, toda semana, numa época das comunicações difíceis, iluminavam as manhãs e transportavam a essencial luz montesclarina para a república da rua Guajajaras 720, reduto festivo dos estudantes que daqui foram buscar o que pretendiam repartir com os que ficaram, com os que não puderam ir – saber. As cartas da mãe zelosa diziam assim: “Meu filho: aqui, já começa o frio, e das gavetas retiramos os primeiros agasalhos”. Tinham, as cartas, além de luz, cheiro, cheiro de M. Claros. Íamos, todos, lê-las, em procissão; sorver as notícias da mãe e da terra-mãe, cartas que por um momento transportavam nossa cultura para lá; cartas com força capaz de invadir a rua, o quarteirão, o bairro e a cidade lá deles. Força afetiva. Era a ração semanal do ânimo que retinha nossos pés na capital e o coração mais longe, depois de transposto o rio das Velhas, no rumo norte. O resto da história é sabido. Ao ser entregue ao jazigo, hoje, prematuramente aos 53 anos, Geraldão pôs fim a uma galharda luta contra a doença que, se lhe cingiu o corpo a uma cadeira de rodas, jamais o circunscreveu e o abateu. Conservou e reteve a alegria de viver, e o integral entusiasmo, desconhecida bela palavra grega que no seu mais cavo sentido só pode significar ter Deus dentro de si. Que o sigam. Amem. Amém *** (Hoje, o casal Bilé/dona Taís devolveu o quarto filho ao Criador. Foi comovente ve-los, heróicos, sair do Campo Santo, de braços dados, conduzindo, ou conduzidos, por uma força que não se sabe de onde veio. Ao pé da sepultura do pai, o filho mais velho repetia, debaixo de lágrimas grossas: "Viva Geraldão! Viva Geraldão! Viva Geraldão!". Vivaram todos). |
Por Paulo Narciso - 25/3/2007 19:53:48 |
Foi bonita a festa, pá Fiquei contente E inda guardo, renitente Um velho cravo para mim Canta a primavera, pá Cá estou carente Manda novamente Algum cheirinho de alecrim Queria descrever a festa que fizeram, ontem, para dona Nininha Souto. Com atraso, eu sei, mas festa suave para os 100 anos de, nome inteiro disposto, Maria Isaura Veloso Souto, completados em 2004, comemorados agora, quando foi possível, adrede. Zonzo pela beleza do lugar, e por eflúvios, zonzo pela capelinha que luziu e balouçou no ar, na manhã e no campo azul que é o céu além destes montes, o que dou conta de lembrar, para relembrar, são os versos de Chico Buarque, na Revolução dos Cravos, lembram-se ? “Foi bonita a festa, pá!” Tão montesclarina, montesclarense. Golpeada seguidamente, vi que a cidade e sua lembrança são capazes de ressurgir, de levantar-se, refeitas, remoçadas - completas. De ares leves, na manhã, para evocar doce Nininha, nascida em Fortaleza de Minas, quem sabe nascida no Grão Mogol. Filhos, netos, bisnetos, sobrinhos, amigos, admiradores, rechamados ao berço para celebrar meiga matriarca, de olhos azuis e bondade infinitos. Refizeram-lhe, com quase igual sempre apuro, e amor, as comidas-delícias que só ela conhecia. E no livro em que deitaram suas receitas e lições, agora públicas, para proveito geral, tascaram no título o resumo do que a festa de ontem foi – Doces Lembranças (copyright Rosalva Souto & Colaboradores). É assim que, de tempos em tempos, Montes Claros restaura-se. Alça-se, com graça e com doçura, para dizer que se refugiou, abrigou-se, na região dos refolhos. De onde virá, sempre que chamada. "Ai, por quem és, desce do céu...." *** (Na foto dos anos 20, dona Nininha, o marido João Souto e os primeiros dos muitos filhos do casal). |
Por Paulo Narciso - 6/8/2006 16:37:23 |
José Fialho Pacheco Este é o nome do mais brilhante repórter de Minas, um dos mais importantes do Brasil no século XX. Conhecido e reconhecido como Fialho Pacheco, é disparado o recordista do Prêmio Esso de Jornalismo em Minas, com 5 lauréis, apesar de ter chegado à profissão aos 42 anos. Tinha, e incompleto, o curso secundário, mas ninguém no seu tempo foi capaz, ou ousou, cobrir um acontecimento - especialmente na área policial - como ele, um autodidata nascido em Manhuaçu, filho de juiz e que, na juventude, foi sargento do Exército na Amazonia. Nos seus anos últimos, ainda teve tempo, coragem e ousadia para ser prefeito da diminuta cidade de Juramento, muito próxima de Montes Claros, para onde o levou o amor. Distante fisicamente das redações, e nunca do ofício de repórter, Fialho conservou entre os mais exigentes profissionais do seu tempo o elevado conceito de repórter imbatível, infatigável, vibrante, campeão de "furos" e da boa informação. Partiu em 1 de fevereiro de 1989, dias depois de sofrer um derrame cerebral, ainda na primeira manhã, quando tombou sobre a máquina de escrever - uma extensão de sua vida de repórter animoso. Seu corpo repousa no cemitério de Montes Claros, cemitério palavra grega que significa lugar de dormir, dormitório. A frase exemplar na lápide resume a essência daquele cujo corpo ali repousa: "A vida de um jornalista é um varal ao sol . Jornalista sem vocação é como o médico que se formou porque atendeu aos apelos do pai. Um bisturi na mão de uma pessoa sem vocação é o mesmo que uma caneta na mão de quem não gosta de ser repórter". Pura verdade. A lenda sobre Fialho Pacheco, a legenda do homem e do repórter que amou e perseguiu a notícia como ninguém, prossegue entre os que tiveram a ventura de conviver com ele na redação e ao longo de memoráveis reportagens. Na velha redação do jornal Estado de Minas, no distante 2 de dezembro de 1974, ele datilografava freneticamente um texto, usando apenas os dedos indicadores. Ao fim do trabalho, com o cigarro que eternamente pendia dos seus lábios (sem nunca tragar), Fialho se encaminhou para um jovem colega e entregou-lhe 8 laudas, datadas e assinadas. Era o seu memorial, finalizado de surpresa 15 anos antes de tombar sobre a máquina de escrever, na casa de Juramento. São as páginas que se vai ler a seguir. Foram cerimoniosamente guardadas por 32 anos pelo menino que as recolheu do homem que tinha, naquela hora, lágrimas nos olhos. Por que ? Nunca soube. Parecia apenas segredo de amigo para amigo. Fialho - apesar da linguagem intimista, quase confessional - nunca revelou o que pretendia com o gesto. Também não lhe foi perguntado. Restou a lembrança, vívida, de uma cerimônia muda, rápida, intensa, que dura por uma vida inteira. Restaram outras lembranças. Os dois haviam se conhecido na redação do jornal, no começo dos anos 70, e tornaram-se inseparáveis amigos, atuando em dupla - até o fim. Eis Fialho Pacheco, por ele mesmo: |